A lenda dos amantes do Tempo escrita por Geovanna Ferreira


Capítulo 25
A história do menino que a Rainha amava


Notas iniciais do capítulo

BOMBA BOMBA BOMBA!!! CADA CAPÍTULO QUE ESCREVO DESSA HISTÓRIA EU AMO MAIS QUE O OUTRO! ESPERO QUE CURTAM! POR FAVOR COMENTEM! ME CONTEM O QUE ACHAREM DESSA PEQUENA LOUCURINHA ESCRITA AQUI!



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" Deve ter sido frio a minha sombra

Nunca tendo a luz solar em seu rosto

Você estava contente em me deixar brilhar, este era seu caminho

Você sempre andou um passo atrás.

Então eu fui o unico com toda glória

Enquanto você era quem tinha toda a força

Um lindo rosto sem um nome durante tanto tempo

Um lindo sorriso para esconder a dor

Já sabia que você é meu herói?

e tudo que eu gostaria de ser?

Eu posso voar mais alto do que uma águia

porque você é o vento sob minhas asas

Poderia ter aparecido para passar despercebida

mas eu tenho tudo aqui no meu coração

Quero que saibas que conheço a verdade, é claro que eu sei disso

Eu seria nada sem você. "

Wind beneath my wings - Bette Midler

Na noite em que o destino de todos foi selado, ele chorou por toda madrugada.

Ninguém o ouviu por horas.

Enquanto a maioria das crianças londrinas dormia para em breve acordar para uma nova e maravilhosa manhã, Eliza enfim o notou. Ela se espichou, se colocou na ponta dos pés, e ainda assim quase não conseguiu pegar o irmão de seu bercinho. Encostou-se num canto e segurou Henry como pode, colando-o ao seu corpinho, tentando embalá-lo.

_ Não chore, neném... – sussurrava.

O silêncio impregnava o casarão.

Encolhidos ali, no escuro, os dois pareciam os sobreviventes de uma guerra.

E eram.

Eliza cuidou de Henry por dias, mesmo sem saber como. O alimentou, o limpou, olhou por ele. Maise desaparecera misteriosamente e o pai estava trancado no quarto. Ela entendeu logo que estavam sozinhos e que devia cuidar daquele serzinho indefeso.

O sol mal tinha aparecido quando a governanta dos Wilson atendeu a porta e encontrou uma menininha magra, com aspecto doentio perguntando se não conhecia alguém que pudesse cuidar de irmão bebê. Lily fora pessoalmente até a casa de Eliza. Ficou horrorizada o estado de abandono em que as crianças estavam.

_ Onde está seu pai?

Liz sequer respondeu.

Acabou encontrando o homem. Trocaram poucas palavras. Por sua expressão ela viu: ele estava perdido no meio do caminho entre a demência e a sanidade.

A mulher enviou imediatamente sua sobrinha Aghata à família.

Assim Henry fora criado. Por uma garota de dezesseis, numa casa enorme, cheia de silêncios. Ele aprendera a andar engatinhando em salas vazias, passara a infância brincando praticamente sozinho. Soube logo, nunca devia incomodar papai. Tomava um cuidado tremendo para não fazer algo que o chateasse. Henry jamais vira o pai sorrir. Não de verdade. Seus sorrisos tinha sempre algo de triste, seu olhar era invariavelmente nebuloso. O garotinho não entendia. As memórias mais sólidas que tinha do pai envolviam o entardecer, o instante exato em que diariamente, ele sentava diante do piano e tocava a mesma melodia, com as pestanas cerradas e a emoção transbordando por seus dedos, como aquela música fosse mais que uma simples música, como se fosse um elo vital o qual necessitava fortalecer, dia após dia.

Ele adorava sua irmã mas também não podia compreender porque ela era tão quieta, tão calada, porque as vezes chorava tão discretamente que era quase impossível perceber, ou porque recusava a brincar com ele. Henry perguntou tantas vezes: “ O que acontece, Liz? “ e não obteve resposta que num dado momento parou de perguntar.

Bernard e Eliza viviam em suas próprias mentes doloridas. Existia ai uma ligação a qual Henry não era autorizado a participar.

Conforme crescia ele não deixou um dia sequer de se sentar frente à tela presa na parede de seu quarto e ficar horas ali, admirando aquela mulher bonita que o olhava diretamente, com seus olhos gentis. Era sua mamãe, sua querida mamãe, eles diziam.

Sabia que ela estava sempre com ele mas... havia tempos em que sua mãe era apenas uma moça loira, presa numa pintura, uma figura feita de tinta e memórias de terceiros.

Por outro lado, Henry passou a vida sentindo uma estranha presença ao seu redor. Como se uma força maior o guiasse, olhasse por ele.

Começara quando ele tinha quatro anos. Numa noite o menino dormiu e acordou num campo florido. E então, como se a brisa houvesse lhe trazido, ela apareceu entre as flores. Uma mulher com cabelo curto, roupas diferentes e profundos olhos negros que pareciam querer se derramar em lágrimas, pareciam querer abracá-lo. Ele nunca havia visto alguém assim.

_ Quem é você?

Ela nada respondeu, apenas balançou a cabeça. Depois se aproximou e o tocou como se querendo provar a si mesmo de que ele era real.

Se encontraram muitas vezes.

Seria sonho?

Ele nunca soube seu nome. Mas nunca esqueceu seu rosto.

Henry não tinha ninguém além dela para contar suas angustias, suas coisinhas bobas de menino. Contava-lhe tudo, ansiava por contar. Ela o ouvia sorrindo, como se fascinada com cada palavra dita.

Era tão linda, linda como uma fada, sua fada, pensava o garotinho. Mesmo tendo aquele olhar que era igual ao de papai e Liz, que continha toda a tristeza do mundo.

_ Eu não entendo papai... – ele confessou num de seus encontros, com o rostinho contorcido por uma careta. Ele a olhou suplicante e viu sua face transtornada. Ela sempre ficava meio estranha quando ele lhe falava de seu papai.

_ Você deve cuidar dele, Henry, deve me prometer que cuidará dele... – disse ela cuidadosamente,. _ Ele precisa muito de sua ajuda, seu amor.

A mulher o fez prometer que também não diria nada sobre ela a Liz e papai.

Ele cumpriu a promessa.

Mesmo sabendo que a moça loira da tela era sua única mãe, era como se tivesse duas delas. Uma morta e uma viva, em seus sonhos.

Um dia ela parou de vir vê-lo. Assim que completara dez anos não mais apareceu.

Henry tornara-se órfão, outra vez.

Uma certa manhã, depois de anos de cartas secas trocadas com Agatha, que disfarçavam um genuíno desinteresse quanto aos netos, a mãe de Annabeth surgiu na mansão. Seu horror foi imediato. As crianças estavam sendo criadas por uma escocesa deseducada, sem que ninguém se preocupasse com seu futuro, com suas maneiras. Bernard mal parecia conseguir tomar conta de si. Ela não hesitou em lhe gritar que a filha ficaria mortalmente ferida se os visse naquela situação. Havia mágoa em sua voz. Ele não exprimiu reação alguma.

Ela nunca deixara de pensar que aquele homem fora uma maldição à Annabeth.

Mrs Campbell saiu do casarão decidida. No outro dia, cedo, reaparecera, dizendo que levaria os netos embora. Bernard discutiu com a sogra, mas fora facilmente vencido. Já Eliza lutara, argumentara e suplicara que a deixassem com o pai. E que Henry ficasse, também. Que não os separasse.

Depois de uma hora tentando convencer a menina a desistir da ideia, a avó a olhou por alguns segundos, admirada com sua audácia, sua coragem por enfrenta-la. Era a imagem viva de Annabeth. E ainda que fosse mais pálida, e que lhe faltasse o brilho ou a vivacidade que a filha um dia possuíra, tinham a mesma teimosia. Ela não podia entender como a garota escolhia ficar com aquele patife que claramente, não estava em seu juízo perfeito. Acabou desistindo de Liz. Já era uma moça, já havia completado doze anos, logo se tornaria uma mulher e sabia das consequências que sua escolha acarretaria. Estava completamente contaminada pelo pai. O garoto, pelo menos, seria seu. Talvez ainda houvesse salvação para ele.

Meio temeroso, meio confuso, aos oito anos, Henry seguiu a avó até sua carruagem, deixando para trás aqueles que amava mas que jamais poderia decifrar.

Henry viveu anos na Cornualha, sob a proteção tirânica de Mrs Campbell. Estava decidida a dessa vez, acertar, a criá-lo de forma que não se saísse um cabeça de vento como a mãe saiu-se, com ideias malucas de viajar, conhecer os continentes, escrever aquelas bobagens. E para seu fabuloso plano dar certo, ele devia ter o menor contato possível com Bernard e Eliza. Conseguiu o que queria.

Aos treze anos mandou-lhe para o mais caro e tradicional internato de Londres, onde teria a melhor educação que o dinheiro poderia comprar, na Inglaterra.

Henry se lembraria do final de sua infância e de toda sua adolescência como um período de pouca diversão e muito estudo, muitas exigências vindas da avó, de professores. Era um garoto doce, educado, que possuía um ou dois amigos. Um menino solitário em sua própria natureza. Não falava muito de sua família e quando os visitava, passavam um bom tempo juntos. Ainda assim não deixava de sentir que não tinham muito em comum, ou algo a dizer um ao outro. O pai e a irmã viviam em outra órbita. Pareciam sintonizados entre si e fora de eixo em relação ao resto do mundo. Apesar de ser bela e talvez uma das mulheres mais bonitas da cidade, Eliza era... estranha. Inteligente demais, melancólica demais...

Aos dezoito anos, sem saber bem porque, mas sentindo que devia fazer isso, Henry entrou para a faculdade de medicina de Oxford.

Escolheu salvar vidas.

Em 1914 quando a guerra estourou, era um jovem médico cheio de vontade de fazer a diferença. Só não sabia como isso se daria.

Henry logo foi convocado a servir a pátria, juntando-se ao grupo de médicos da Tríplice Entente. Passaria os próximos quatro anos em campos de batalha na Inglaterra, França, Alemanha, trabalhando incansavelmente em enfermarias improvisadas no meio do nada, sem remédios, sem recursos, com ajuda insuficiente para tratar tantos feridos, que não paravam de surgir. Viveria dias árduos, sempre incertos, fazendo o impossível para salvar soldados mutilados, a beira da morte, em completo estado de transe, pobres homens que perdiam braços, pernas, olhos, e também sua dignidade numa guerra vã, da qual nada tinham a ver. Por vezes ele perdeu a noção de dia, noite, mês, ano, localização. Pensou que perderia a sanidade e até mesmo a vida naquele circo de horrores que parecia eterno e o obrigara a virar de fato, homem. Seu jeito de menino fora engolido pela guerra. Ela não deixara a ele e a ninguém a possibilidade de sonhar, de ter esperança, de acreditar que a vida seria algum dia como fora antes. Em 1918, Alemanha, Austria-Hungria e Itália foram enfim vencidas e terminado seu trabalho nas trincheiras, Henry percebeu que não havia mais nada no Velho Continente para ele. Nada o prendia ali. Seu pai e sua irmã continuavam na mesma, do mesmo modo, parados no tempo. Eles significavam pouco para ele. O mundo estava devastado e só um único lugar parecia não ter sido afetado pelas misérias da guerra: a América.

No fim do próximo ano, atendendo um chamado misterioso ouvia em seu coração, ele embarcou para Nova Iorque, desacreditado da medicina, do ser humano, com a angústia que carregava no peito desde a infância, maior e mais insuportável.

O que o esperaria nos Estados Unidos?

Porque pressentia que lá haveria algo para ele?

Doutor Henry Bell odiou a cidade, seus prédios monstruosos, as pessoas, milhões delas, barulhentas, vindas de todos os lados. Aquele exagero de gente aumentava sua solidão, trazia de volta a guerra. À noite, fechava os olhos e tudo se reprisava. Em seus sonhos, suas mãos estavam ensanguentadas, homens choravam, gritavam, suplicavam por suas vidas.

Ele nunca teria paz?

Um ano depois de chegar ali, Henry foi até a estação e sem ter muita certeza do que fazia, tentou comprar passagem para um lugar do qual pouco ouvira falar e em contrapartida, sentia, onde tudo poderia ser melhor.

Maine.

Iria recomeçar, de novo. Voltar à Inglaterra estava fora de questão.

Mas...

O atendente lhe dissera que todas as passagens para o local estavam vendidas, por meses.

Henry bufou e agradeceu o homem que lhe avisou que ainda haviam assentos disponíveis na viagem Nova Iorque/ Vermont.

O mais jovem dos Bell pensou um instante, considerando a ideia.

Vermont?

E se mudasse seus planos?

Alguém o cutucou. Ele olhou para trás, encontrando um homenzinho sorridente.

Isaac.

O autor.

_ Desculpe senhor... precisa de uma passagem?

O estranho ergueu um ticket no ar.

_ Bem... não vou precisar da minha, se quiser, te dou.

Henry levantou uma sobrancelha. Porque aquele sujeito de sorriso duvidoso oferecia assim sua passagem, assim, sem mais nem menos?

Acabou aceitando, tendo que correr para alcançar o trem e embarcar.

Ele chegou de manhazinha, com o nascer do sol. Portland era uma cidade banhada pelo mar, de clima ameno e acolhedores sessenta e nova mil habitantes. Ideal para Henry.

Sua fama logo se espalhou pela cidadezinha. Um dos principais médicos ingleses, decisivos na Primeira Guerra estava entre eles! Certa tarde um homem grisalho bateu à porta do quarto de hotel que alugara, vindo fazer um convite tentador a um forasteiro sem muitas perspectivas. Precisava de pessoas qualificadas para ajudarem a erguer e depois trabalharem num grande hospital que seria construído ali, dotado de uma infraestrutura que Portland e região nunca tiveram antes. O John Carter Hospital era um projeto grandioso, que levaria o nome do ricaço que o financiaria. Mas, no momento, tudo que tinham era um prédio velho onde se oferecia consultas, internações e serviços médicos em geral.

Henry ficou aliviado ao ouvir que, apesar de sua experiência com casos graves, ele poderia ficar com a ala dos recém nascidos. Após anos lidando com a morte, trazer crianças ao mundo seria o paraíso, talvez o estímulo que precisava para voltar a acreditar em sua profissão.

Na outra semana, ele acompanhou Josh Wilson no hospital. Conhecera os aposentos, a rotina ali, as pessoas com as quais trabalharia.

Foi quando a conhecera, também.

No final da manha ele se enfiara numa ala que não visitara ainda. A infantil.

Antes de e entrar num quarto, ele ouviu uma vozinha doce, falando inglês com um sotaque carregado, que o fez sorrir.

Henry se aproximou da soleira da porta. Dentro do espaço havia uma dezena de camas vazias e uma única ocupada pelo que parecia ser uma menina com o corpo todo queimado, tomado por bolhas. Ao seu lado estava a dona daquela voz, uma mocinha que enfiava um pano repetidas vezes numa bacia com água e depois passava-o em suas feridas.

Era tão pequenina, tão delicada em seu vestido branco de enfermeira. Os raios de sol que vinham pela janela iluminavam seus olhos azuis, a pele pálida, o cabelo dourado. Tão frágil e ainda assim conseguia distrair a criança naquela condição tenebrosa, tinha total controle da situação.

_ Pois bem... a senhorita tem que me prometer ser forte... ficar boazinha para voltar para casa logo! Dai eu prometo! Te dou um algodão doce! O que acha?

A garotinha sorriu e concordou com a ideia, esquecida de suas dores, de chorar.

Quem era aquela moça?

Anya...

Henry demorou dias para reconhece-la, para lembrar dela, quem ela era, uma conhecida de sua irmã que ironicamente fora reencontrar ali, em outro país. Conversando com doutor Josh, soube que era sua melhor enfermeira e havia acabado de completar vinte anos, apesar de aparentar no máximo dezessete. Era russa e sem família. Fazia seu trabalho com extrema competência, silenciosamente, calada. Possuía um aspecto assustado, possivelmente devido ao que passara na Rússia e a obrigara a sair de lá, sozinha, supunham.

Ela era um enigma para a maioria das pessoas. Não para Henry.

Henry se apaixonara perdidamente por ela e Anya por ele.

Eram dois estrangeiros tentando refazer a vida numa terra estranha. Era visível: eram perfeitos um para o outro.

Começaram a trabalhar, almoçar, passear juntos. Fazer tudo juntos. Os quatorze anos de diferença entre eles não significavam nada. Anya amava a forma respeitosa com que ele a tratava, a timidez de Henry, o médico maravilhoso que ele era. Henry adorava aquela mocinha que detrás de seus traumas, aos poucos foi mostrando-se espirituosa, cheia de opiniões e esperança. Anya queria conquistar muitas coisas, realizar vários sonhos.

Dia 22 de junho de 1922, Henry Bell e Anya Zoya Petrovska ( Anne Flynn em seu documento americano ) se casaram num pequeno templo Ortodoxo, na presença de meia dúzia de colegas do hospital, Bernard e Eliza.

Ao vê-la entrando na igreja incrivelmente linda num vestido branco simples, entregue à ele, para sempre, Henry teve vontade de chorar, de gritar aos céus sua felicidade. Uma nova fase de sua vida se iniciava: sua família estava nascendo, e ele jurava, ela seria tudo que a sua não fora, dessa vez seria diferente.

Encerrada a cerimônia, o casal recebeu os cumprimentos de amigos. Eliza se aproximou do altar com o pai:

_ Parabéns, meu irmão. Parabéns Anya. - ela virou-se para a cunhada e seu rosto reluziu - Que vocês sejam muito felizes. – disse, abraçando os dois.

Qualquer um que colocasse os olhos em Liz veria a mulher culta e sofisticada que ela era. Ali, diante dos recém casados, parecia fascinada com a ideia de que Anya era a esposa de seu irmão.

Bernard deu alguns passos.

_ Filho, me orgulha te ver assim, um homem feito, casado com uma moça maravilhosa...

Henry intimamente delirou com as palavras do pai.

_ ... e sei que ela também se orgulharia se estivesse aqui.

Bernard trocou um olhar com Eliza.

Ela.

Annabeth.

Regina.

Estavam em uma viagem longa, a caminho de Nova Iorque, do navio que os levaria de volta à Inglaterra. A filha estava encostada na janela do carro, fixa na paisagem, perdida em seus pensamentos, quando ouviu o pai a chamando.

_ Eliza...

Ela olhou para Bernard.

_ Mande parar o carro.

Ela não entendeu. Estavam na estrada.

_ Mande parar o carro! - bradou o homem.

A filha seguiu as ordens de seu velho pai e o ajudou a sair do automóvel.

De braços dados, circularam pelo campo cheio de mato, no meio do nada, em completo silêncio. Num certo momento, Bernard disse o que por algum motivo, Eliza já esperava ouvir:

_ Você não se pergunta o que aconteceu com ela? Onde estará?

Ele olhava para o mar, ao longe. Então fechou os olhos, como se quisesse sentir o lugar, o vento em seu rosto.

Um nó se formou na garganta de Eliza.

Depois de todos aqueles anos, era a primeira vez que ele falava dela.

Eles não sabiam, mas estavam exatamente no lugar onde décadas mais tarde, Storybrookes surgiria. Apenas percebiam uma estranha energia que emanava do solo, do ar, da natureza. Bernard estava no local exato onde incontáveis noites Regina sentou em sua poltrona, em seu quarto, fazendo-se a mesma pergunta. O que havia acontecido com eles.

Quando enfim todos os convidados foram embora da igreja e eles deviam seguir para a festa que dariam, Anya olhou ao redor e depois para o marido, transbordando tristeza.

_ O que foi?

_ Queria que eles estivessem aqui.

Eles. Sua família.

Henry a envolveu em seus braços e ela chorou.

_ Eles estão, pequenina, estarão sempre contigo. – sussurrou.

Devidamente casados, Henry e Anya foram morar na casa que haviam construído nos limites da cidade, num ponto em que os permitia ainda fazer parte da população urbana de Portland e também, ter aos fundos de sua residência, um longo gramado, floresta e penhascos como vista. Uma casa grande, espaçosa, perfeita para eles e para os vários filhos que, com sorte, teriam. Viveram anos felizes, de trabalho duro, se dividindo entre estar em casa e no hospital. Henry acompanhava a expectativa, a luta de Anya mês após mês por um bebê. Depois de tudo que lhe acontecera, ela queria desesperadamente aumentar a família. Partia o coração do doutor vê-la murcha e apagada quando descobria que mais uma vez, não estava grávida. Ele temia que, se ao longo do tempo a criança não viesse, sua amada Anya adoecesse de tristeza.

Dez anos depois de casados, eles enfim conseguiram. Alegando estar sentindo-se mal, Anya pediu que Henry a examinasse e assim, descobrisse sozinho que seria papai. O casal passou cada mês da gravidez ansioso, lotado de preparativos para a nova vidinha que iria chegar. Num domingo, mesmo que a barriga de Anya estivesse enorme e fosse em partes inviável o que pretendiam, eles fizeram umas das coisas que mais gostavam de fazer. Entraram na floresta e foram até um penhasco, para assistir o entardecer diante do mar. Sentaram-se lado a lado, sobre pedras.

_ Se for menina. Qual nome você gostaria? - perguntou Anya, passando as mãos carinhosamente na barriga.

_ Gosto de Regina, não sei porque. – disse Henry, tirando os olhos da paisagem, colocando-os na esposa.

_ Regina... diferente... significa rainha em latim, não? Engraçado... – a expressão de Anya tornou-se sombria - a muito tempo atrás, um homem diabólico, Rasp...

Ela não conseguiu dizer aquele nome, inteiro.

_ ... me disseram que todos desapareceriam e restaria só eu...

A dor de Anya saltava de suas palavras.

_... e que eu iria até o filho de uma rainha.

Henry arregalou os olhos. Passou o resto do dia pensando naquilo.

Pouco depois, acontecera. O pai fez o parto de seus filhos, em casa, após se assegurar que a gravidez era tranquila e não haveria riscos, realizando seu desejo de tornar aquele momento mágico, também, em intimo. Tudo fora relativamente rápido e como planejado. Ao final de três horas de dores intensas, com Anya fazendo força, eles viram uma cabecinha surgir e logo atrás, outra.

N ão esperavam por isso. Que Kurt Bell viesse se juntar a Tom Bell.

Havia demorado, mas quando Deus resolvera os agraciar, os presenteara em dobro, com gêmeos.

Henry olhou para uma Anya ensopada de suor, exausta, mais apaixonado que nunca por aquela mulher que sobrevivera ao impossível para estar ali, dar-lhe os maiores presentes de sua vida. O médico se aproximou, e, segurando cada um, um bebê, eles se beijaram.

Os meninos cresceram saudáveis e felizes. Gostavam de tocar piano com o pai, acampar, pescar, fazer pulseirinhas com Bell durante dias de acampamento. A mãe ensinava russo à eles, contava as histórias, tradições daquele país perdido para sempre, para ela.

Conforme envelheciam Henry notava, Tom se parecia muito com Nicholas, o irmão de seu pai que morrera quando os dois eram ainda dois garotos. Ele lembrava de quadros de Nicholas espalhados pela casa de Londres, possuíam os mesmos traços. E Kurt se assemelhava em alguns pontos a Bernard.

Em 1937, a mensagem que colocaria todos num navio rumo à Inglaterra chegou de madrugada e arrancou o chão e a paz de Henry.

Seu pai estava morrendo.

A bactéria nos pulmões já havia corroído tudo.

Em solo britânico, eles ainda fizeram outra viagem, até a Cornualha, até a antiga propriedade da família onde Bernard a alguns anos morava com Eliza.

A mansão era como uma viúva moribunda, imponente e antiquada. Tom e Kurt andavam por ela temerosos. Enquanto atravessavam salas e corredores imensos, Henry pedia aos céus força para o que viesse a ter que enfrentar. Ele esperava encontrar o pai num quarto fétido, em estado terminal. Mas não, entrando no cômodo, viu a irmã abrindo cortinas. A luz solar revelou o aposento espaçoso, arejado, agradável o bastante em que Bernard estava instalado.

Eliza virou-se e deu um sorriso tenso ao irmão.

O pai estava na cama, fraco, diminuído pela doença, porém incrivelmente lívido, com uma expressão tranquila no rosto.

Ele falava coisas desconexas, repetindo uma única palavra.

_ Ela... ela...

Ela.

Após um acesso de tosse, Bernard pediu para ficar a sós com a filha.

Henry começou a ficar nervoso. Primeiro aqueles “ela”, agora aquilo.

Eles continuavam tendo a mesma conexão, particular. Ainda naquele momento não entendia nada. Era um intruso entre eles.

Uma hora depois, Henry voltou ao quarto com Tom e Kurt. Uma lágrima escorria pela face pálida de Eliza.

O que acontecera ali dentro?

_ Filho... - o médico se aproximou da cama e segurou a mão do idoso – me perdoe. Quem dera pudesse voltar no tempo...

Eliza engoliu a seco.

_... e ser um pai melhor...

_ Não diga isso, papai...

Henry se inclinou e depositou um beijo na testa de Bernard.

Eliza se colocou a seu lado e segurou forte sua mão.

_ Amo vocês...

Bernard lançou um último e frágil sorriso aos filhos e então, lentamente, fechou os olhos, se foi.

Voltando aos Estados Unidos, a vida seguiu seu curso normal. Em um Natal, Henry levou as crianças à uma livraria. Tom e Kurt andavam de um lado para o outro pelo lugar lotado, muito interessados nos livros.

_ Estamos tentando achar algo da tia Liz. – disse Tom ao pai.

_ Isso mesmo. – incentivou Henry, pondo a mão no ombro do filho.

Depois de uns minutos Kurt apareceu, estendendo um livro ao pai:

_ Posso levar?

Peter Pan.

_ Hum. – Henry franziu a testa, considerando a ideia - algo nessa história não me parece legal. Que tal... ESSE?

Henry pegou um título de uma pilha.

_ Contos de fadas e maldições? Pode ser! - Kurt deu de ombros.

Mais tarde, para finalizar a noite, sentaram todos perto da lareira e Henry leu o livro escolhido pelo filho. Era um compilado de histórias mágicas, algumas bem tristes. A filha do moleiro... O covarde...

_ ... e ainda que a rainha tivesse conseguido tudo que sempre desejara, sua vingança, a felicidade de Branca de Neve, ela se sentia oca e vazia por dentro... pois aqueles que a amavam estavam perdidos para ela, para sempre. Seu nome era...

Regina.

Henry olhou para a página, para a mulher ali desenhada. Era simplesmente tão parecida com a moça que povoara os sonhos de sua infância, que alentara o menino sem mãe que ele fora.

Ela o olhava diretamente, como se seus olhos portassem mensagens, como se o conhecesse.

A década de 1940 foi cheia para Henry. Envelhecia, estava quase na casa dos sessenta e ainda assim não se permitia desacelerar. Passava dias inteiros no hospital, agora uma referência médica. Não podiam dispensar um doutor brilhante como ele. Com o início da Segunda Guerra, seus antigos fantasmas retornaram. Ouvia enojado notícias sobre o que Hitler vinha fazendo na Alemanha e na Polônia, relembrava sua juventude trabalhando enlouquecidamente em enfermarias precárias em campos de batalha, a insanidade vivida. A cada ano triplicava o número de pessoas que chegavam à Portland, ao Maine, a América, desnorteadas, sem nada, agradecendo por terem sobrevivido. Henry não cobrava partos ou consultas à aquela gente. Realizou incontáveis atendimentos à judeus, negros. Trabalhou por vezes até a madrugada, até a exaustão. Em várias ocasiões viajou para atender pessoas que não tinham dinheiro e nem como se locomover e quando a situação na Europa se agravou de fato, foi a Nova Iorque e fez o que pode, conseguiu resgatar e levar para os Estados Unidos três indivíduos que não sobreviveriam sem sua ajuda.

Henry foi aclamado pela cidade como um verdadeiro herói, até o fim de seus dias.

A morte levou Eliza em 1958. Ao ser avisado, Henry trancou-se imediatamente em seu quarto. Anya resolveu não perturbá-lo. Mas ao entardecer, depois que ele passara horas demais trancafiado, ela enfim bateu à porta.

_ Henry, você não vem jantar? - perguntou ela, preocupada.

Ele não respondeu. Estava sentado numa cadeira, de frente para a janela.

Ela foi até o marido.

_ Agora só resta eu. – disse ele sem tirar os olhos do mar, lá fora - Eliza... As vezes me pergunto se eu não deveria ter passado mais tempo com eles. Segui a voz que me dizia para vir pra cá e ganhei minha família, mas também perdi papai, Liz.

Anya permaneceu ali, com a mão no ombro de Henry, em silêncio.

Não havia o que dizer.

Tom e Kurt tornaram-se adultos e foram embora construir suas próprias vidas. Tom para Boston, Kurt para New Jersey. Anya e Henry ficaram, em sua casa, vivendo uma velhice tranquila e abençoada.

Nunca perderam a paixão, o companheirismo. Os anos foram bons com o casal, só fortalecera seu vínculo. Continuavam tendo os mesmos jantarzinhos românticos dos primeiros anos de casamento, ainda punham vinis na vitrola e dançavam sozinhos, ainda davam longos passeios a pé, de mãos dadas, ainda riam e se beijavam como dois namorados adolescentes.

Quando completara setenta anos, Anya confessou timidamente ao marido seu último e irrecusável desejo.

Voltar a seu querido país, sua Rússia.

Anya ficara inquieta o voo todo. Henry sabia o quão ansiosa ela estava, e podia compreender porque. Retornar, depois de todos aqueles anos, depois de tudo que acontecera. Admirou mais que nunca a força de sua esposa.

Ao perceber que o avião descia, ao ver São Petersburgo surgindo debaixo das nuvens Anya congelou, colou o corpo na poltrona, sem respirar. Henry segurou sua mão, firme.

Havia voltado para casa.

O frio tipicamente russo que encontraram ao desembarcar fez Anya sorria, começara a encher de nostalgia. Ainda assim, tremia de tanta apreensão. Na hora da checagem de documentos Henry pensou que ela passaria mal diante do guarda.

Passaram uma semana ali. Sete dias de emoção e lembranças.

Ela se permitia redescobrir sua cidade, o lugar onde nascera e vivera dezessete anos. Numa manhã foram até a catedral de São Isaac. Anya lamentou que estivesse fechada, graças ao governo Soviético. Antes de ir embora,porém, ali mesmo fez uma longa prece. Caminharam até as margens do Rio Neva, presenciaram, na rua, noites brancas, na madrugada cheia de luz, junto a centenas de desconhecidos. Durante toda a viagem Anya permaneceu calada, como se estivesse vagando dentro de si. Vez ou outra, ao passarem por algum ponto sorria e contava a Henry uma história de sua infância. Ele levou-a ao teatro Mariinsky para ver o Lago dos Cisnes. Fora compensador. Anya esteve radiante, parecera uma criança indo a um espetáculo pela primeira vez. Por último, não podiam deixar de ir até o lugar o qual Anya mais queria e temia reencontrar.

O Palácio de Inverno.

_ Obrigada... – agradeceu, com os olhos encharcados de lágrimas e gratidão, depois de ficar uma hora parada frente a antiga residência da família real russa.

Agora estava em paz. Finalmente.

Desde que acordara Henry sentia que aquele seria um dia diferente dos outros. Ele se aprontou e foi para o hospital, tal como fazia a mais de sessenta anos. Mal podia esperar para ver Emma. Aquela criança o tocara de um jeito especial. Ao tê-la nos braços soube de imediato, queria cuidá-la, ser seu avozinho. Também, ao sentir aquela dor aguda, ele não teve dúvidas; era o fim. Não teria tempo com Emma, com aquela encantadora garotinha de olhos azuis. Mas... antes que seus sinais vitais se esgotassem, ele foi grato e infinitamente feliz por ter tido dias com ela, por ter tido a chance de salvá-la.

Isso bastava. Deixara sua marca, mesmo que imperceptível.

Estaria sempre com ela, em cada batida de seu coração.

O funeral de doutor Bell mobilizou toda a cidade. Centenas de pessoas compareceram para prestar sua última homenagem a ele.

Ao lado de Kurt e o pequeno Owen, Anya assistiu seu esposo ser enterrado e incontáveis rosas serem lançadas sobre seu caixão. Ela olhou para os lados, para todas aquelas pessoas com olhos úmidos, tristes pela partida de seu Henry. Olhou para a imensidão azul do céu. Era um belo dia, como se o paraíso soubesse que recebia um novo anjo. Ouviu desconhecidos contarem emocionados suas histórias, de como doutor Bell havia os ajudado. Tantos tocados ele, por suas mãos. E então não mais resistiu, derramou lágrimas de orgulho por aquele homem, seu companheiro de toda uma vida, pelo privilégio de ter vivido tantos anos junto a ele, seu salvador. Era apenas uma garotinha amedrontada quando ele aparecera, um moço bonito, dono de uma alma mais linda ainda, que lhe curara, lhe mostrara que a vida ainda valia a pena ser vivida.

A tumba de Henry encheu-se de flores multicoloridas. Era a mais florida do cemitério.

_ Veja quantas pessoas vieram te dizer adeus, meu amor...

Anya sorriu, fechou os olhos e foi abraçada pela brisa.

Todos sentiram um vento suave, foram tomados por paz.

Ele. Ali.

Henry, o menino que a Rainha amou.

No dia seguinte, Anya seria encontrada em sua cama, já sem vida, com um belo sorriso no rosto e sob suas mãos idosas, duas fotografias.

Numa delas, Henry, Kurt, Tom.

A morte veio naturalmente, lhe fazer um favor. Levá-la daquele mundo que matara todos os seus, roubara sua identidade. O mundo o qual sobrevivera e enganara, por todos aqueles anos.

Ela, a princesa perdida.

Anastasia Romanov.

Na outra foto, guardada por uma vida inteira, eles.

Papa, Mama, Tatiana, Olga, Maria, Alexei.

Sua família. O pedaço arrancado de seu coração.

Não mais...

Estava voltando para eles...


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Notas finais do capítulo

E ENTÃO??? O QUE ACHARAM?? NÃO CONHECE A HISTÓRIA DE ANASTASIA? DÊ UM GOOGLE E CONHEÇA UMA DAS HISTÓRIAS MAIS MISTERIOSAS DO SÉC XX! VIROU ATÉ FILME! https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/e/e2/MariaAnastasiafaces.jpg



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