Vatriesse escrita por Gazervici


Capítulo 10
Mártir


Notas iniciais do capítulo

Enquanto devia estar a escrever e em vez disso procrastinava, criei um monte de coisas sobre o Vatriesse que decidi depois compilar num Tumblr para o efeito. Estas incluem informações adicionais sobre o mundo da história, desenhos, e uma playlist que vai sendo atualizada de tempos a tempos.

E aqui está: http://vatriesse.tumblr.com/

Sem mais de momento, espero que gostem!



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Tap. Tap. Tap. Tap.

A primeira chuva de outono daquele ano abateu-se sobre a cidade como um mau augúrio.

Teresa despediu-se do oftalmologista e saiu do consultório, virando o corredor para o adjacente à rua. Através das paredes de vidro notou o precipitar fustigante a aumentar de intensidade, até se assemelhar a uma cortina de água em catadupa sobre o passeio de pedra. Noutro dia, murmuraria algumas injúrias entredentes, pensaria no rol de queixumes que faria aos amigos quando chegasse à Ala com os cabelos a pingar. Agora, porém, abria a porta com dificuldade, uma corrente de ar gelado a espicaçar-lhe os braços descobertos, e atravessava o caminho de pedra entre os canteiros com as gotas a descerem-lhe pela face num desanimado desinteresse.

Quase não voltara a ver Irina depois daquela vez.

Ainda passava por ela nos corredores, por coincidência ou hábito, e ela virava a cara para a frente sem sequer a olhar. Teresa sentia a sua mente a gritar-lhe que parasse, que fosse atrás dela e pedisse desculpa. Mas a garganta secava-lhe, os pés pesavam-lhe e quando dava por si, já a outra havia desaparecido.

Ao entrar na Ala, sacudiu um pouco a roupa e limpou os pés antes de se lançar às escadas. Subiu de rajada, alimentando a ideia de a encontrar na sala comum, em animada conversa com Silas, a empurrá-lo com os pés descalços e a desconcentrar-lhe a leitura até ele se fartar e desistir. Nunca se apercebera de como a imagem era reconfortante até agora.

Abriu a porta da sala comum. Silas levantou os olhos do livro e cumprimentou-a com um aceno. Um grupo que conversava no canto oposto da sala ignorou a sua presença. Dirigiu-se ao rapaz e sentou-se a seu lado, nos pufes.

— Vou adivinhar que ainda não tiveste coragem de lhe dizer nada — disse-lhe o rapaz, um tom acusador na voz. Ela soprou em resposta.

— Não. Não consegui, ainda. Ela tem vindo cá?

— Poucas vezes.

Silenciou, sem saber o que dizer a seguir. Normalmente era Irina a arranjar tema de conversa, a atirar uma almofada para espicaçar um dos dois, a declamar em voz alta a frase que primeiro visse no livro que estivessem a ler até se fartarem e acabarem por desistir e ir dar uma volta. Sem ela, caíam num vazio de assunto.

— Ffff, por onde é que essa rapariga anda? — Murmurou a rapariga em exasperação. O rapaz pousou o livro e levantou-se, estendendo-lhe a mão para ela o acompanhar. Teresa torceu o nariz — A sério? Carago, Silas, ainda agora me sentei.

— Ninguém te disse pra te sentares — deu de ombros com uma expressão pueril — vá lá, ficares aqui sentada a olhar para a minha linda cara não vai ajudar. Vamos dar uma volta, pode ser que a encontres por aí.

— E se encontrarmos? — A ideia arrepiou-a. Tinha tido tantas oportunidades, que não conseguia aceitar a ideia de uma delas ser a final, a definitiva, aquela em que a fatídica conversa se realizaria. Agarrou na mão metálica de Silas para se levantar.

— Se a encontrarmos — explicou ele — vais falar com ela nem que tenha de te dar um pontapé na cara para ganhares coragem. Anda. Aposto contigo que ou está na cafetaria, ou está na varanda. São os dois pousos de eleição dela, vale a pena tentar.

**

— Nick. Tens de ver isto.

Dominic ainda estranhava o apelido. Em Diavena não havia o hábito de encurtar nomes e Lucas costumava ser o único que não o tratava pelo nome; porém, não se opusera a que Irina o fizesse, já que lhe parecia que este derivava de estar mais à vontade com ele, o que não era mau de todo. Nunca sonhou sequer conseguir chegar perto de algum tipo de perdão da parte dela; isto era mais do que podia ter pedido.

Contudo, por muito que se tivessem aproximado, ainda caminhava em gelo fino quando se tratava de conversar com ela. Descansava-o a noção de que agora, se lhe escapasse algo ofensivo sem querer, levava com o objeto que mais à mão estivesse e um sermão sobre a razão pela qual estava errado e estariam bem de qualquer forma; mas continuava a querer evitar essas situações, pelo bem dos dois.

O ar começou a trazer o odor de chuva, estavam eles a conversar sobre uma qualquer receita de quiche que vinha no jornal — cujo aspeto, Dominic argumentava, parecia o de vomitado de rato. Irina, por sua vez fã acérrima de quiche e derivados, tratara de enrolar o jornal e o acertar com ele repetidamente na parte do corpo mais próxima. Estava Irina a ordenar-lhe que se desculpasse pelo seu desrespeito e Dominic a guinchar que ela era horrível por bater numa pessoa que não se conseguia defender e a tentar pontapeá-la simultaneamente, quando a primeira gota de chuva caiu na testa da rapariga.

Decidiram tacitamente não voltar para dentro. Em vez disso, sentaram-se por debaixo da saliência de pedra na parede onde a porta de acesso se encontrava, que formava um pequeno toldo, e por lá tinham ficado, de pernas encolhidas, a olhar para o céu cinzento e a chuva a cair. O rapaz entreter-se-ia nisto por tempo indeterminado, mas ela rapidamente se aborreceu e começou a folhear o jornal, um tabloide de letras garrafais e berrantes que havia agarrado na sala comum com o único propósito de arremessar em Dominic, e sem nenhuma intenção de ler.

Mas parentemente, algo tinha agarrado a sua atenção.

Dominic inclinou-se para ver a notícia para a qual ela apontava. Só o título conseguiu fazer o seu coração quase parar.

O MÁRTIR DOS PUROS

— Não tenho a certeza se quero ler isto — disse ele, sem no entanto descolar os olhos da folha.

— Em retrospeto, provavelmente não te devia ter mostrado — sibilou ela, afastando lentamente o jornal de si.

— Não, já agora leio — ele pediu, gesticulando com a cabeça que aproximasse a página de si, enquanto corria a parede de texto com os olhos. Mas o estômago revoltava-se a cada linha que conseguia passar.

Há duas semanas, um sobrevivente da catástrofe da colisão do barco voador pirata com a catedral principal de Diavena foi reportado como desaparecido. O indivíduo em questão tinha sido transferido para o Hospital Magno de Rorise logo após o acidente, e foi procedida a substituição da sua perna direita estilhaçada por uma perna mecanizada. Ao acordar, porém, o indivíduo demonstrou uma atitude hostil perante os médicos, enfermeiros e pacientes, que acabou por culminar no seu desaparecimento.

O indivíduo, posteriormente identificado como Farhan Duiara, foi hoje encontrado em sua casa, em Diavena, sem a perna mecanizada. Em entrevista, zai Duiara afirma ter fugido do hospital e retirado a prótese pois não permitiria que “as opressoras doutrinas dos maculados pela ferrugem o forçassem a afastar-se do que é certo”.

“Acordo, e dizem-me todos dengosos que me substituíram a perna, que é isso que fazem sempre que alguém precisa. Precisa! Eu nunca lhes disse que precisava, ou disse? Maneira de impingirem as suas crenças nas pessoas! Nunca precisei de próteses, nunca precisei de metal, e não é agora que vou começar!”

Fontes indicam que zai Duiara foi admitido, posteriormente à sua fuga, no Centro de Saúde de Diavena, onde dois profissionais de saúde não identificados o auxiliaram a tirar as próteses. Um inquérito foi requerido pelo Hospital Magno para descobrir as suas identidades.

Por Diavena, zai Duiara, orador da capela da cidade, é visto e tratado como um mártir, o herói da causa Pura. Vários entrevistados revelaram que viam a sua fuga e rejeição à intervenção médica como uma inspiração na luta contra a mecanização.

Olhou para a foto a preto-e-branco, um homem grisalho sem uma perna a sorrir-lhe majestosamente. Sentava-se numa poltrona coçada do uso, mas pela sua postura era como um trono. As roupas demasiado largas para o seu corpo esguio contrastavam com o colar que levava ao pescoço: uma corrente de metal enegrecido decorada com pingentes de ouro e joias brilhantes, engrenagens e anilhas enferrujadas, como troféus de guerra. Os seus olhos de pardal pareciam faiscar de um orgulho sem par.

— Ele esteve internado aqui — murmurou repentinamente o rapaz, e virou a cara. Voltou a observar a chuva atentamente, um gosto amargo a invadir-lhe a boca e um leve estremecer pela espinha.

— Ok, já chega. Desculpa, não te devia ter mostrado — a rapariga fechou o jornal cabisbaixa, uma leva de arrependimento a varrer-lhe a mente. Sim, Irina, muito bem. Bravo. Essa foi de mestre, martelava-se a si própria. Arriscou — estás bem?

— Sim. Sim, tudo bem. Só ainda é um bocado difícil.

— Não faças nada estúpido.

— O quê? — Ele fitou-a em confusão, momentos antes de finalmente entender — Não, por favor, Irina, eu não vou fugir!

— Nunca se sabe — atirou-lhe de volta.

O precipitar enchia a varanda de barulhos agudos e ocos, pingava pela saliência de pedra acima deles.

— Eu lembro-me dele — arriscou Dominic a fitar o jornal, e Irina voltou-se quase impercetivelmente — era o orador que falava nas congregações todas. Mesmo quando eu… bom, acreditava mesmo na doutrina dos Puros, ele assustava-me um bocado. Parecia meio maníaco, sabes? Repetia sempre as mesmas coisas em todos os discursos, e cada vez era mais fervoroso. As pessoas adoravam-no, acho que porque ele lhes dava ânimo e validação. Eu dizia sempre ao Lucas que não precisávamos de ir porque tínhamos a certeza daquilo em que acreditávamos, então não havia necessidade de que nos confirmassem todas as semanas. Mas na verdade, só não queria ir porque tinha um bocado de medo do homem.

— Espera, perdi-me na parte do Lucas. Quem é ele?

— Nunca te tinha falado nele? — A rapariga meneou negativamente com a cabeça — É o meu namorado.

Ela pausou por um momento.

— O teu namorado. E ele só está a entrar na equação agora porque?...

— Porque não sei o que lhe aconteceu — encolheu-se mais sobre as pernas fletidas — Pedi aos enfermeiros que me dissessem se ele está neste hospital, mas eles dizem que não me podem dar essa informação. Acho que mesmo que ele estivesse não me diziam, com medo que fizéssemos alguma asneira juntos. E pedi-lhes que me vissem nos obituários de Diavena se vem lá o nome dele, e eles disseram-me que não vinha. Mas podem estar a mentir para eu não ter outro colapso ou assim. Quero achar que ele está vivo e bem, mas não tenho certezas nenhumas.

— Tu tens alguns problemas de confiança, não tens?

— Oh, como se fosse alguma mentira. Sabes que eles mentiam se achassem que era melhor.

— Provavelmente. Mas tenho a certeza de que ele está bem. Houve muita gente a conseguir escapar — queria calar uma pergunta impertinente, mas acabou por não a conter — Nick, uma coisa. Ele é um Puritano, não é?

Naquele momento, o som agudo da chuva pareceu adensar-se.

— É. E antes de perguntares, se ele estiver mesmo bem, não sei como vou lidar com essa situação. Ou melhor, não sei como é que ele vai lidar comigo.

— Relaxa, ele vai aceitar.

— Não tenho tanta certeza.

— Oh, pensa comigo, casmurro duma figa: tu aprendeste, e não tinhas outro incentivo senão um gajo a quem chamaste um nome numa biblioteca, uma gaja que te mandou uns bitaites numa varanda e uma médica farta das tuas merdas. O incentivo dele vai ser aceitar o próprio namorado. Não me parece muito mais difícil.

Dominic sorriu-lhe, preparava-se para lhe agradecer, como tantas vezes já tinha feito — e sentia-se grato de cada vez que o dizia, ainda que a rapariga o acusasse, em tom de brincadeira, de parecer um disco riscado. Mas não teve oportunidade. A porta da varanda rangeu ao abrir a custo, e das escadas saíram duas pessoas.

Viu Irina ficar lívida quando notou quem era.

— Silas? Teresa? O que é que fazem aqui?

Silas e Teresa estacaram, o vento e a chuva a fustigar-lhes os braços descobertos. Os olhos de Silas passaram por Irina e pararam em Dominic, duplicaram em tamanho e triplicaram em terror quando se virou para Teresa para lhe colocar uma mão no braço. A rapariga sacudiu-lha, uma expressão de ódio contido a varrer-lhe a face.

— O que é que fazes com o Puritano?!


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