A lenda dos amantes do Tempo escrita por Geovanna Ferreira


Capítulo 26
Capítulos Finais! A autora - parte I


Notas iniciais do capítulo

A cada capítulo eu morro mais com essa história! Sim! Ela tomou rumos inesperados e to amando isso! Galera como esse cap seria imenso, vou dividir em duas partes, logo logo vem a parte final e dai então vou pro episódio final dessa história!!! Garanto que apesar da tristeza ela tem um motivo e o fim vai ser lindo e esperançoso!! Aguardem e não se esqueçam de comentar, ta acabando, preciso saber a opiniao de vocês. Você que é um fantasminha, tire um minutinho pra fazer uma autora feliz. Serio!!! Espero que gostem!!!



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Quando aquilo que você está procurando

Não é encontrado em lugar algum

E você volta passo a passo seus movimentos

Tentando descobrir

Você quer alcançar

Você quer ceder

Sua cabeça está acompanhando a próxima curva

Você deseja poder encontrar algo acolhedor

Porque você está tremendo de frio

É a primeira coisa que você vê ao abrir os seus olhos

A última coisa que você diz quando você diz adeus

Algo dentro de você está gritando e lhe conduzindo em frente

É a primeira coisa que você vê ao abrir os seus olhos

A última coisa que você diz quando você diz adeus

Algo dentro de você está gritando e lhe conduzindo em frente

Porque se você não tivesse me encontrado

Eu teria lhe encontrado

Eu teria lhe encontrado

Something Inside - August Rush

Nova Iorque, 1991

Ela entrou tranquilamente na livraria. Logo caminhava entre as prateleiras, lendo os títulos dos livros nas lombadas. Até então nunca havia se interessado por leitura. Mas, naquele dia, Emma achara que merecia um presente.

Era seu oitavo aniversário, o oitavo ano que comemorava a data sozinha.

Daria a si mesma uma história bonita para ler e esquecer por hora, pelo menos naquele dia, o pesadelo que vivia.

Nenhuma das obras ali expostas a interessou, até que puxou um livro ao acaso de uma estante. Na capa viu uma garotinha, loira como ela, segurando uma espada.

_ A pequena salvadora... – Emma leu o título e sorriu.

Havia achado sua história.

Discretamente, ela colocou o exemplar dentro de sua jaqueta e saiu do estabelecimento.

Ninguém notou a jovem ladra se afastando.

Depois de andar algumas quadras, Emma entrou em sua loja de doces favorita. Circulava por ela, decidindo o que levaria dessa vez, quando encontrou uma cena que a fez parar e assisti-la, com a tristeza encarnada em seu rosto.

Uma menina, que parecia ter sua idade, fazia compras com seu avô. Ela os observou sorrir, escolher guloseimas, desejando que pudesse também ter um vovô... um pai, uma mãe, uma família como todas as outras crianças.

Emma distraiu-se tanto vendo os dois que o livro que carregava foi ao chão.

A balconista da loja movimentou a cabeça, percebendo o som, intuindo automaticamente que havia algo errado.

_ Droga!

A mulher a conhecia. Se a visse, estaria metida em encrenca. Ela se agachou e ágil, com uma mão resgatou o livro, com outra agarrou um punhado de doces. Saiu correndo, esbarrando na garotinha que instantes antes havia invejado.

Após minutos fugindo, Emma enfim se permitiu parar. Deu uma olhada em seu livro. Estava perto de um parque de diversões no qual costumava se enfiar e entrar em brinquedos sem pagar. Era segunda, estava fechado. O lugar perfeito para se esconder do mundo e ler um pouco.

Ela pulou as grades do parque com a habilidade que a condição de menina órfã, sem ninguém, a obrigara a desenvolver e foi direto para o carrossel. Suas luzes estavam estranhamente acesas. Era lindo e combinava com o entardecer alaranjado. Emma se acomodou, colocou na boca alguns doces e iniciou sua leitura. Passou horas lendo, perdida num mundo encantando, com um sorriso congelado nos lábios. Não conseguia parar. Que engraçado, a protagonista da história também era uma menininha órfã, chamada Emma, de oito anos. Um dia, a Emma do livro descobria que era sim muito importante, que tinha uma jornada a cumprir a fim de quebrar uma maldição terrível.

Seria maravilhoso ser tão especial, ser aquela Emma, pensava.

Ela gostou particularmente de um trecho:

“_ Emma, você salvará uma cidade inteira, fará o tempo e a vida voltar à ela, a livrará da maldade da Rainha. E também com seu ato, a salvará, de si mesma, de sua solidão. Saiba que as vezes, as pessoas mais cruéis são aquelas que mais precisam de amor. Essa é sua missão. ... “

Que lindo aquela parte, ela disse a si.

Ansiosa, Emma buscou na capa o nome do autor daquela história tão interessante.

Ou melhor, autora.

Eliza Meredith Bell.

Storybrookes, 1990

_ Mandou me chamar, senhora prefeita?

Regina virou sua cadeira, ficando frente a frente à Sidney.

Ela suspirou.

_ Sim. – fez uma pausa – preciso que...

A partida de Owen, três dias atrás deixara Regina obcecada.

O que acontecera com eles?

Ela precisava saber.

_... procure informações sobre algumas pessoas.

_ Certo, agora mesmo. – Sidney sentou-se e abriu um caderninho, pronto para captar exatamente o que a rainha queria.

_ Procure.... por Bernard Bell, e...

Ela engoliu a seco e se remexeu em sua cadeira, pouco confortável com o que diria a seguir.

_ Eliza Bell.

Regina esperou ansiosamente por uma resposta do detetive. As horas pareciam se arrastar, sua cabeça fervilhava, pensando em mil possibilidades. Ao ver pela janela Sidney finalmente atravessar a rua, vindo em direção à sua casa, ela sentou em sua cadeira. Estava tremendo.

Sidney deu três batidas na porta e então entrou.

_ Com licença. – disse ele, sorrindo.

Regina fechou suas mãos ao redor da poltrona. Era puro nervosismo.

_ E então?

_ Bem, sobre Bernard... - ela não pode esconder sua emoção ao ouvir o nome dele . Fitou Sidney com olhos de criança ansiosa – não encontrei nada, lamento.

A prefeita deixou a cabeça cair. Cerrou as pestanas.

_ Mas achei sobre Eliza – completou ele, sorrindo.

Regina tornou a olhar em sua direção, o observou mexer numa pasta.

Aquela menina.

_ Aqui está. Eliza Meridith Bell. Inglesa, escritora de contos de fadas. Seus livros fizeram muito sucesso na Europa durante as primeiras décadas desse século. – leu ele, de um papel - seu livro mais conhecido é A lenda dos amantes do Tempo...

Regina estremeceu.

_... depois de publicá-lo, em 1938, não se teve mais noticias dela. Isso foi tudo que encontrei. Além dessa fotografia - Sidney estendeu uma folha à rainha.

Regina pegou a página dotada de uma grande foto ao centro. Dela, uma mulher incrivelmente bonita, de uns trinta e cinco anos a encarava, sorrindo, tímida. Sua personalidade forte percebia-se através de seu rosto, por sua postura. Em seu olhar claro havia um visível pesar.

Quem fora aquela pessoa?

Regina encarou a fotografia por horas. Não deixou um segundo sequer de pensar que estava sendo observada de volta.

_Eliza...

1888

Ela não conseguia chorar. Não sentia fome, frio ou sono. Seus olhos azuis brilhavam desamparo na noite negra.

Regina havia ido embora.

E a culpa era dela.

Eliza sentia sua desgraça fisicamente. A dor parecia contaminar cada uma de suas células.

Num certo momento, após passar tempo bastante se torturando, presa entre o transe a realidade, perguntas a atacaram.

Onde estava papai?

Maise?

Ela ouviu o chorinho.

Henry.

Correu a seu encontro. O pegou do berço e o embalou. Ainda assim o irmãozinho não parava de chorar.

Ela não sabia lidar com aquilo, era só uma criança.

Era. Fora.

O que seriam deles?

Numa manhã, quando já achava que haviam passado quase uma semana completamente sozinhos na mansão, ela viu o pai descendo as escadas. Um sujeito amarrotado, sombrio, sem o menor resquício do homem bonito, do seu papai, que existira dias antes.

Ele lançara um olhar inexpressivo para Eliza e Henry, em seus bracinhos. Seguiu até a porta.

Uma onda de pavor atingiu Liz.

Tinha medo de que ele saísse e jamais voltasse.

E de fato, Bell pretendia passar por aquela porta e sumir.

_ Papai... – chamou ela, com sua vozinha desesperada – onde o senhor vai?

Bernard olhou para a filha, como se enfim caísse na real e enxergasse seu rostinho aterrorizado prestes a cair no choro, o bebê que ela segurava.

O que estava fazendo?

Ele correu até os filhos, se ajoelhou diante de Liz e a abraçou. Os três choravam.

_ Estou aqui meu amor, sempre estarei.

A menininha tagarela, cheia de sonhos, que via beleza e magia em todos os cantos morrera na noite da tragédia. Quem tomou seu lugar foi uma garota assustada, que quase nunca falava. Não se portava como criança, não o era. Apesar da pouca idade, tinha uma cruel visão de se mesma: esquecera as bonecas, as brincadeiras. Afinal, não merecia uma infância, nem mesmo pequenas doses de felicidade. Precisava ao invés disso, ser valente. Papai e Henry necessitavam dela mais que tudo.

Irmã Judy estava finalizando suas orações do dia quando viu a criança entrar no templo sorrateiramente e logo após, vacilante, se ajoelhar num dos últimos bancos da igreja. Não conseguia dizer o que lhe chamou mais atenção na garotinha: se seus cabelos loiros, sua miudez, as mãozinhas unidas ou o fato de que ela chegara sozinha ali. Assistiu a cena por um tempo do qual não dispunha, angustiada com aquele rostinho compenetrado que mesmo de pestanas fechadas exibia uma desolação tremenda. Por fim, acabara indo cuidar de suas obrigações.

Uma hora mais tarde, limpava o oratório no momento em que ouviu uma vozinha. Congelou. Ainda estava ali, só podia ser ela.

_ Deus... O Senhor está ai? - Irmã Judy estava imóvel, com um nó na garganta e as costas coladas à madeira do compartimento. _ Eu... eu não se devia estar aqui. Na verdade, eu nunca rezei. Estou fazendo certo? Só queria dizer que... sinto muito. Fiz coisas tão erradas. - ela fez uma pausa - e agora papai já não sorri, meu papai de verdade morreu. Aquele que está em casa não conheço. – Houve mais silêcio - Sinto tanto medo, Deus... está tudo tão diferente. As vezes queria apenas que o Senhor me levasse.... - a freira sofreu calada até perceber que a criança mal conseguindo falar, tomada por um choro entrecortado por soluços. Se segurou para não sair dali e abraça-la.

_ Desculpa, Deus. Desculpa! - Ela observou fiapos do rostinho torturado através da tela que separava o sacerdote das pessoas que ajoelhadas ali, se confessavam. As pequenas mãos unidas, tensas, o corpinho tremulo, tudo partia-lhe o coração.

_ Espero que um dia o Senhor possa me perdoar.

E foi embora.

Uma lágrima escorria pela face de Irmã Judy enquanto Eliza se afastava. À noite, quando fora dormir, rezara pela garotinha. Nunca se esqueceria de incluí-la em suas orações.

_ Senhor, por favor, cuida dessa alma desamparada!

Eliza arrastava consigo, para qualquer lugar que ia, sua dor, sua culpa. Vivia por viver, guardando em seu jovem peito um arrependimento tão forte do tipo que muito morriam sem conhecer, sem sentir. Pessoas comentavam, parecia doente de tão esquelética. E talvez até estivesse danada da cabeça, pois andava por ai com uma expressão fantasmagórica no rosto, completamente alheia ao mundo. Não tinha amigos. Wendy desaparecera misteriosamente. Jamais fora encontrada. Tornara-se um dos maiores mistérios de Londres. E Alice, um certo dia aparecera dizendo que fora ao Pais das Maravilhas, que vira coelhos falantes e seres mágicos, vivos. Foi diagnosticada como louca. A família saiu da cidade com sua vergonhosa filha. Eliza nunca mais teve notícias deles. Tudo relativo a ela parecia amaldiçoado. Se culpava por isso também. Na escola, ficava sozinha, era a esquisita, a diferente. As risadinhas, as piadas, os olhares lançados a ela eram comuns. Não tinha importância. Apenas aguentava as horas naquele lugar horrendo para enfim voltar para casa. O silêncio era regra na mansão dos três solitários, só quebrado quando todos os dias, no por do sol, Bernard tocava aquela canção.

Regina.

Ele a sentia na ponta de seus dedos, no ar, em cada parte da melodia. Ela, ali, como nunca deixara de estar. Era o que o permitia continuar. Bernard ia de casa para o trabalho, do trabalho para casa. As conversas que tinha com os filhos eram vagas. Os raros passeios, os natais, os bons momentos em geral, frágeis. A música era a única coisa que lhe traziam vida novamente, por meros minutos.

Ao longo dos anos, em certas ocasiões, ouvir o piano foi insuportável a Eliza. Ela corria e trancava-se no quarto em que a memória de sua mãe vivia. Ficava cercada por fotografias suas, por histórias que ela escrevera, suas roupas, seu perfume. Chorava, pedindo forças a ela, aonde quer que estivesse, se desculpando por ter arruinado a vida do pai. Ouvia desespero e uma dor que extrapolava os limites possíveis nas notas que Bernard tocava, diariamente. Sentia o peso da culpa em seus ossos, sua alma. Queria cuidar de seu irmãozinho. De papai. Devia isso à mamãe. Mas não sabia como. Quando a avó aparecera querendo leva-los ela jurou que ficaria ao lado do pai. Não podia abandoná-lo. Desde já estava certa de que devia dedicar-se integralmente à ele. E se Henry fosse embora, seria o fim deles, definitivo, de tudo que foram: uma família. Porém... Henry não conheceria Annabeth, nem Regina. Era um deles e ainda assim, não era. Aos doze anos, Eliza já havia vivido o bastante para saber que a única forma de amá-lo de verdade seria deixa-lo ir, livrá-lo das feridas abertas, as quais, apagar do coração, para ela e para Bernard, já era tarde demais.

Ela aprendeu a fugir de si se enfiando no quartinho de Annabeth. Lá, a dor cessava. Folheava seus desenhos, lia seus escritos e era invadida por amor pela mulher que fora sua mãe. Passou incontáveis noites no chão frio do cômodo, sentindo-se estranhamente abraçada por ela. Decidiu ser como ela fora, fazê-la viver através dela. Faria tudo o que os pais sonharam em fazer, um dia, em nome deles.

Começou a escrever. Em papeis avulsos, cadernos, durante as aulas. Imaginava histórias, personagens, e escapava de sua realidade amarga, se aproximava da mãe, era quase feliz. Na idade em que a maioria das meninas inglesas planejavam suas festas de debutante, já ansiando um marido, Eliza escrevia, compulsivamente. Bernard a notava, tão crescida, com as mãos borradas por tinta, concentrada em sua escrita e via, dolorosamente, Annabeth no lugar de Eliza. Ela percebia. Mas não podia deixar de escrever.

Aos dezoito anos conseguiu publicar um de seus contos prediletos num jornal, Mulan. Os próximos anos ela passaria publicando pequenas histórias, amadas no país todo, no periódico. Liz tornou-se Eliza Meredith, uma escritora excessivamente bela e enigmática. Destoava das outras mulheres. Não era como elas. Parecia pouco dar valor a sua beleza, a seu sucesso estrondoso ou a assuntos tolos tão queridos pelas outras. Era notada aonde quer que fosse. Não fazia diferença. Era seca com pretendentes. Chegou até mesmo a recusar vários pedidos de casamento. Envolvia-se as vezes em casos que duravam dias. Homens não lhes eram prioridade. Depois de adulta fez amizade com poetas, pintores, escultores, boêmios da cidade. Ainda assim, não se permitia a eles, de fato. Era reclusa. Só queria realmente estar com seu pai, em casa. Não falava nunca de Bernard, ou Henry. Quando a viam, seus amigos sempre ficavam admirados com ela, sua personalidade, suas opiniões. Não dava a mínima para convenções sociais. Era uma alma livre, e também, presa, em algum ponto. Possuía olhos nebulosos, cheios de barreiras. Ninguém estava convidado a adentrar em seus abismos, desvendá-la.

Com o dinheiro que ganhara escrevendo comprou a antiga propriedade da família Bell de volta, somente por causa do chalé em que seus pais planejaram morar. Passava fins de semana inteiros em seu pequeno e acolhedor cantinho de frente para o mar, caminhando pelos jardins, senhora de seu lugar, unicamente seu.

Em 1907, numa noite de tempestade em que a ventania ameaçava quebrar as vidraças do chalé, ela tentava em vão se concentrar no final de um conto quando ouviu três batidas na porta. As ignorou. Devia ser mera impressão sua, algum som da chuva. Era impossível que houvesse alguém lá fora, com aquele tempo maluco. Mais duas batidas insistentes soaram. Desconfiada, ela destrancou a fechadura e voltou para sua mesa. Piscou os olhos. Ao abrí-los, um homenzinho completamente seco, sem um pingo d´agua na roupa ou no rosto, sorria assustadoramente diante de si.

Eliza nunca o vira antes.

Mas ele a conhecia, muito bem.

Isaac.

_ Miss Eliza Meredith Bell... – disse o estranho, deliciado.

_... como desejei esse momento, encontra-la.

Liz estremeceu.

_ Quem é você!?

Ele não respondeu de imediato, apenas seguiu em sua direção.

_ Chame-me apenas de o autor.

A moça foi lançando-se para trás conforme o homem se aproximava. Ele passou os olhos pelos papeis espalhados por sua mesa, com extremo deleite.

_ Sublime... - a forma como falou a palavra fez um temor incontrolável a invadir.

Quem era aquele indivíduo? Como a achara? Poucos sabiam de seu chalé.

_... jamais sonhou em fazer coisas grandiosas, talvez catastróficas e extraordinárias com seu talento? Com suas próprias mãos? - ele movimentou os dedos no ar.

Seu olhar sádico cruzou com o de Eliza.

_ Pois você pode, Liz...

Ela se desesperou. Do que estava falando?

_ ... com essa caneta - ele ergueu um instrumento, solenemente - destinada ao escolhido, de ser o guardião de tantas vidas e destinos, um escritor, aquele que levará a frente um trabalho milenar e sagrado. A guardiã. Você.

Eliza se levantou.

_ Desculpe, não estou interessada - respondeu, pensando numa maneira de por aquele lunático para fora de sua casa.

O homem sorriu, irônico.

_ Não está interessada...

Aquilo já era demais. Eliza perdeu as estribeiras.

_ Não! Saia de meu chalé! Agora! - gritou, selvagem, com olhos esbugalhados.

Um milésimo depois, inexplicavelmente, ele estava com seu corpo a centímetros do seu, enlaçando sua cintura. O polegar pegajoso de uma de suas mãos estava na nuca da escritora. O indicador percorria sua bochecha pálida. Ela mal respirava. Suas pupilas azuladas estavam pintadas de medo.

_ Tão jovem... audaciosa... e bela. Cruelmente bela... – sussurrou, com o rosto quase encostando o de Eliza. Ela sentiu seu hálito azedo em sua carne, o rastro de calor que o dedo deixava em sua pele, o desejo intenso na voz dele.

O que aquele psicopata faria com ela?

_ ... tão idêntica à mamãezinha. Víboras. – ele colocou seu lábio inferior no meio de dois dedos. Liz pensou que o homem iria mordiscá-lo, se sobressaltou ao ouvir aquelas palavras. Tentou fugir dele, mas foi agarrada por trás. A moça congelou. O desconhecido continuou a percorre-la, passeando com sua palma por seus seios, a barriga, seu quadril, num abraço sufocante. Liz se remexeu. Ele a segurou pelos punhos, sorrindo uma vitória que logo cairia por terra.

A escritora executou um último movimento, na tentativa de escapar de seu predador. Houve instantes de silêncio em que ela o encarou firmemente, com uma coragem insana. O filete de cuspe escorreu pelo rosto, cheio de ódio, dele.

_ Garota estúpida! – com violência, ele a jogou no chão – Vai se arrepender amargamente de sua escolha, como sua mãe ordinária se arrependeu, e quando isso acontecer, já será tarde demais para voltar atrás.

Raios branquearam tudo, dentro e fora do chalé, brilhando nos olhos do autor. O estrondo fez a terra tremer. Eliza se encolheu.

Cessada fúria da natureza, ele havia desaparecido.

Londres, 1886

_ Mamãe! Podemos entrar na livraria, só um minutinho? Por favor! Por favor! – soltou a garotinha, com incontrolável ansiedade.

A mãe inclinou-se à altura da filha, sua cópia fiel, ajeitando seu casaco.

_ Hmm. Sim! Mas não podemos demorar! Papai nos espera.

A menininha beijou a mãe e depois disparou para dentro da loja. A mulher se demorou um pouco mais, reparando nos livros expostos na vitrine, ainda que estivesse nevando.

_ Seria maravilhoso se fosse uma de suas histórias nessa vitrine, não é mesmo, Annabeth? Daria a vida para ter seu nome na capa de um livro, como esse. Por um instante ela não reagiu, como se aquela voz fosse apenas sua consciência falando.

_ Você já se perguntou tanto... como seria se o mundo conhecesse seus contos, Valente, Aladim, Emma... Eu sei.

A moça olhou para o lado, enfim se dando de que havia alguém ali. Um homem, inteiramente desconhecido a ela.

Permaneceu inexpressiva. Por dentro, porém, o terror a preencheu, de súbito.

Apenas Bernard sabia de suas histórias.

Ela tornou a encarar a vitrine, como se nada estivesse acontecendo. Na loja, estava Eliza, frenética, indo para todos os lados, genuinamente encantada com os livros. A criança a encontrou com o olhar, sorriu um de seus típicos sorrisos exagerados e sinceros e acenou.

Annabeth acenou de volta.

_ Você pode tanto, Annabeth! O destino a escolhera, para ser bem mais do que uma aspirante a escritora, para escrever vidas! - disse ele, deslumbrado com a beleza da moça. Sob a neve imaculada, ela parecia a obra do melhor pintor do mundo.

Ela não conseguia enxergar nexo algum no que aquele estranho dizia. Devia ser um louco fugido do hospício. Mas como explicar ele saber de sua vontade de ser escritora?

_ Desculpe, não estou interessada. – respondeu, fria, tentando se livrar dele.

_ Venha comigo, e eu lhe revelarei mágicas e infinitas possibilidades... – o homem a puxou pela mão.

Ela retirou seus dedos dos dele com um tranco.

_ Já disse, não me interesso.

_ Não? - desafiou o desconhecido, sorrindo, com um brilho assassino no olhar.

Annabeth começou a caminhar para trás, apavorada.

_ Como ousa! - disse, furioso, mas internamente deliciado com as consequências que viriam da escolha burra que ela fazia.

_ Seria uma pena se coisas terríveis acontecessem à uma fascinante garotinha de quase três anos de idade... – sereno, ele fitou Eliza, dentro da livraria e continuou – e mais ainda, se ocorressem também a um pobre coitado que se culpa pela morte do pai e do irmão.

Annabeth o encarou, atônita.

_ Afaste-se de mim!

Ele se aproximou. Ela temeu que fosse agarrá-la. Mas não. Tirou papel do bolso, e com uma caneta, escreveu algo nele.

Estava escrito seu destino.

_ Certo! Você fez sua escolha! Parabéns mamãe!

Isaac desapareceu, numa nuvem de fumaça.

Uma dor alucinante brotou no ventre de Annabeth, encurvando-a, obrigando-a à levar às mãos à barriga. Suas entranhas reviravam, o sangue fervia. Sua visão escureceu.

Naquele momento ela soube. Em nove meses Henry nasceria.

E ela estaria morta.

Depois da visita do autor, Eliza passou anos mergulhada numa fixação implacável. Tentava juntar as peças, entender a aparição do homem, o que ele lhe dissera. Não podia ser daquele mundo. Cogitar que magia estava envolvida naquele mistério era hilário. Mas eles a haviam visto e vivido, da pior forma possível, para saber que sim, ela existia. Quase enlouquecera de tanto pensar sobre, chegando a conclusão de que não poderia ser um acaso. O autor tinha algo a ver com a maldição em que viviam desde 1888. Regina viera até eles por um motivo. E voltaria para eles. De alguma forma, o homem era a resposta, a solução de que precisavam desesperadamente. A tortura de Liz não tinha fim. Tanta infelicidade parecia ter contaminado até mesmo a saúde de seu pai. Bernard sofria com uma tosse insistente e asma. A escritora chamou um médico para examiná-lo. Ouviu calada, de cabeça baixa, seu veredito, amargando cada palavra.

Não estava preparada para o diagnóstico.

Uma bactéria raríssima estava alojada nos pulmões do pai. Ele faria um tratamento a base de antibióticos, mas com o passar do tempo, não se sabia quando, talvez depois de uma década de remédios, vivendo relativamente bem, a enfermidade venceria e o consumiria.

Tinha de correr contra o relógio.

Após nove anos de insanidade, de buscas às cegas, caçando pistas sobre o autor, relatos, e qualquer informação que pudesse leva-la até ele, após pedir agoniada a Bernard a permissão para viajar, sentindo-se a pior filha do mundo por deixa-lo, Eliza partiu, com uma mala na mão e esperanças no peito. Gastaria meses e até ano se preciso, mas enfim se redimiria. Seguiria os passos daquele homem, o encontraria e ele devolveria a vida à seu pai.

Traria Regina de volta.

Possuía motivos para acreditar nisso, de que ele teria esse poder. Tinha de acreditar. Só isso poderia curar Bernard, ou lhe dar paz em seus últimos anos.

Ela.

Já haviam se passado quase trinta anos da partida da rainha e ele continuava tragado pela mesma tristeza do dia em que se separaram.

Em 1916, Eliza desembarcou na Índia. Lá começou sua saga, primeiramente passando por Délhi, e em seguida, por Jaipur e Bangalore. Visitou pontos em que o autor fora visto, conversou com as pessoas. Não teve sucesso em sua caçada. Seguiu então para a Grécia, indo até Atenas. Fez esforços monstruosos lá e também no Egito, em Cairo e Alexandria. Ainda assim não havia nem sinal do homem. Nada que clareasse sua mente quanto onde ele estava. Em outra situação, ela amaria suas viagens. Era um sonho antigo, percorrer o mundo, conhecer seus lugares mais exóticos. Mas aquele não era o momento. Em suas andanças só havia apreensão e procura. Devia encontrar o autor, salvar seu pai. Trocava cartas mensalmente com ele. Bernard dizia que estava bem, do quanto seu trabalho no banco estava lhe sugando. Eliza não deixava de pedir perdão em nem uma carta sequer, por estar longe dele. Mas era preciso, valeria a pena.

Quase um ano e meio depois de ter saído da Inglaterra, Eliza fez a tentativa derradeira.

Ela apertava firme o corrimão de aço do navio, observando calada o Corcovado emoldurando o anoitecer alaranjado, com o coração cheio de dúvidas, suplicando que naquelas terras enfim conseguisse algo. Que algo bom lhe acontecesse.

Havia chegado no Brasil.

O que lhe aconteceria naquele país, mudaria sua vida para sempre.


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