Vatriesse escrita por Gazervici


Capítulo 11
Dual


Notas iniciais do capítulo

Só aproveito aqui para agradecer às pessoas que têm acompanhado, favoritado e comentado a história. Muito obrigado mesmo pelo apoio! o/



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— Foda-se, estás chateada comigo, já sei! Mas não encontraste forma menos estúpida de te vingares de mim do que andares com este canalha?!

— Vai à merda, Teresa! Lá estás tu a chamar-me estúpida outra vez! Nem tudo o que eu faço é para chamar a tua atenção!

A discussão parecia poder continuar pela tarde fora — ou, pelo menos, até os gritos incomodarem o suficiente os pacientes no andar inferior e serem de lá arrastados por uma auxiliar. Dominic nunca vira Irina tão irada, nem na sua intercalação com ele na varanda. E nunca tinha visto a outra rapariga na vida. A falta de informação e a brutalidade verbal da cena só o conseguiam confundir cada vez mais acerca da situação, e acerca ainda de como proceder. Então ficava quieto num canto, sentindo a chuva a bater-lhe nos pés distendidos, mas demasiado assustado sequer para os mover.

— Vamos lá para baixo.

Virou-se. Silas acocorara-se a seu lado, não tão perturbado com a discussão como resignado. E falava para ele, apercebeu-se. Teve de se forçar a gaguejar uma resposta.

— S-sim, se calhar é melhor.

O outro rapaz ofereceu-lhe ajuda para se levantar, e só aí Dominic se lembrou da sua inconveniente falta de braços, afastando o olhar para não ter de o encarar. Assentiu, e Silas passou-lhe o braço pelas costas ainda a medo, e encaminhou-o para a porta ainda aberta, descrevendo um arco em volta das duas raparigas ainda compenetradas na sua acesa discussão. Se se aperceberam da sua saída, não quiseram saber.

— É melhor assim — soprou Silas, enquanto desciam as escadas — elas têm de resolver a porra dos problemas delas. Se não falam, ao menos que gritem. Desde que não se andem a evitar e a ignorar, que não resolve nada.

Dominic não respondeu, incerto se aquilo era um monólogo, ou uma tentativa de iniciar conversa. O outro virou-se para si, um sorriso malicioso na face:

— Além disso, eras capaz de ouvir algumas que não querias. Apanhavas por tabela, isso te garanto.

— Oh. Provavelmente — ao fim das escadas, dobraram o corredor e Silas caminhou em direção ao outro lance de escadas, para o andar inferior à zona dos quartos — hm… onde vamos?

— Eu vou à cafetaria, tu não sei.

— Posso ir contigo? — Perguntou-lhe, assolado subitamente pelo desconforto de se ver sozinho. Desde que ficara sozinho na varanda naquela vez, amedrontava-se com a ideia de passar consigo próprio mais tempo do que o mínimo indispensável.

— Depende — parou à entradas das escadas e virou-se para o encarar nos olhos, através das mechas de cabelo branco desalinhado que lhe caía sobre eles — explica-me primeiro o que é que fazias com a Irina. Andavas a incomodá-la com as tuas merdas de Puritano?

O receio gelou-lhe as faces. Abanou a cabeça quase impercetivelmente.

— Não, nada disso. Ela deu-me uma segunda oportunidade de eu… aprender, acho eu. Sobre pessoas mecanizadas, e porque é que a mecanização não é errada, e isso. Então às vezes encontramo-nos e vamos conversar para algum lado ou dar uma volta.

Silas perscrutou dois médicos que subiam até cruzarem a entrada da Ala, depois o vão das escadas até o perder de vista, sem nada responder. Dominic suspirou.

— Ela ajudou-me a sair de um mau estado. Mesmo que, vá, eu não mereça muito. Mas eu nunca lhe faria mal.

O outro assentiu e seguiu escadas abaixo. Dominic ficou, prostrado, sem saber se havia de o seguir, se isto era a sua deixa para se afastar definitivamente. Só soube a resposta quando o outro voltou a parar, pendurado na dobra do corrimão:

— Também não é como se conseguisses. Pode não parecer, mas ela partia-te ao meio se tu a chateasses demasiado. Bom, vens ou não?

Quis sorrir, mas não arranjou coragem. Baixou a cabeça apenas, em moderado alívio, e seguiu-o para o andar inferior.

**

A chuva continuava a precipitar do céu enegrecido pelo fumo, ainda que não tão intensamente agora. A porta rangeu e fechou-se atrás delas, mas não ousaram quebrar o medir de forças, desviar o olhar por um segundo. As gotas picavam-lhes a cara, ensopavam-lhes o cabelo e as roupas, pois haviam-se movido ligeiramente para fora do toldo e não se atreveram a mexer-se. Irina sentia as costas arrepiadas, a pele enregelada em volta da coluna de metal que não devia sequer estar a apanhar água. Teresa bufou, e Irina conhecia-lhe tão bem a expressão de irritação. Não tinha a certeza, mesmo com a cabeça quente e os sentidos em franja, de a odiar. Mas odiava aquele lado dela.

— Irina, eu nunca disse que tu eras estúpida! Só acho que te puseste em perigo sem necessidade!

— Deves andar com problemas de memória, agora! Fantástico! — Irina ripostava, um esgar de arrogância na voz. Porém, sentia as pernas a tremer. Nunca conseguia ser totalmente confiante quando tinha de levantar a voz, chegando quase a ponto de perder o controlo sobre ela — Porque é que te estás a ralar, de qualquer forma? Pensava que te estavas a lixar para mim!

— Mas porque é que dizes isso? Eu preocupo-me contigo!

— É a isto que tu chamas preocupar?! — Troou, e o som ecoou pela varanda vazia. Teresa encolheu-se quase impercetivelmente — Ignorares-me e tratares-me como se não quisesses saber durante o tempo todo, e só te chegares à frente para mandar vir comigo quando não estou a fazer o que tu queres?

— Tu estás mesmo a usar isso contra mim? De eu não me parecer que me preocupo? — O tom de Teresa soou-lhe levemente magoado, quando baixou a voz para lhe responder — Tu sabes que eu tenho problemas em… em me expressar. Merda, obrigadinha, sim?

— Não me venhas com essa — Irina baixou também a voz, e o sibilar em surdina conseguia soar ainda mais temível do que qualquer grito — não me atires areia para os olhos. Não penses que eu não reparei que mudaste desde que desapareceste naquele dia.

Teresa sentiu um baque no peito. Não lhe ripostou, e Irina prosseguiu:

— Antes tinhas problemas em expressar-te, sim, mas ao menos tentavas. E notava-se que querias saber de mim, do Silas, dos teus amigos. Quando voltaste estavas fechada e apática, e estagnaste aí. Olhas-nos como se fôssemos só uns empecilhos na tua vida, quando sorris não parece verdadeiro. Nunca te quisemos pressionar para saber o que tinha acontecido, mas se calhar devia ter tido! — Irina praguejou mentalmente ao sentir o calor das lágrimas picar-lhe os olhos e a voz embargada — Sim, devia ter-te chateado para contares. Devia ter insistido tanto, sido tão detestável, que acabasses por te fartar de mim! Era melhor ter-te perdido naquela altura do que ter continuado a ter-te assim!

— É isso que pensas?

Irina virou-se para a encarar, as maçãs do rosto vermelhas e traçadas a fios de água, os olhos raiados e os punhos cerrados. Detestava quando ela fazia aquilo. É isso que pensas. Era como um ultimato, a sua derradeira oportunidade de voltar atrás no que dissera, mas assemelhava-se jocosamente ao que uma mãe diz a um filho birrento. Forçou-se a acalmar a respiração e a assentir.

— Eu só queria a minha amiga de volta. Se não podia ter isso, ao menos que tivesse acabado de outra forma.

A porta voltou-se a abrir com urgência, e finalmente as duas raparigas quebraram o olhar para prestar atenção a quem entrava. A cabeça da enfermeira de cabelos negros apareceu, uma expressão severa nas faces.

— Meninas, que gritaria é esta? Os pacientes estão incomodados, então? Isto não é sítio para se estar com esta chuva, ainda mais a berrar dessa maneira. Baixem a voz e entrem de uma vez.

Entreolharam-se de relance e seguiram-na obedientemente. A enfermeira precipitou o passo para voltar ao seu posto, mas elas ficaram para trás, uma tensão mal resolvida a pairar entre as duas. Até que Teresa lhe disse fracamente:

— Eu nunca te quis magoar, Irina. Eu só não vos queria preocupar.

— “Tempo livre”. — Disse Irina, a voz também baixa e levemente rouca, a água gelada a pingar-lhe para os ombros — Lembras-te? Era o que costumávamos dizer quando precisávamos de algum tempo sozinhos, mas não queríamos falar do assunto. Só tinhas de ser franca connosco e dizer que não estavas bem, em vez de fingires que não se passava nada.

— Eu sei. Desculpa. Na altura estava mal, não sabia bem o que fazer, e acabei por fingir para não vos ter a preocuparem-se. Acho que… pensei que mesmo se pedisse tempo livre, vocês iam saber que se passava alguma coisa. Iam preocupar-se na mesma.

— Preocupados já nós estávamos! Desapareceste a meio da noite, não te vimos durante semanas, quando voltas parece que nos odeias! Tínhamos ficado menos preocupados se ao menos tivesses admitido que não estavas bem.

Ela silenciou. Pararam no fundo das escadas, o corredor envolto na penumbra a estender-se à sua frente. Nenhuma alma viva se fazia notar, salvo pelos poucos enfermeiros que porventura passassem mais à frente, na zona dos quartos. Conseguiam ouvir o besourar das máquinas à distância, misturado com o gotejar lá de fora. Teresa sentou-se no penúltimo degrau, incomodada com a roupa molhada a colar-se ao corpo, e meneou a cabeça para o seu lado:

— Senta-te. Eu conto-te o que aconteceu.

— Não precisa, Teresa, esquece.

— Não. Tu mereces saber.


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