Vatriesse escrita por Gazervici


Capítulo 12
Apoteose aos Ilustres


Notas iniciais do capítulo

FINALMENTE aqui está o próximo! Sinto muito pela demora, e espero que gostem! ;u;



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Vogma não era uma cidade onde se conseguisse viver. Nem no seu sentido subjetivo, “viver” enquanto fazer uma vida digna com tudo a que um ser humano tem direito, nem mesmo quase no seu sentido literal, de realmente sobreviver e conseguir passar dos três anos de idade sem mazelas e traumas vitalícios.

Teresa estava sentada na rua, no degrau da porta destroçada de uma casa abandonada, uma roda de pessoas sentadas à sua volta no manchado passeio de pedra. Jogavam um qualquer jogo de apostas com um pequeno dado de doze lados e um copo lascado e fumavam um cigarro apenas, que circulavam entre todos. Notava-lhes nos olhos o desdém geral para com tudo, até para o existir em si.

Uma neblina de fumo estendia-se pela ruela, visto estar a cidade envolta num complexo de pelo menos dezassete fábricas em perpétuo funcionamento. Não seria autorizada uma tão grande quantidade de indústria numa metrópole normal, mas Vogma não era normal. Era uma cidade vendida.

— Mas quem é que vende uma cidade? — Resmoneara uma das figuras na roda, Rénia, adíade de cabeça rapada e mãos quadradas, quando a conversa havia surgido anteriormente.

Quem já não a quer, aparentemente. Vogma tornara-se, por razões sociológicas que não nos debruçaremos a explorar, uma cidade problemática sob a alçada do Distrito Magno. Um índice de criminalidade crescente, uma mortalidade crescente também, uma mancha na de resto imaculada ficha de cidades idílicas do Distrito. Portanto, foi de bom grado que a entregaram ao empresário de gel no cabelo e goma no fato que ofereceu por ela um valor maior do que o que cidade alguma vez valeria.

Acontecia que este, na realidade, precisava apenas de um sítio neutro em lei onde pudesse sediar os seus negócios mais obscuros. Assim que ganhou controlo sobre a cidade, removeu a legislação que lhe atrapalhava a vida e aí descobriram os moradores que, até então, comparativamente, tinham vivido no paraíso.

Uma enchente de fábricas cercou a cidade e alastrou o ar de fumo e tóxicos, a falta de leis a regular drogas e estupefacientes convidou à criação de gangues e cartéis de tráfico, a legislação propositadamente ambígua no que dizia respeito à violência e ao roubo tornava tão fácil o assalto a estabelecimentos e casas particulares, e desde a remoção de próteses mecânicas de transeuntes descuidados para venda no mercado negro até mesmo ao rapto e escravização dos menos afortunados. A Terra de Pedra e Sangue, chamava-lhe jocosamente o tal empresário em comunicados oficiais. O nome pegou lá fora, como forma de distanciamento.

Ocorreu isto quando Teresa tinha sete anos. A mãe, senhora de fraca força mental, não conseguiu imaginar-se a passar por todas as situações que ouvia sussurradas nas esquinas, e tão depressa quanto pôde tentou arranjar transporte clandestino para fugir. Acabou por arranjar um de data próxima, livre de custos, e com apenas uma regra: Nada de crianças ou animais.

E tal como animais foram abandonadas em casa as suas duas crianças numa quente noite de Verão, quando ela fugiu. Teresa, na altura um choroso projeto de gente cujo pequeno conhecimento do mundo não lhe permitia compreender o abandono, e Leanor, filha mais velha de catorze anos. A rapariga pegou na pequena irmã, juntou-se ao seu grupo de amigos, alguns deles na mesma situação de abandono, e juraram conseguir sobreviver a todo o custo.

Cinco anos haviam passado, e orgulhavam-se de ter conseguido cumprir a promessa.

E foi nessa tarde em que, entre passas num cigarro amachucado e um jogo de batota com um dado viciado, uma mulher de vestes largas, um olho metálico envolto em cicatrizes e a expressão desdenhosa característica das pessoas da Terra de Pedra e Sangue, se aproximou deles. Olharam-na de cima a baixo desconfiadamente. Teresa aproximou quase impercetivelmente a mão do cano da bota, onde guardava uma adaga enferrujada, viu os restantes a aproximarem também as mãos dos esconderijos de armas junto ao corpo.

— Calma, putinhos. Não estou aqui pra arranjar merda convosco. Vocês são uns desses grupos de delinquentes que por aí andam, né?

— Delinquentes? Ofende-nos! — Alvitrou Ismael, rapaz de cara cortada de ponta a ponta e expressão arrogante, que não fosse por ser rápido com uma faca e eficaz a criar venenos já há muito estaria morto numa valeta à custa da sua impertinência.

— Vai para o caralho, ó puto. Sabes muito bem que aqui ninguém que não mate não vive. Vocês estão vivos, ou têm pais ricos que matam por vocês, ou sabem matar por vossa conta.

O grupo silenciou. Não se entreolharam, não mostraram dúvida ou receio.

— Pelas vossas caras não me parecem lá muito ricos — continuou ela — portanto, sabem trabalhar com armas?

— Depende — rosnou Teresa, e o grupo distendeu os ombros levemente — qual é a sua?

— A minha é dar-vos trabalho que não vos escravize. Trabalho fácil. Podem é ter de cortar umas quantas gargantas, mas acreditem que o preço vale a pena.

Aí sim olharam uns para os outros como que a tentarem decidir tacitamente se haveriam de a degolar, se a deixar falar. Teresa sentiu as pernas bambas e o coração a bombear-lhe no peito. Já havia assistido às consequências de tentarem meter-se com eles antes, mas Leanor nunca a deixara matar alguém. Nunca a ensinara sequer a fazê-lo decentemente. Perguntava-se se seria esta a sua oportunidade.

— Explique-se.

— Preciso de gente para complementar a minha tripulação numa caça à recompensa. Um gajo dum gangue fugiu num barco voador com quilos de droga roubada no porão, tem a cara espalhada pelas ruas da Terra. Ajudam-me a capturá-lo, são pagos sete peças por cada um, e ainda posso dar os vossos nomes a gente com trabalhos do género. Se não, bem podem continuar aqui na pocilga a chafurdar e a roubar carteiras a riquinhos o resto da vida.

A desconfortante ideia de que aquilo se tratasse de um esquema de escravatura acertou-a de imediato.

— E porquê um bando de “delinquentes” que encontrou no meio da rua? — Cuspiu Adine, a mais velha do grupo, dando a última passa no cigarro.

— Porque assassinos decentes são caros, e tripulações encomendadas não têm estômago para isso. E decidam-se, que não tenho o dia todo e de assassinos de palmo e meio está a cidade cheia.

Contrariamente a tudo o que lhe dizia que aquilo era uma má ideia, deu por si a ser arrastada para dentro do barco voador da mulher com o resto do grupo, que considerou ser aquilo algo a que pudessem dar uma oportunidade. No fim, apercebeu-se ela, qualquer tentativa de se distanciarem de Vogma era digna de uma tentativa aos olhos deles.

E, estranhamente, acabou por correr bem.

Ou tão bem quando poderia correr uma missão de captura ilícita de um inimigo de um gangue. Conseguiu autorização, ainda que relutante, da irmã, para abordar o navio inimigo com o grupo, feriu alguns tripulantes como auxílio a que os eliminassem depois, manteve-se na linha de trás a ver Savira, rapariga de braços de ferro e olhos naturais da cor do aço, a atirar atacantes borda fora, Ismael a feri-los com lâminas embebidas em veneno que rapidamente os jogava por terra, Adine e Rénia de armas de núcleo de éter em mãos a pontapear uma porta abaixo enquanto Teresa entrava e arrastava um homem de aspeto frágil e cara inchada de choro para fora. O estômago revolveu-lhe de pena, mas a irmã parecia inabalável. Ergueu o homem pelo colarinho para perguntar à mulher de olho mecânico se era aquele o que procuravam, e empurrou-o para o navio que os empregara para depois voltar.

No caminho de volta, apesar de todos parecerem céticos, desdenhosos e nada impressionados, via-lhes nos olhos um início de um sonho que também a si pertencia. Adensou-se a sua hipótese quando, ao chegarem novamente a Vogma, Teresa acedeu com desdém, depois de receber uma bolsa de couro com o dinheiro de todos, a que a mulher desse os seus nomes a outras pessoas que precisassem de serviços do género. Confirmou-se quando, já na casa abandonada em que todos viviam, Ismael verbalizou aquilo em que todos pensavam:

— Gente, devíamos arranjar um barco.

Era um sonho vago, triste de tão distante e tão impossível. Mas Leanor, no seu fervoroso desejo por uma mudança, alimentou-o com ardor.

— Nós conseguimos. Vá lá, não há de ser tão difícil, aquela mulher toda esfarrapada conseguiu, e a tripulação nem era dela, o que significa que está sozinha. Nós somos muitos, mais depressa conseguimos. Todos juntos.

— Todos juntos — repetiu Adine, com um esgar de vaga felicidade — Matri Savariesse.

— Ainda te lembras da língua vogmagii antiga? — Perguntou Rénia, num tom que tanto podia ser trocista como esperançoso — Bom, então tudo pode acontecer, mesmo. Matri Savariesse.

Nos anos que se seguiram os roubos e pilhagens de casas abastadas aumentaram em peso, diminuindo apenas quando o grupo era chamado para mais algum trabalho nos barcos dos ares. Muitas discussões se seguiram, quando a maquia poupada se tornou elevada, sobre as formas mais imediatamente gratificantes que tinham de gastar o dinheiro sem ser com o alimentar de um sonho parvo. Leanor, a certa vez, disparou:

— O que é que querem, então?! Comprar casa aqui? Tornar-se classe rica? Façam-me rir! Sabem muito bem que a classe rica protegida por lei são as antigas famílias, não uns ratos de esgoto que ganharam uns trocos a mais! Arranjávamos casa, éramos assaltados todas as semanas! Querem abrir um cartel, um negócio do mercado negro, aumentar a fortuna à custa da desgraça dos outros?! Arruinar a vida dos outros como os outros arruinaram a nossa? Olhem que eu espero muita coisa de vocês, mas vinganças de segunda mão é que não me passou sequer pela ideia! Qual é a vossa, afinal?!

Ninguém se atreveu a responder. Ela prosseguiu:

— No dia em que quiserem sair disto, digam-me, e ficam com a vossa parte justa do dinheiro. Aí, fazem o que quiserem com ele. Mas se querem uma oportunidade, por muito pequena que seja, de não passar a vida neste buraco do inferno, então fiquem e apostem nisto. Está quase.

E este “está quase” podia muito bem ser uma hipérbole, exagero da realidade para os convencer a ficar, asserção que seria renovada quando outra discussão se seguisse. Mas não ouve discussão seguinte. Daí a pouco mais de meio ano, Leanor aproximou-se deles com voz trémula.

— Acho que… acho que temos suficiente.

E uma cacofonia de vozes se seguiu?

— O quê?

— Mas a sério?

— Oh, vá lá, deves ter visto os preços dos barcos mal, não pode ser.

— Ai, não pode, não pode ser.

Ela calou-os com um sibilar, e prosseguiu.

— Perguntei a um vendedor do Porto dos Ares. Um dos legítimos. Temos o necessário para um barco de motor de engrenagens com cristal de éter seminovo e combustível fóssil secundário. Só precisamos de trabalhar mais algumas semanas, e temos dinheiro para as primeiras despesas.

Não tinha sido exagero.

Teresa tinha dezassete anos quando se dirigiram ao Porto dos Ares pela definitiva vez, e fecharam negócio. O grupo mantinha um êxtase contido, apaixonados pelo pequeno barco de madeira descascada preso ao porto pelo sistema magnético, o vento a embalá-lo levemente e a fazer ranger a prancha que dava acesso ao convés.

E da primeira vez que embarcara na pequena nau de velas descoloradas, todo o seu ser estremeceu de uma ansiedade densa. O céu, coberto em grande parte por nuvens, não convidava a que se saísse do porto, mas o grupo, entre guinchos de alegria e tanta êxtase como ela própria tinha, urgia-lhes a partir. Nada do que lhes prendia àquele lugar eram memórias calorosas de tempos bem vividos, mas apenas a impossibilidade de partir — que agora desaparecia, com o vento a inflar as velas e a assobiar por entre as barras de ferro que sustentavam o Porto dos Ares acima dos mais altos edifícios, das mais magnânimas construções. Acima deles só as nuvens, e os barcos de quem já partira, e a quem desejavam fervorosamente juntar-se.

— Teresa, vá lá!

Leanor estendia-lhe uma mão, trémula apesar do esforço para se conter, incitava-a a caminhar a prancha de acesso ao convés. Atrás delas, havia quem explorasse a nau, quem se pasmasse a observar a vista, as labirínticas ruas de minúsculos transeuntes cheias, as fábricas a cuspir baforadas de fumo negro para o ar, as três linhas de comboio a cortar a cidade com locomotivas a avançar tal víboras em caça. A cidade parecia mínima, insignificante, quando encabeçada pelo céu entrecortado por nuvens, de onde se conseguia notar o dourado da tarde avançada nos rasgos de branco acinzentado. Admirou-lhes os olhos. Julgara que eles, delinquentes que por tudo já haviam passado, tinham o brilho do olhar permanentemente morto num eterno desdém. Pareciam crianças agora, de olhos tão fulvos de brilhantes que chegavam a lacrimejar, a gritar de alegria. Adine também chorava, silenciosamente, apoiada sobre a parede do convés. Lançou-lhe um sorriso como nunca o tinha visto.

Quando teve forças para subir, a irmã gritou uma única ordem, e todo o grupo se mobilizou. Treinaram durante tanto tempo para aquilo, mexendo nos barcos dos seus esporádicos empregadores e observando as tripulações dos caçadores de recompensas a funcionar como afinada máquina; até naqueles em que nada acreditam, há uma esperança que os obriga a continuar. Savira, Ismael, Rénia e Adine há muito não acreditavam em muita coisa; mas tinham esperança em Leanor.

Adine passou a manga do casaco longo pelos olhos, acocorou-se para arrastar a prancha para dentro do barco e correr a portada. À sua volta, o fulgor e a ânsia de partir manifestavam-se numa rapsódia de atividade. Corriam-se as velas, amarravam-se os cabos, recolhiam-se pesos. Na ampla cabine de portadas abertas, Savira soltava risos pueris enquanto ligava um extenso painel corrido de botões e manivelas, alavancas e correias, de leme no centro em metal resplandecente e uma ampla parede de vidro adiante. Debaixo dos seus pés, um rumor espalhou-se pela madeira, uma cacofonia de barulhos de engrenagens a encaixar-se e iniciar marcha. Ouviu o seu próprio coração a bater ao som das máquinas. E, ao fitar a irmã, entendeu que esta também o sentia.

— Está tudo pronto para partir? — Bradou a plenos pulmões. Savira virou-se, Ismael e Rénia suspenderam a sua tarefa nas velas, Adine sorriu da porta da casa das máquinas. Houve um silêncio, depois um tácito assentir, pontuado de um sorriso.

— Sim, Capitã!

Nunca vira Leanor tão feliz na sua vida.

— Então, vamos!

Com um puxar de manivela, o sistema de magnetização suspendeu-se e desprendeu o barco do Porto, com um solavanco. Sentiu o prender de respiração geral enquanto o barco descaiu levemente em direção à cidade abaixo, as engrenagens passaram de estremecer a rugir, e o cristal de éter se acendeu como um coração que bombeou a nau. Savira, como que arrancada de um êxtase, atirou-se para uma alavanca que puxou com brutalidade. O barco deu um novo solavanco, e avançou em direção às nuvens.

Assim que a nau rasgou a nebulosidade espessa a época mais feliz da sua vida começara, comemorada de imediato por um céu de ouro e rosa, o pôr-do-sol no horizonte a dar lugar a raios de negrume e azul petróleo.

— Como chamamos ao barco, Leanor? — Adine aproximara-se sem que notassem, a voz ainda embargada e as expressões contorcidas. Leanor olhou para Teresa, envolveu-lhe os ombros com um braço.

— Oh, isso é óbvio. Não há mais apropriado que Matriesse.


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