A lenda dos amantes do Tempo escrita por Geovanna Ferreira


Capítulo 27
A autora - Parte II: A mulher que desafiou o Tempo


Notas iniciais do capítulo

Espero que vocês gostem desse capítulo tanto quanto eu gosto! Eliza é melhor personagem, sinceramente. A impressão é que escrevi um romance inteirinho sobre ela em míseras 25 páginas. Comentem! Você que esteve até agora escondidinho, apareça! Pode escrever pouco, muito, não importa, só me dê sua opinião! Lembra que pus que Liz morreu em 1958? Pois é, eu tava meio no modo automático aquele dia e errei, a data ceritnha vcs vão conferir agora nesse cap!!! Quem puder me ajudar comentando, favoritando ou recomendando vai fazer uma alma imensamente feliz!!!



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" Bem te vi, bem te vi

Andar por um jardim em flor

Chamando os bichos de amor

Tua boca pingava mel

Bem te quis, bem te quis

E ainda quero muito mais

Maior que a imensidão da paz

E bem maior que o sol

Onde estás?

Voei por este céu azul

Andei estradas do além

Onde estará meu bem?

Onde estás?

Nas nuvens ou na insensatez

Me beije só mais uma vez

Depois volte prá lá "

Jardim da Fantasia

Café da manhã devidamente tomado, Sebastian Bennet decidiu que era hora de observar seus pássaros. O pesquisador pegou seu binóculo da mesa e se aproximou das janelas. Para além delas, a natureza exuberante convidava os homens a apreciá-la. De seu quarto, no Instituto Inglês de Pesquisa Natural instalado no Rio de Janeiro, Sebastian inspecionou o céu, as árvores. Encontrou canários, tucanos, araras multicoloridas, bem ti-vis. E algo a mais, também.

Alguém.

Por acaso, enxergara ao longe, uma moça, tão longe que tivera de aproximar as lentes do aparelho.

O que fazia ali? Num banco improvavelmente construído no meio do nada? Era tão linda, e tão séria. Seus olhos apagados estavam fixos num ponto certo. Estava imóvel, como se a tristeza que emanava dela houvesse a petrificado, como se vagasse dentro de si. O vento balançavam fios de seu cabelo louro.

Sebastian perdeu a noção do tempo a expiando. Sem perceber o quanto estava afetado por ela.

À noite, sonhou com aquele olhar, imaginando mil motivos que explicassem sua dor muda. Dia seguinte, não resistiu. Agarrou o binóculo e a buscou. Sorriu ao encontra-la, no mesmo lugar, do mesmo jeito. Como uma fada no topo do morro, uma aparição, um milagre.

Ele caminhava apressado, subindo num terreno íngreme, xingando baixinho. O cobiçado rosto de Sebastian estava vermelho, de fúria. O pessoal do Instituto conseguira uma façanha sem igual: deixar um filhote de leopardo escapar. Resolvera cuidar ele mesmo do problema. A uma hora saíra para o meio do mato, em busca de Leopold. Não gostaria nem de pensar o que aconteceria se não fosse capturado.

E então ele a ouviu. Em inglês.

O destino agiu, maravilhosamente.

_ Você é um leãozinho adorável.

Sebastian foi seguindo o som, ansioso por conhecer a dona daquela voz.

Ela. A moça.

Ele ultrapassou alguns arbustos e enfim a viu, no mesmo ponto em que a vira duas vezes, antes. Acariciava Leopold, perfeitamente confortável com seus mimos.

Era ainda mais encantadora sorrindo.

Eliza Bell.

Ficou radiante, cheio de apreensão, como um garotinho, ao perceber que ela iria com ele até o Instituto, já que o pequeno leopardo não desgrudava dela. Quem era aquela mulher? Queria conhecer sua vida inteira, seus sonhos, seus medos, queria abraça-la ali mesmo.

Conversavam e mesmo que estivesse num dos lugares mais bonitos do mundo, cercados por verde, pelo céu azul límpido, pelo som dos bichos, só tinha olhos para ela. Foi para Sebastian como se no mundo só existisse Eliza. O jeito com que ela se movia, seu sotaque deliciosamente britânico, sua timidez, absolutamente tudo sobre ela o hipnotizava. Por pouco ele não lhe pedira para vê-la outra vez. Mas... ela era apenas educada com ele. O pesquisador via as barreiras impostas explicitamente pela moça, o quanto era reservada. Havia algo de inalcançável nela.

Uma semana se passou, e ele não a esqueceu. Estava até se prejudicando em seu trabalho, não conseguia se concentrar. Resolveu num domingo nublado ir até a praia de Botafogo, tentar espairecer a cabeça. Em vão. Sebastian fitava o vai e vem azulado do mar e lembrava do azul dos olhos dela. Iria enlouquecer se não a visse novamente.

E então ele viu algo estranho acontecendo nas águas. Alguém era tragado pelas ondas, estava sendo engolido pela força da natureza. No mesmo momento, o inglês mergulhou no mar gelado, nadando contra a correnteza. Por pouco quase não se afogou também ao ver quem se afogava.

Ela. Semi-inconsciente, com o rosto doentiamente branco e os lábios roxos. De imediato, ele a abrigou em seu corpo e lutando contra as ondas, a levou até a praia. Sebastian se desesperou, uma lágrima se perdeu em seu rosto molhado. Contra a areia branca, de pestanas cerrados, ela parecia morta. Ele se agachou e fez respiração boca a boca. E a magia aconteceu, como no beijo que o príncipe dera em Branca de Neve. Eliza abriu os olhos e viu seu salvador. Sebastian.

Havia a arrancado da morte.

A salvado de seu próprio desejo de por fim em sua vida.

Ainda relutante, mas sem poder recusar depois do que acontecera, Eliza aceitara se encontrar com Sebastian. O encontro se repetiu, se multiplicou. Aos poucos ela foi se permitindo, ao ver que pela primeira vez achara alguém que a fazia rir, que libertava a antiga Liz, que tornava que fosse pequenas doses de felicidade, possível. Sem perceber se encantou por ele tanto quanto ele se encantara. Sebastian Bennet era também inglês, de Manchester, mas a anos viajava o mundo, enfiado nos lugares mais exóticos, fazendo pesquisas sobre novas espécies de animais. Era a perfeita mistura entre virilidade e sabedoria. Tinha olhos verdes vivos, uma cabeleira negra e um bigodinho atrevido. Era um homem notável, livre, de aparência excêntrica e arrasadora. Sabia várias línguas e vira do globo mais do que a maioria das pessoas veria.

Ele a levara para rever Leopold e conhecer os outros bichos do Instituto. Num fim de tarde, a conduziu à Vista Chinesa, um de seus lugares preferidos na cidade, um ponto, no alto dela onde estava instalado um coreto chinês, que oferecia uma das mais belas vistas do Rio.

_ É lindo... – disse Eliza, observando a paisagem. O laranja da anoitecer tingia o azul do céu, se misturando com as nuvens, os morros, a cidade ao longe.

Ela sorriu, abrindo os braços, como se quisesse abraçar o mundo.

E Sebastian, naquele momento, soube. Ela era a mulher de sua vida.

_ Não se sente infinito? Livre como um pássaro? Como se ao contrário da vida, tudo fosse possível?

Ele notou uma extrema satisfação em suas palavras. E dor, também.

_ O que tanto te machuca, meu amor? - a puxou até ele. A expressão de Eliza se fechou.

E então, fez o que nunca havia feito antes, abriu seu coração, ali mesmo, contou-lhe sua história, inacreditável história. Mesmo com medo de que ele a considerasse louca, contou tudo, sua dor que durava décadas, sua esperança de que pudesse dar um final feliz à seu pai. Sua tentativa de suicídio, depois de, outra vez, não encontrar o autor e receber uma carta de Bernard em que falava de uma piora em seu estado de saúde.

Após isso, ele a amou ainda mais. Mais tarde, numa cabana de frente para o mar, eles fizeram amor, pela primeira vez, se amando, se devorando a noite toda, vivendo seu pedacinho de sonho tropical.

Com Sebastian, Eliza viveu o melhor mês de sua vida. Juntos, percorreram a cidade, andaram de teleférico, conhecendo o Pão de Açucar nas alturas. Visitaram o Jardim Botanico, onde Liz recebeu uma aula de botânica de seu professor favorito, foram até a Igreja da Candelária. Eliza só sossegou quando conheceu a Biblioteca Nacional. Passaram até mesmo pelas feirinhas de negros. Passado esse tempo, descobrindo o Rio de dia, se amando durante as madrugadas, ambos sabiam, era hora de partir. Eliza devia seguir em sua saga e Sebastian tinha uma nova missão a cumprir no Amazonas, em terras tupis. Ele a convidou para ir junto. A indecisão tomou conta de Liz. Parecia desrespeitoso prolongar sua viagem quando devia estar procurando o homem. Por fim pensou em seu pai, que a incentivaria a ir em frente. Viveria alguns dias com Sebastian e os índios na Amazônia, conheceriam a cidade, visitaria o Teatro José de Alencar dentre outros lugares e então enfim, ela partiria.

Um dia antes de seguirem para o norte do Brasil, Eliza quis agradar Sebastian. Começou a arrumar a mala dele. Estava radiante com sua nova aventura. Foi quando, num dos bolsos da bolsa encontrou uma pequena foto. Uma mulher morena, sorridente, vestida de noiva estava de braços dados com ele.

Sebastian.

O seu Sebastian.

Atrás da fotografia estava escrito, “ casamento, 1904 “ .

_ Liz... – o pesquisador chegou ali na mesma hora - por favor, olhe para mim...

_ Quem é essa? - perguntou, seca, ainda de costas para Sebastian.

_ Helen, minha esposa. – disse de uma vez - Mas... ela nunca me amou. Nunca nos amamos. Foi um casamento de conveniência que só fez mal aos dois. Hoje ela está numa cama, doente.

Eliza o odiou mais, por ter uma mulher enferma e ainda assim, ter tido a coragem de seduzí-la.

_ Liz, meu amor... – suplicou ele.

Ela enfim virou-se para ele, com olhos encharcados.

_ Desculpe... – disse ela, lhe estendendo a foto - já destruí famílias demais.

Quando fizeram amor, à noite, amaram-se com dor, fúria e desespero. Estavam dizendo adeus, em forma de sexo, de prazer, de beijos e abraços. Terminado tudo, Sebastian percebeu que Eliza chorava em silêncio.

Dentro do navio, enquanto deixava aquele pais que lhe dera tanta alegria e na mesma medida, lhe provocara tanto sofrimento, já rumo aos Estados Unidos afim de fazer sua tentativa final de busca, Eliza tinha os dedos sobre o ventre.

Desejava com toda sua alma que Sebastian houvesse deixado sua semente nela. Nunca se imaginara mãe, mas se não poderia tê-lo, rezava para que tivesse já abrigasse dentro de si, um pedacinho dele, só seu, que amaria para todo o sempre.

_ Por aqui, senhorita Bell. - Eliza seguiu a enfermeira hospício a dentro. Passou por pessoas babando, se comportando como animais; sapos, cavalos, cachorros. Alguns deles a encaravam com olhos loucos. Liz lamentou por eles.

A mulher empurrou uma porta e elas entraram num quarto minúsculo que continha apenas duas cadeiras, uma cama e uma janela. Uma moça estava de pé, perto das cortinas, olhando a paisagem, lá fora.

Aquele era seu único contato com o mundo exterior.

A enfermeira as deixou à sós. A escritora sentou-se numa das cadeiras.

_ Você deve ser a nova psiquiatra do hospital – intuiu a moça, sem tirar os olhos da vista. Vestia uma ridícula roupa branca, estava descabelada e excessivamente pálida. Tinha um aspecto terrível.

_ Não. Sou Eliza Bell e estou aqui porque acredito em você.

A mulher olhou para ela, assustada.

_ Acredita?

_ Sim.

Eliza ficara sabendo de Dorothy Gale quando ainda estava no Egito. Uma camponesa do Kansas que desde a adolescência estava internada num hospício, por defender com unhas e dentes que visitara uma terra mágica.

Oz.

A escritora vira nessa história talvez, uma luz, uma esperança, para a sua própria.

E se...?

Dorothy sentou-se perto à Eliza, sem saber como agir, sem conseguir internalizar que alguém acreditava nela.

_ Preciso saber, Dorothy – iniciou Liz, com cuidado e incontrolável apreensão – o que você viu em Oz?

_ A cidade das esmeraldas, os munchikins...

_ Não encontrou uma mulher bonita, de cabelos negros, assim? - Eliza tirou um desenho da Rainha de sua bolsa e mostrou a Dorothy que balançou a cabeça, dando uma resposta negativa.

_ Não viu Regina?

_ Não.

A escritora suspirou.

_ Mas... me lembro das Bruxas de Oz, Glinda... e uma mulher horrível...

Dorothy tapou seus ouvidos, encurvou-se e fechou os olhos, como se fosse ruim demais até mesmo pensar naquela pessoa. Eliza pôs a mão em suas costas, a acolhendo.

_ Ruiva... cheia de ódio. Zelena. Dizia que arruinaria a vida de sua irmã Re... Ra... desculpe não me lembro o nome.

Eliza voltou para a Inglaterra mais calada e reflexiva do que o habitual. Ao vê-la entrar pela mansão, Bernard soube que, o que quer que fora buscar, não havia encontrado. E mais, via por seus olhos, estava mudada, profundamente. Logo, estava trabalhando duro em dois novos livros, escrevendo com um esmero redobrado contos como A pequena sereia e A princesa e o sapo, inspirado numa moça muito simpática que conhecera em Nova Orleans, quando fora atrás de Dorothy, na América. Os livros tinham de ser um sucesso absoluto. Tinham. Se não encontraria o autor, iria fazer as coisas de um outro jeito. Quem sabe assim, se rodassem o planeta, ou fossem traduzidos para várias línguas, suas histórias chegassem até ela, Regina, se ela estivesse naquele mundo.

Não desistiria. Cumpriria a promessa que fizera a si mesma. Iria trazê-la de volta, custasse o que custasse.

O tempo passou. Nos últimos dias de 1918, Eliza recebeu uma estranha carta de um amigo, pedindo-lhe um favor que poderia lhe sair caro: hospedar alguém em seu chalé, por alguns meses. Mesmo não entendendo direito a situação, o tom confidencial da mensagem, ela lhe respondeu dizendo que poderia enviar a tal pessoa.

De madrugada, depois de viajar horas encolhida num carro, após uma saga que já durava infernais meses, a garota enfim chegou até Eliza. Assim que entrou no chalé e retirou de si o grosso cobertor em que se escondia, a escritora viu seus olhos traumatizados, sentiu sua aura real. Eliza ficou boquiaberta, em transe, ao saber quem era sua hospede.

Anastasia Romanov.

Apenas uma menina de dezessete anos, mas que havia sobrevivido a chacina que dizimara toda sua família, em Iekaterinburgo. Uma adolescente que estava sendo caçada, que valia milhões, morta.

Anastasia levou um tempo para se acostumar com seu lar temporário. Sentia a necessidade de sondar o lugar primeiro, checando se estava segura, mesmo que estivesse no interior inglês, a quilômetros da civilização. Por mais que o pior houvesse passado, parecia ainda viver nele. Todos os dias, tinham pesadelos horrendos, e durante alguns minutos do dia, não suportava, chorava a ponto de ensopar sua roupa. Sua mudez combinou bem com a de Eliza. A escritora ia vê-la dia sim dia não e aproveitava para escrever um pouco. Anastasia mantinha sua casa impecável, fazia todos os serviços de limpeza, e se preocupava em incomodar Eliza o mínimo possível. Ela se interessava por seu trabalho, pedira para ler seus contos, nutria uma tímida admiração por Liz. Certo sábado, Henry resolvera visitar Eliza, para o desespero da escritora. Mas ao ver a cara de bobo de seu irmão mais novo diante de sua hospede, não resistiu, riu e acabou fazendo o que não devia, de jeito algum. Acabou revelando a identidade de Anástasia. Henry ficara em parte desnorteado com a descoberta. Eliza pensou que em outras circunstancias, eles seriam bonitos juntos.

Quando estavam dispostas, Eliza e Anastasia tinham boas conversas. A princesa vez ou outra saía de sua reclusão e soltava comentários espirituosos, que davam indícios da menina brilhante que ela fora antes de sua tragédia. Numa manhã, Eliza a levara para conhecer a antiga mansão de sua família, os gigantescos jardins que mantinham ali. Após um dia inteiro ocupadas com isso, elas jantaram e sentaram fora do chalé, para observar a noite estrelada.

_ Sabe, sei o que você pensa sobre mim, como todos os outros que sabem que estou viva. – começou Anastasia, quebrando o estado de contemplação em que estavam. Eliza a encarou.

_ Coitadinha... será que ela acredita que um dia reencontrará alguém? Tatiana, Olga, Maria, Alexei? - continuou a princesa, como se precisasse desabafar.

_ Sim. Tenho essa esperança, tola, ingênua, mas que mantém viva...

_ ...E que você devia ter também.

Eliza permanecia muda.

_ Somos iguais, Liz, eu vejo em seu rosto. Somos iguais... nós duas perdemos mais do que se pode imaginar... mas, não deixe que a dor endureça seu coração, por favor... não deixe ir a fé por dias melhores, por favor.

As duas tinham lágrimas nos olhos.

Anastasia partiu no início de 1919. Seu plano era ir para a América, para o lugar mais remoto possível, tentar recomeçar. Ao darem o abraço de despedida, Eliza enfim notou o quanto gostava dela, o quanto sentiria sua falta. Depois que se fora ela ficou pensando naquilo que dissera na noite das estrelas, sobre não perder a esperança. Lembrou-se também de Jane Porter, uma conhecida com quem topara anos antes, após ela ter voltado da Àfrica casada com Tarzan, um homem que a décadas fora dado como morto e todo esse tempo, estivera vivendo com macacos.

Se Anastasia acreditava que ainda veria sua família novamente, se um homem que esteve perdido no imenso continente africano voltara à civilização depois de todo aquele tempo, porque Regina não poderia ouvir seu chamado e voltar para eles?

Uma tarde, enquanto buscava um tinteiro numa gaveta da casa de Londres, Eliza encontrou um caderninho amarelado, datado de 1888 com todas as suas páginas escritas. Ela começou ler, curiosa quanto o que a pessoa que as escrevera, dona de uma péssima caligrafia, tanto tinha a dizer. Se deparou com a história de uma órfã que fora abandonada quando bebê por ser bruxa e não o bastante, trabalhara anos como criada da própria família. Eliza pensara estar lendo pura ficção, mas ficou horrorizada ao perceber de que estava lendo um antigo caderno de Maise, onde ela contava sua própria e terrível história. A escritora continuou a ler o relato da governanta, sobre seu amor desenfreado por sua avó Katherine, seu ódio sem limites por Olivia e por si mesma.

Estava chocada. Aquilo explicava tanto.

Ela prosseguiu sua leitura, havia mais. Chegara na parte em que Maise contava de seu desconforto frente a Regina. Sua obcessão crescente, sua desconfiança quanto à prefeita, o quanto ela lhe lembrava Olivia, sua própria pessoa e uma rainha, de um livro. Não entendera muito bem aquilo sobre a rainha.

“ Estou certa de que Regina veio de um lugar chamado Storybrookes. De madrugada saio e faço pesquisas até o amanhecer. Encontrei aquele livro maldito que acabei queimando no passado e lá também havia algo sobre Storybrookes. Ela tem de voltar para lá! Logo! Desaparecer! Se ao menos eu encontrasse aquele homem, tenho certeza de que poderia livrar-se dela. “

Storybrookes.

O homem.

Eliza mal podia acreditar. Fizera tantas descobertas que sua cabeça pesava. Ela remexeu a gaveta, tremula, e encontrou o tal livro de que Maise falava. Leu e releu a história, sobre a filha do moleiro que abandonava sua primogênita para que pudesse ter uma filha rainha, Regina, uma mulher poderosíssima e infeliz, na mesma medida.

Era ela.

A escritora buscou, por horas, no globo terrestre um lugar chamado Storybrookes. Não encontrou.

Ainda faltava sentido. Mas... Eliza estava radiante, o caderno lhe trouxera informações preciosas.

Estava no caminho certo.

Londres, 1920

Isaac deu mais um golada em seu champanhe e sorriu para sua jovem e débil acompanhante, do outro lado da mesa.

Cruella.

Irradiando alegria, observando as pessoas mascaradas dançando frenéticas, ela fez alguns comentários bobos sobre a festa a fantasia na qual estavam. Ele pouco lhe deu atenção.

A banda tocava um jazz legitimamente americano fazendo o restaurante ir a loucura.

_ Vamos! Quero dançar! - disse ela, levantando e pegando a mão dele.

Issac acabou indo para o centro do da massa que movia-se, eufórica. Até que Cruella é uma mulherzinha aceitável, pensou ele, enquanto ela dançava.

Foi quando ele sentiu um toque quente, acompanhado de um perfume inebriante.

A banda começou a tocar uma música estranhamente sensual e ele foi puxado para longe de Cruella. Ao virar-se, enxergou olhos azuis vibrantes debaixo de uma máscara, o cabelo louro reluzente, os lábios vermelhos tentadores, o corpo perfeito coberto por um vestido cor de rosa, em musselina.

Foi enfeitiçado. O mundo parou e logo em seguida estava em câmera lenta.

Eles dançaram por segundos, o bastante para que Isaac se sentisse cada vez mais excitado, e então a misteriosa moça o puxou outra vez, pelo mar de gente, sem desviar seu olhar hipnotizante do dele. Num dado momento, ela sorriu malícia e desapareceu entre as pessoas. Instantes depois, ele a viu novamente, atrás do vidro, fora do restaurante, o provocando a ir atrás dela.

Enlouquecido, Isaac correu, chegando à calçada.

Avistou ao longe, o cabelo loiro virando numa rua, em disparada.

Recomeçou a correr. Estava amando aquele joguinho.

Alcançou a rua em que a moça se metera. Não era uma rua, e sim um beco sem saída. Lá estava ela, muda, de frente para ele.

_ Você quer brincar, docinho?

Sem dizer uma palavra, ela se aproximou. Isaac delirava, pensando que seria agarrado. Lentamente, ela deslizou seus dedos por seu corpo, fazendo o homem arder de desejo. Enfiou sua mão em seu bolso e rápida como águia, a puxou de volta, com papel e um instrumento valioso.

A caneta do autor.

Vendo que a situação fugiu totalmente do esperado, Isaac puxou a máscara da moça que deu passos para trás, ficando a metros de distância.

_ Você... – disse ele, sorrindo, possesso.

Eliza sustentava o olhar, o desafiando.

_ Vá em frente, autora... - falou, com ironia – escreva. Afinal, você tem o poder, como eu, é uma das escolhidas.

_ Somos todos marionetes em seu jogo, não é mesmo? - gritou Eliza, com mágoa.

_ Ah, que espertinha!

Sem perder tempo, a escritora apoiou o papel em sua mascara e escreveu nele.

_ Deixe-me advinhar, escreveu: “ Regina volta para Bernard? “

Eliza arregalou os olhos. Isaac deu uma sonora gargalhada.

_ Isso nunca será possível. Ela jamais voltará, já está escrito. Regina está fadada a desgraça sem fim, e vocês também.

Sem se abater, Eliza tornou a escrever, em dois novos papeizinhos.

E então, sumiu, numa nuvem de fumaça, restando apenas os papeis e a caneta, no chão. Isaac pegou-os e leu, um após o outro.

“ Regina terá seu final feliz. “

“Leve a mim, Eliza, à Storybrookes. “

Ela abriu os olhos e viu uma rua a centímetros de seu rosto. Estava no meio dela. Seu corpo todo doía, principalmente os joelhos, em contato com o pavimento. Eliza ergueu a cabeça e avistou a fileira de casas, os automóveis no asfalto. Levantou-se, começou a caminhar pelo lugar. Parecia vazio, e era lhe de todo estranho. As residências e carros não se assemelhavam em nada com os que ela conhecia. Estava em seu mundo? Ou em outra dimensão?

Uma imensa placa a frente arrancou o sorriso mais verdadeiro de Eliza, em todos aqueles anos.

“ Bem vindo à Storybrookes. “

Havia conseguido.

Ela andou por várias ruas, num ritmo acelerado, atenta a garagens, calçadas e casas. Passou diante do que parecia ser uma escola, onde crianças, vestidas de um jeito que ela nunca vira antes, entravam num prédio sendo recebidas por uma espécie de professora. Liz foi até ela:

_ Com licença, você sabe onde está Regina?

Mary Margaret olhou aquela moça desesperada da cabeça aos pés. Podia facilmente ter saído de um livro de história.

_ Não...

Eliza se afastou rapidamente. Não podia perder mais um segundo sequer. Percorreu mais um quarteirão e entrou no Granny’s. Vasculhou o lugar com os olhos e então gritou:

_ Alguém viu Regina?

Silêncio total. Os anões, Granny, Ruby e todas as outras pessoas que ali estavam a olharam.

Eliza deixou o restaurante como um raio, sem se preocupar em fechar a porta.

Estava cada vez mais aflita. Estava no lugar certo e ainda assim não encontrava a prefeita. Fez outra tentativa. Adentrou numa loja.

O antiquário do Sr Gold.

A escritora se viu cercada por velharias. Sentiu-se confortável pela primeira vez, desde que chegou à aquela terra. Ela foi até o homem que a encarava, do balcão.

_ Posso ajudar?

_ Sim... onde posso encontrar Regina?

_ Regina? - questionou Gold, desconfiado.

_ É.

_ Bem, senhorita...?

_ Eliza Bell.

_ Eliza Bell, não sei. Não poderei lhe ser útil.

Frustrada, ela saiu do estabelecimento, deixando Gold com a pulga atrás da orelha com aquela aparição.

Liz ofegava, seus pés doíam, mas não se permitia parar. Precisava encontrá-la. Ela tinha de estar ali, em algum lugar. E estava.

Eliza congelou ao ver uma mulher sair de uma rua e entrar numa avenida. De cabelos curtos, salto alto, roupas modernas e muita maquiagem na face tristonha que ela conhecera 102 anos atrás.

A Rainha.

Os olhos de Liz se encheram de lágrimas. Ela sorriu.

_ Regina!

A prefeita virou-se para trás e avistou Eliza, um mísero segundo.

O coração da escritora parou.

Conseguira.

Mas... nem a caneta do autor poderia dar a ela o tempo que precisava em Storybrookes.

Não havia tomado uma poção, para que fosse possível ficar ali.

Não era dali.

Não havia como forçar o destino.

E então Eliza desapareceu, ante os olhos de Regina.

Liz acordou em sua cama. Com uma desanimada olhada ao redor constatou: estava de volta à 1920. Não tinha forças físicas e muito menos mentais para sequer se mexer, quanto mais sair do colchão. Ficou em seu quarto um dia e uma noite inteira, pensando no que acontecera, relembrando a cidade, tudo de novo e estranho que vira por lá, com o rosto de Regina impregnado em sua visão. Um rosto que até então tinha visto pela última vez a quase quarenta anos atrás. A filha passou uma semana em conseguir olhar para o pai. Como encará-lo de novo? Depois do que vira e vivera? Falhara novamente, de forma miserável. Chegara tão perto... Não tinha o direito de machuca-lo contando sobre Regina. Talvez isso fizesse estragos irreversíveis em sua saúde. Talvez fosse uma emoção forte demais para que ele aguentasse. E a impossibilidade de juntar-se a ela, Eliza não duvidava que pudesse mata-lo. A convicção de que nunca seria capaz de reuni-los deixou Liz doente.

Ela viveu anos inteiramente para Bernard, resignada, escrevendo, como sempre fizera.

Naquele dia de 1929 Eliza resolveu comemorar o início da primavera comprando flores, decidida de que elas enfeitariam e perfumariam a casa, fariam bem à seu pai. Foi até o centro de Londres e começou a buscar as melhores rosas. Ia de loja em loja, de barraquinha em barraquinha, até que numa delas, encontrou exatamente o que procurava.

Ele parou de caminhar bruscamente, ao vê-la. Era ela. Mas... não podia ser, era uma miragem, dizia para si mesmo. A mulher que buscara por doze agoniantes anos estava ali, a metros dele, negociando flores. Sebastian quis se ajoelhar ali mesmo e agradecer à Deus por aquela dadiva.

Eliza.

O tempo fizera bem a ela. Havia envelhecido um pouco e por outro lado, estava ainda mais bela. A tristeza permanecia nela, sua silenciosa moradora. Algo maluco acontecia dentro de Sebastian, fazendo-o perceber o quanto ainda a amava, desesperadamente.

_ Qual o endereço da senhora? - perguntou o comerciante. Eliza havia comprado uma quantidade colossal de flores e seria preciso entregar.

Ela disse seu endereço e Sebastian guardou na memória cada letra.

Liz agarrou um ramalhete colorido para já levar para casa, e então o viu.

Seus olhares ficaram presos um no outro, por segundos.

Lá estava ele, Sebastian. O único homem que amara, mais maduro, tendo o mesmo impacto de antes sobre ela.

Era além do que podia suportar. Tremula, Eliza foi embora, fugindo de seu passado, de si.

Chegando em casa, desabou. Chorou um choro convulsivo que carregava décadas de dores, sufocadas.

Na manhã seguinte uma carta endereçada a ela estava na caixa de correio dos Bell. Ela pressentia o que havia ali. Estava preparada? Com uma ansiedade sobre humana ela rasgou o envelope e desdobrou o papel, começando a ler:

“Liz, há tanto que preciso dizer. Parece que esperei uma vida por esse momento, para enfim lhe contar tudo. Só te peço uma chance, por favor, me encontre no Wood Caffe. Dê-me uma única chance, meu amor. “

Sebastian Bennet.

Meu amor.

Mesmo depois de todas as batalhas que enfrentara, Eliza se perguntou se conseguiria enfrentar mais uma. Aquela. Não tinha a resposta.

Quando ela entrou na cafeteria, ele já estava ali, numa mesa. Liz caminhou até Sebastian, sentando-se numa cadeira.

_ Olá – a cumprimentou ele, com um sorriso ansioso.

Eliza o respondeu friamente. Estava desconfortável ao extremo. Mal conseguia olhá-lo nos olhos. O silêncio pairou entre eles e ela concluiu que havia cometido um terrível erro indo encontra-lo.

_ Céus! Não acredito que estou a sua frente, de novo!

_ Como está Helen? - perguntou Eliza, seca, cortando a alma do homem com seu olhar acusatório.

_ Helen... – Sebastian fitou o café que havia pedido minutos antes, reflexivo.

_... ela morreu meses depois do que nos aconteceu, no Brasil. E então eu me afoguei no trabalho, vivendo para ele, tentando não pensar em nada. – parou abruptamente de falar e logo continuou - Um tempo depois comecei a te procurar, Liz, nos países que passei, pela Inglaterra, aqui em Londres, em Manchester, Edimburgo, e em todos os lugares. Anos de busca, em vão, sonhando contigo, obcecado por você, com a chance de poder te pedir perdão – ele contou, com o pesar transbordando em seu rosto e a voz embargada.

Sebastian passara doze anos sem nenhuma outra mulher, apenas sobrevivendo. Eliza também, vivera mais de uma década sem nenhum outro homem em sua vida. Ela ainda estava estranhamente calada, como se digerisse tudo que acabara de ouvir.

_ Venha comigo. – o chamou.

Juntos e em total silêncio eles caminharam até Highgate. Eliza o dirigiu pelo lugar e num dado momento, parou diante de um ponto do cemitério. Ela encarou a lápide a sua frente por minutos, fechou os olhos fazendo uma longa oração. Depois beijou uma rosa que havia comprado no caminho e depositou-a na grama.

_ Eliza, o que estamos fazendo aqui? - perguntou Sebastian, confuso.

A escritora o encarou com olhos desamparados, por um eterno instante.

_ Sebastian... esse é o túmulo de Sarah, nossa filha.

Sebastian abraçou-a com desespero, fazendo com que toda a dor de Eliza acumulada por todos aqueles anos, fosse embora, fosse enfim compartilhada. Ela perdeu-se em seu abraço seguro, deixando as lágrimas rolarem livremente, se libertando do peso insuportável de seu maior segredo.

Durante a viagem de volta à Inglaterra, voltando do Kansas e de seu fracasso com Dorothy, Eliza se sentiu terrivelmente mal. Tonturas, enjoos, tudo isso de início ela atribuiu ao chacoalhar constante do navio e ao recente trauma com Sebastian. Mas chegando à Londres, um belo dia diante do espelho, ela notou a quase imperceptível saliência em sua barriga. Algumas semanas depois viria a confirmação: estava grávida, suas preces haviam sido atendidas. Eliza inicialmente se sentiu apavorada e maravilhada, na mesma medida. Sorria a toa, alisava o ventre e logo após era consumida por nervosismo. Não sabia como agir, o que fazer e muito menos se seria uma boa mãe para aquela vidinha que crescia dentro dela. Uma coisa era certa: teria sua família. Sebastian nunca seria seu, mas ao invés disso teria um pedacinho dele, apenas dela, o fruto do frágil sonho que viveram, para todo o sempre ao seu lado. Isso lhe bastava.

Conforme sua gravidez foi ficando mais visível, seu amor e sua ansiedade cresciam também. A escritora passava longas horas numa cadeira, conversando com seu bebê, contando das histórias que escreveria para ele, do quanto desejava conhecer seu rostinho. De súbito, toda a dor que vivera por tantos anos fez sentido. Tinha de sobreviver, para ser mãe, para renascer dando à luz a uma criança, a sua criança.

Bernard não disse nada sobre sua filha estar grávida. A vida continuou igual, como sempre fora. Liz combinou com ele de não contarem para Henry. Seria melhor assim. Quis o destino que no momento exato em que a bolsa de Eliza rompera e ela começara a sentir as dores do parto, Henry entrara pela mansão, encontrando sua irmã com uma barriga imensa, pronta a ter seu filho. Passados segundos de choque ele encaminhou Liz rapidamente para um quarto.

Os dois irmãos viveram seis horas de luta, numa união que nunca havia existido entre eles antes. Henry tinha vontade de chorar ao ver Eliza ali, nua, fraca, em um sofrimento supremo. Sentia medo de perde-la, mas ela precisava dele firme e forte, não podia deixar transparecer seu terror. A pulsação era quase inexistente e o lençol estava todo manchado, perdia muito sangue. Não sabia quanto mais ela aguentaria, se continuasse daquele jeito.

_ Vamos Liz! Você consegue! Mais uma vez! – instruiu o médico.

Eliza sabia que iria morrer e mesmo que respirar doesse e parecesse impossível ela foi em frente. Salvaria seu bebê. Fez uma força sobre humana, que não possuía e tudo aconteceu. Mas o pesadelo não havia terminado. Henry agarrou o corpinho e Eliza esperou ouvir um chorinho, que ele dissesse alguma coisa.

Nada se sucedeu em segundos.

_ Henry. É menino ou menina?

_ Menina. – disse ele, murcho.

O silêncio se colocou entre eles.

_ Henry... – inicio Eliza, desesperada – porque ela não chora?

O irmão não respondeu.

_ Henry! Dê-me minha filha! - gritou, pressentindo o pior.

Uma menininha minúscula e arroxeada foi depositada no colo de sua mãe.

_ Pequenina...

Eliza sentiu o frágil coração de sua filha bater sobre o seu. Sarah tinha os cabelos negros e olhos verdes de seu pai. Elas se olharam por dois minutos, com o amor que equivaleu ao de uma vida inteira. E então Sarah fechou seus olhinhos, finalizando sua breve existência.

Henry saiu do quarto e encontrou Bernard à porta. Mudos, desceram as escadas, pensando a mesma coisa. As mulheres da família estavam fadadas a partos desgraçados.

Eliza chorou por horas, até o anoitecer, com o corpinho frio da filha nos braços, desejando ter morrido com ela, ou que fosse possível dar sua vida pela a dela. Ela enfim entendera Annabeth, que morrera para que Henry vivesse, e até mesmo Regina, que se arriscara por ele. Não era justo, nada era justo.

Lembrou das palavras do autor, dizendo que se arrependeria e não duvidou: estava pagando por sua audácia. Apesar de sua mágoa, queria Sebastian ali, desesperadamente, com ela. Mas ele nunca saberia do bebê deles.

Henry, Eliza e o pai enterraram Sarah. Vendo o estado da filha, Bernard concluiu que sua luz estava morta, também. Ela era apenas uma casca oca guardando uma dor imensurável. Semana depois, ao encontrar Liz no quartinho que havia preparado para a bebê, chorando agarrada a um ursinho de pélucia, Bernard se aproximou, lentamente:

_ Filha... – agarrou sua mão e fitou seus olhos molhados – existem situações na vida que pensamos que não iremos suportar. E de fato, não suportamos. Só vamos continuando, sobrevivendo, com aqueles que amamos guardados no peito. Já passamos por tanto... não desista agora, eu te imploro.

Após seu reencontro, da revelação de Liz, Sebastian prometeu nunca mais sair de seu lado. Ela tivera sua filha e ele não estava com ela quando mais precisara. O casal viveu anos incertos, oito ao todo. A saúde de Bernard afundara de uma hora para a outra e Eliza quase adoeceu, também, em sua obstinação por cuidar do pai. Não tinha cabeça para qualquer coisa a não ser fazer seu papel de filha. Sebastian ainda vivia viajando e quando se encontravam percebia que Eliza não estava ali, de todo, com ele. Tinha consciência que ela se doaria até o fim, ao pai.

Naquela manhã de 1937 Eliza quis não entender o que estava acontecendo. Mas ao ver Henry chegando com Anya, Kurt e Tom foi impossível negar: eles vieram adeus à Bernard. Ele estava morrendo. Seu sistema nervoso parecia abalado, sntia mais que nunca a culpa acumulada desde os quatro anos de idade. Para ela, toda a miséria daquele dia era devido a uma falta sua: falhara, repetidas vezes, e agora seu pai morria após uma vida de tristeza. Bernard pediu para ficar a sós com sua filha e então longe do mundo a primeira coisa que fez foi sorrir.

_ Está tudo bem, Liz, como sempre esteve... – disse ele, a acalmando.

E então, pai e filha tiveram seu último momento, particular. Por uma hora ele lhe contou uma história guardada por uma vida inteira, que ela precisava ouvir. Terminada, Eliza chorava e tinha o coração mais leve, sereno.

Eliza, Sebastian, Henry, Anya, Tom e Kurt observavam o caixão de Bernard ser depositado no lugar em que passaria a eternidade.

_ Vá em paz, papai... – Liz jogou uma rosa sobre a tumba.

Em sua lápide estava escrito:

Bernard Friederick Bell

15/05/1855 - 03/10/1937

Pai e marido amoroso

O homem que amou a rainha, até o fim.

Uma semana após o funeral, Eliza começou aquele que seria seu maior projeto. Seu ato final, por seu pai. Sentou-se frente a máquina de escrever e ali passaria dia e noite, até 1938, consumida, escrevendo cada palavra que ele lhe dissera antes de morrer.

Sebastian entrou no quarto e a encontrou imóvel. Na mesa a sua frente havia uma pilha grossa de papeis. A lenda dos amantes do Tempo. Havia terminado.

Ele colocou a sua frente um grande cartão amarelo, amarrado com uma fita vermelha de cetim.

_ O que é isso? - questionou ela, desamarrando a fita, achando duas passagens de navio.

_ Sua liberdade.

_ Eu... não posso.

Sebastian puxou-a para si, a chacoalhando de leve.

_ Quando irá começar a viver? Foi a melhor das filhas, dedicou sua vida inteira à seu pai. Tenho certeza que, onde quer que esteja ele deseja que pelo menos a partir de agora, seja feliz.

Eliza e Sebastian se casaram e foram viver juntos, após os cinquenta, o que não puderam viver anteriormente. Passaram doze anos viajando o mundo, morando em lugares como China, Jamaica, Austrália, Brasil, felizes, plenos, fazendo loucuras, envelhecendo lado a lado. Foram para a Índia, e lá, em Mumbai se depararam com o inesperado. Não pensaram duas vezes antes de arriscarem-se adotando uma garotinha órfã de sete anos, a salvando de um casamento forçado com um homem asqueroso de quarenta anos. Com Anahita mudaram-se para a África. Após cinco maravilhosos anos no litoral africano, em meio a savanas e selvas, Eliza decidiu que era hora de voltar à Inglaterra. Apesar de sua incrível saúde e vitalidade, já estava com setenta anos, Anahita poderia ter uma melhor educação em terras britânicas, e lá também estavam enterrados Annabeth, Bernard, Sarah. Queria estar perto deles. Queria descansar em seu chalé.

Naquela manhã morna de 1965, Eliza Bell, uma senhora de oitenta anos assistiu com Sebastian, sentada ao lado de dezenas de outros pais e familiares de alunos, sua menininha, sua Anahita subir no palanque e receber seu diploma em Inglês, pela Universidade Oxford. Como estava linda e crescida, uma mulher feita que não tinha nada da garota desnutrida e morta de medo que era, quando a adotara, pensou ela em silêncio. Seu coração materno não aguentava de tanto orgulho. Ainda recebera o título de primeira aluna da turma. Ela se aproximou, sem jeito, do microfone para fazer seu discurso. Olhou seu troféu e logo em seguida, para um ponto certo da plateia. Eliza.

_ Quero oferecer esse prêmio, essa vitória a meu pai e minha mãe, uma mulher extraordinária, incrivelmente forte e admirável que me salvou de um destino pior que morte - ela fez uma pausa, por causa de suas lágrimas - O que eu seria hoje sem vocês? Sem você, mamãe? Estaria viva? Em que condições?

Eliza segurou forte a mão do marido, sem controlar suas lágrimas.

_ Quero um dia ser um decimo do que vocês são. E para isso, para começar minha jornada, tudo que mais quero é sair pelo mundo, com isso - ela ergueu seu diploma - voltar à minha pátria, fazendo o que você me ensinou, mamãe, amar... ensinando crianças, salvando-as da miséria e da escuridão.

Todos se levantaram e aplaudiram Anahita e também, Eliza. Eles olhavam para a escritora, sorrindo. Liz sorriu para sua amada filha, pensando que era humanamente impossível ser mais feliz.

Um dia após a formatura de Anahita e uma semana depois de ir o cemitério levar flores para Sarah, depois daquele que seria seu aniversário de quarenta e sete anos, Eliza lançou um último sorriso à seu amor de toda vida, Sebastian, e adormeceu, numa poltrona, a seu lado, com seus dedos entrelaçados aos deles.

Partiu, com o coração em paz.

Sofrera, errara, muito perdera e mais ainda, amara.

Tinha, afinal de contas, cumprido sua missão.


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Notas finais do capítulo

E então?