Lost Stars escrita por Luna Lovegood


Capítulo 9
Capítulo 8 - Diferenças irreconciliáveis


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem :)



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“Se tu queres fazer as pazes com o teu inimigo, tens que trabalhar com o teu inimigo. E então ele torna-se o teu parceiro.”

Nelson Mandela.

 

Não importa quanto tempo passe. Um minuto. Um dia. Um ano. Ou ainda centenas deles. As pessoas que marcaram nossas vidas, de modo bom ou ruim, seja essa marca uma feia cicatriz que ainda dói em dias chuvosos, ou marcas mais singelas, como rugas ao redor de nossas bocas, resultado dos sorrisos que elas nos deram, essas pessoas jamais serão esquecidas. São marcas permanentes em nossas almas e ajudam a moldar quem somos.

As chamamos de amigos, quando deixam marcas felizes. E inimigos, quando cicatrizes são tudo os que nos dão.

Não é possível mudar uma marca.

Mas sempre podemos, por mais doloroso que seja, clarear nossa visão limpando a mágoa e todos os sentimentos negativos acumulados e tentar enxergar a beleza na feia cicatriz.

É preciso aprender a perdoar. A enxergar o outro e não apenas a nós mesmos.

É preciso ter empatia.

Estamos todos muito longe disso.

Por isso estamos fadados a sempre carregar feias cicatrizes.

— Nos encontramos de novo, Rafael...  — Reconheceu imediatamente aquela voz grave. Não havia como não reconhecê-la, mesmo depois de anos. — Eu diria que senti saudades, irmão. Mas estaria mentindo.

O lugar em que Rafael estava era sujo e de aspecto velho, provavelmente abandonado há décadas. Sentia-se no ar o cheiro viscoso de mofo e poeira acumulado por tempos. Mas a pessoa a sua frente conservava uma imagem oposta, impecavelmente limpa e vestida em um caro terno negro de alfaiataria. Um rosto liso, sem qualquer indício de barba e cabelos perfeitamente alinhados para trás. Uma expressão serena e controlada que mais o faziam parecer um empresário entediado do que a pessoa que era realmente, finalizava a imagem. Olhando para sua compleição distinta e quase aristocrática, ninguém ousaria dizer que aquele anjo, cuja face agora estava a centímetros do rosto de Rafael, tinha mais sangue sujando as mãos do que qualquer um poderia contar.

Ele foi o guerreiro mais feroz no passado. Podia não brandir uma espada no momento, mas milênios usando-a como lei, lidando com todo o tipo de violência, deixam uma marca em você. Ferocidade transbordava em seus olhos opacos.

— Miguel... — o nome deixou uma mistura estranha de amargura e pesar ao sair por seus lábios.

Lutaram lado a lado muitas vezes.

Salvaram um a outro, muitas mais.

Conheciam segredos. O que era perigoso.

Um dia ele o chamou de amigo.

Irmão.

Hoje as marcas em suas costas, o determinaram como inimigo.

Mas foi bem antes disso que a amizade começou a se deteriorar.

Rafael nem tentou decifrar os demais sentimentos que o assolaram. Necessitava-se de foco. Podia não ser mais um guerreiro, mas aquele instinto ainda estava ali, dizendo-lhe para ficar alerta.

— Sinto que um estranho deja vu está acontecendo aqui. — falou sorrindo, embora sem humor algum, indicando as mãos algemadas a correntes presas ao chão. — Não é como se eu tivesse chance contra você e seus cinco guarda-costas. — informou que estava consciente dos demais anjos presentes, escondidos nas sombras.

Miguel acenou com a mão e passos foram ouvidos seguidos do som de uma porta rangendo ao ser fechada. Aproximou seu corpo da mesa a frente de Rafael. Cotovelos e antebraços se apoiando sobre madeira gasta, tronco inclinando-se na direção do seu prisioneiro, analisando-o com perspicácia fria.

— Somos apenas nós dois. — o tom não revelava se essa era uma ameaça ou uma cortesia.

A luz amarelada era parca, pendendo em um lampião acima no teto, mas com Miguel tão próximo, ela fazia bem seu trabalho. Rafael permitiu-se um momento para analisá-lo de volta. Ele não havia mudado fisicamente, mas Rafael podia ver aquela centelha de cólera que beirava a insanidade se estreitando no fundo de seus olhos, sempre tentando assumir o controle. Lembrando-o que anjos também tinham seus próprios demônios para enfrentar. Fisicamente não era uma surpresa que ele ainda continuasse o mesmo, anjos não envelheciam. Mas internamente? Rafael apostaria que todo o controle de Miguel aos poucos ruía, e que ele era refém da própria ira.

— Você não faz ideia de como foi difícil te rastrear. — começou num tom calmo e controlado, mas os punhos cerrados o entregavam — Eu passei os últimos vinte e um anos tentando te encontrar, mas era como se você tivesse simplesmente desaparecido da face da terra, como grãos de areia jogados em uma forte ventania. Nem mesmo Gabriel com a clarividência dele conseguia te achar. — os olhos negros do anjo se focaram no rosto de Rafael, avaliando minuciosamente a expressão dele, esperando por um deslize. O canto do lábio esquerdo se ergueu num sorriso. — Mas eu suponho que embora Gabe não possa mentir, ele é esperto o suficiente para desviar a informação. — seus olhos se estreitaram apenas um pouco, revelando a Rafael que ele estava jogando verde. Mesmo que nunca soubesse o que levara a Gabe a ajudar a escondê-lo, ele jamais prejudicaria irmão.

— Eu fico lisonjeado com toda a sua persistência! Para passar esse tempo todo obcecado por mim as coisas devem estar muito caóticas em casa. — a voz carregada de sarcasmo não passou despercebida.

— Não é mais sua casa, Rafael.

As palavras atingiram como uma adaga certeira no coração do anjo caído.

— Então, a que devo a honra dessa sua visita tão amigável?

Miguel se afastou da mesa, gostando mais de olhar para Rafael de cima. Queria lembrá-lo de que existia uma hierarquia, e mesmo que o anjo caído se recusasse a se submeter a ela, era bom frisar quem estava no controle ali.

— Duas décadas se passaram e não estou surpreso de sarcasmo ser a primeira coisa que recebo de você. Mesmo preso, continua com o olhar superior e a língua afiada. Nada inteligente, Rafael, mas era esperar demais que um lugarzinho pífio como a terra o tivesse tornado mais esperto. — ofendeu mostrando os dentes no que deveria ser um sorriso vencedor — Antigos hábitos nunca mudam.

Rafael balançou a cabeça soltando um riso amargo e rouco, relembrando de que o ego de Miguel era uma coisinha frágil e tão fácil de ferir.

— Duas décadas e assim que você me vê, me joga pela janela de um edifício. Tentar matar primeiro e perguntar depois. — Rafael inclinou-se para frente o máximo que que as correntes lhe permitiram, apenas para dar um efeito maior as suas palavras. Para ouvidos mais apurados era possível ouvir os dentes de Miguel rangendo, e a madeira da borda da mesa se esfarelar sob o aperto dos dedos dele. — Antigos hábitos nunca mudam, suponho. Os seus pelo menos se tornaram um pouco mais criativos, devo admitir.

Pela expressão de ódio em Miguel, o anjo caído pensou que ele iria destruir tudo ao seu redor em um ataque de fúria. Mas apesar da mesa de madeira sólida ter afundado aonde seus punhos bateram, e um urro irritado ter saído de sua garganta, o líder apenas deu-lhe as costas e respirou profundamente levando seus dedos até as têmporas, massageando-as. Mantendo seus olhos fechados por alguns minutos. Andou de um lado para o outro, percebendo que hostilidade não o levaria a nada dessa vez.

Rafael estudou sua postura levemente caída e o quanto ele parecia frustrado e cansado. Não como o vira outras vezes, preocupado por ser aquele a controlar a legião de anjos. Mas exausto, como se carregasse um peso maior do que podia suportar. Em outro tempo, quando era um igual, o teria questionado, e apesar das diferenças teria até oferecido sua mão.

— Sabe, Rafael, as coisas não precisavam ter sido do jeito que foram. Se você tivesse me contado que Ariel armou tudo, eu teria lhe poupado. Teria conservado suas asas e a arca ainda estaria segura conosco. — falou num tom de quem explica que um mais um é igual a dois.

Rafael analisou as palavras de Miguel. Seriam elas verdadeiras ou ele apenas tentava lhe enganar, mostrando um pouco de humanidade? Impossível definir. Mas não fazia diferença, ele nunca teria cometido tal traição com Ariel, não importava o preço, ele pagaria. E ele sabia que tinha feito a coisa certa ajudando-a, mesmo que não soubesse o porquê havia feito. Bastava-lhe o por quem. Confiava em Ariel com sua vida, tanto que a perdeu.

Além disso, Miguel nunca teria acreditado nele, não com Ariel envolvida, antigas histórias, ressentimentos e sentimentos sempre ficariam entre os dois, impedindo-os de confiar um no outro.

— Por favor, não tente ser misericordioso, não combina com você. Eu sei regozijou com a minha queda, foi uma espécie de vingança pessoal. — retrucou, deixando parte daquela raiva contida por anos sair naquelas palavras.

— Não, claro que não! Eu não tive prazer algum em lhe infligir dor, eu só fiz o que era necessário. — o anjo falou, pela primeira vez em sua existência tentando justificar seus atos.

Miguel já estava acostumado com todos achando que ele era apenas um carrasco, que não se importava com as coisas horríveis que tinha que fazer em nome da ordem e para manter o poder. Mas ninguém nunca ousara dizer isso na cara dele.

E de certa forma, ele acostumara a ser temido.

Gostava até.

— Sim, continue dizendo isso a si mesmo para tentar se convencer de que você não é só  um guerreiro sanguinário. Permaneça repetindo que todos os feridos que você deixa pelo caminho nessa sua busca implacável por poder, são apenas vítimas necessárias a um bem maior. — Rafael cuspiu as palavras com ódio — Talvez isso lhe ajude a acalmar a sua consciência, mas nós dois sabemos o que você é de verdade. — silêncio pairou entre eles, antes que Rafael pudesse completar — Um assassino com desculpas.

Miguel sentiu o golpe, mas controlou-se fingindo que a palavra não lhe causava ira.

— Você não entende, você nunca entendeu. — Miguel quase nunca perdia seu controle. Ele havia treinado a si mesmo para isso, mas no último par de horas ele estivera no limiar tantas vezes, que nem se atrevia a contar.  — Eu tentei, Rafael, eu tentei nos guiar dentro de uma política de paz e ordem quando não havia mais quem o fizesse, eu tentei ser bom e justo e ainda assim havia anjos inconformados! Anjos que deveriam ser nossos irmãos, lutar ao nosso lado, nos apunhalando pelas costas.  Quando você e Ariel nos roubaram eu percebi que estava certo, e que sim, era necessário uma mão de ferro para governar os céus. Ou tudo se tornaria um caos. — Justificou-se retomando o controle de si mesmo. Rafael jamais o ouvira falar tanto. Miguel mostrava quem era pelas ações, e não pelas palavras, e ele entendia o porquê.

— Você fala como um ditador, colocando nos seus seguidores a culpa da sua tirania. — disse ao Miguel. — Deve estar muito satisfeito consigo mesmo. No final você conseguiu o que queria, só sobrou você e o Gabriel como membros do conselho, e conhecendo a política de não se envolver dele, você é o conselho celestial e decide tudo sozinho agora. Parabéns! — Ironizou.

— Isso não era sobre poder. — E os olhos já escuros de Miguel, ficaram ainda mais sombrios, a centelha de ira tremulando por suas íris. No rosto do anjo havia um sentimento que Rafael não conseguia compreender. Seria arrependimento, talvez? Impossível. O grande Miguel jamais se arrependia, nunca voltava atrás em seus decretos.

— É claro que era! Sobre poder e... sobre Ariel. — se atreveu a completar, observando a reação de Miguel. Pode ver a mandíbula dele enrijecer e uma pequena veia na têmpora direita palpitar. Ele poderia ter um maldito autocontrole, mas o nome o atingia firme e trazia uma emoção diferente aos seus olhos sempre tão escuros. — Você nunca superou o fato dela ter me escolhido, quando poderia ser o braço direito do Grande Miguel comandando todo o exército celestial. Ela preferiu se juntar a mim. Apenas mais um soldado. Quando você me pegou roubando a arca, você estava satisfeito, não negue. Eu vi em seus olhos. Me tiraria da vida dela e a teria apenas para si. Eu queria tanto ter visto a sua cara quando soube que ela havia roubado a arca bem de baixo do seu nariz, se aproveitando da sua confiança nela. Isso deve ter sido como um soco na sua cara. — falou não contendo o sorriso.

Miguel engoliu em seco, desviando o olhar.

— Você me compreende muito mal, Rafael. — disse secamente após alguns minutos.

Os lábios de Miguel se apertaram, e suas duas mãos foram em direção aos seus cabelos espessos e ali se agarraram fortemente, seus olhos se fecharam e a mandíbula enrijeceu.   Ele pareceu ficar assim por um longo tempo, por fim deu um longo suspiro como quem tenta se acalmar, e retomou a palavra em um tom cordial.

— Nós podemos ficar o dia todo aqui nos ofendendo gratuitamente e remoendo as mágoas do passado, eu posso tentar justificar minhas atitudes e você as suas. Mas isso não nos levará a lugar algum. — deu uma longa pausa e ficou de frente à Rafael olhando-o nos olhos — Ou então podemos esquecer momentaneamente nossas diferenças e nos ajudar. A escolha é sua.

— Não parece que eu tenho escolha. — Rafael disse erguendo as mãos e mostrando as correntes.

— Tem razão, sinto muito por isso. — Aquilo pegou Rafael de surpresa, desde quando Miguel se desculpava? Será que o anjo estava tão desesperado por informações que passaria por cima até mesmo do próprio orgulho? Resolveu que a melhor saída era entrar no jogo dele. — Mas eu sabia que sua recepção a mim não seria muito amigável. Preferi me prevenir.

— Ótima prevenção me jogando de um edifício.

— Você não estatelou no chão, certo? — Havia um toque genuíno de humor na pergunta.

— Então, o que você quer de mim?

— Só quero que responda à algumas perguntas simples. — Miguel falou adotando uma postura menos rígida.

— Não fez todas as que queria há vinte anos atrás antes de arrancar as minhas asas? — Ergueu uma das sobrancelhas. Miguel ignorou a provocação, arrastou uma das cadeiras que estava escorada num quanto e sentou-se de frente para Rafael.

— Eu não te procuraria se não fosse realmente urgente. — Não foi a seriedade que deixou Rafael preocupado, mas a humildade que foi necessária para Miguel admitir isso.   — Embora eu tenha dito que estive buscando por você há um longo tempo, eu tenho obrigações mais importantes que demandam muito do meu tempo.

Rafael levou um tempo inspecionando o rosto. Mas logo percebeu que não adiantaria buscar razões para confiar nele, a história dos dois era antiga demais e marcada por sentimentos complexos, que nublavam seu julgamento.

Decidiu-se que, se não pode confiar verdadeiramente em alguém, é melhor ter certeza de que vai se obter alguma vantagem nesse acordo.

— Tudo bem. Mas, se vamos fazer esse joguinho é melhor saber que isso vai ser uma via de mão dupla. Só responderei se você responder as minhas perguntas também.

— Combinado. — cedeu rápido demais —Então o que você faz aqui em Paradiso?

— Dou aula de história da Religião. — respondeu sem ao menos hesitar.

— Ah, por favor, Rafael! — Disse perdendo a paciência e socando a mão em punho na mesa. — Estou com uma situação crítica aqui. E você está brincando.

— Eu disse a verdade, me ofereceram um trabalho aqui no começo desse ano e eu o aceitei. Depois de viver como um andarilho decidi fincar raízes. Fim da história. Nem sempre as pessoas escondem algo. — respondeu, ciente de que estava escondendo alguém — Agora é a sua vez. O quão crítica é a situação?

O arcanjo o encarou. Decidindo se valia a pena respondê-lo honestamente ou dar-lhe um engodo.

— Muito. — não lhe encarou os olhos ao contar — Dois dos três anjos que mandei para cá em busca de alguns caídos apareceram mortos. O terceiro desapareceu sem deixar qualquer rastro. Alguns cães do inferno estão rondando os limites da cidade. Eles não fazem nada é mais como se estivesse farejando ao redor. Então não há razão para entrarmos em confronto. Ainda. Mas parecem ansiosos com algo. — Ele olhou diretamente para Rafael — Eles estão aqui por você?

Rafael não respondeu de imediato. Suor frio escorrendo por sua testa. Eles estariam aqui por Ariel? A garota se manteve fora do radar por duas décadas, como haveriam de encontrá-la?

— Não. — lembrou-se de responder — Eu fiz minha resposta muito clara várias vezes, eu jamais me juntaria a eles. Isto aqui, não é uma convocação por mim.

Miguel puxou a cadeira oposta, deixando seu corpo cair sobre ela. Ele balançava a cabeça frustrado e murmurava consigo mesmo coisas que não faziam sentido. Tentava fazer tudo se encaixar, mas era inútil.

Pensou que Rafael fosse o problema.

Foi fácil chegar a essa conclusão.

Encarou o anjo a sua frente. Não havia ardil ou dissimulação em seu rosto, embora houvesse muita raiva enterrada do tipo que ele conhecia bem.

— Você sabe de alguma coisa, qualquer coisa que possa me ajudar a entender o que está acontecendo aqui? O que poderiam estar caçando? — Seus olhos não desviaram dos do anjo caído a sua frente.

Rafael pensou em Ariel e sobre o fato de suas lembranças estarem voltando. Lembrou de Gabriel lhe alertando que viriam por ela, todos ansiosos para extrair os segredos que sua alma imortal guardava. Ele deveria contar isso tudo a Miguel. Mas não era mais um de seus subordinados, e simplesmente não podia arriscar que ele a tirasse dele. Temia o que a parte insana do arcanjo poderia fazer a garota em seu desespero. Certamente não se lembraria que ela era apenas uma humana.

Frágil.

— Sinto muito, eu não sei de nada. — mentiu e ergueu as mãos para que Miguel, exigindo que lhe fossem retiradas as algemas. Ele o fez, ainda que contrariado, mas um acordo era um acordo.

Rafael levantou-se e passou as mãos pelos pulsos doloridos. Teria que usar camisas compridas caso não quisesse responder perguntas inconvenientes sobre aquelas marcas.

— Vão ficar por aqui por muito tempo? — perguntou ao chegar próximo a porta e sem se dar ao trabalho de olhar para trás.

— Até que tudo se resolva. — escutou a voz a suas costas — Vai ser um problema?

— Não. — Sim.

— Rafael, se quer um conselho você deveria ir embora dessa cidade, as coisas não estão nada boas por aqui. — Miguel disse a ele.

— Não quero. O seu conselho. — respondeu antes de sair batendo a porta com força.

****

Miguel não havia se movimentado desde a saída de Rafael, ele estava pensativo, ainda sentado na mesma cadeira e fitando a parede de tijolos a sua frente. Muitas coisas foram ditas naquela conversa regada a ressentimento, mas havia algo o incomodando, aquela sensação no fundo do cérebro dele de que haviam algo mais, algo que Rafael se empenhou muito em esconder. Num ato mais reflexivo desembainhou a Moriá, que pendia ao lado esquerdo da cintura. Pousou a brilhante espada sobre a mesa desgastada, o metal reluzente parecia emitir luz própria e sobressaía destoando do ambiente sombrio.

Moriá, era para ele como uma extensão de seu corpo, tendo consigo parte de seu espírito e poder.

Os dedos de Miguel deslizaram sobre o metal tocando com reverência e calma calculada a velha amiga. Dentro dele fogo inflamava pelas veias transformando o sangue em lava fervente, o único indício em seu exterior, de algo não estava certo, era o vinco entre suas sobrancelhas, mas qualquer um confundiria com uma reação reflexiva e perderia o quanto aquele anjo, neste momento, mais lembraria um leão ferido do que o soldado mais temido de todo o exército.

E por isso, ainda mais perigoso.

Levantou-se de súbito deixando a espada ainda sobre a mesa, decidido a descobrir a verdade. Era o único modo de aplacar o ferimento dentro de si que clamava por justiça. Direcionou seu olhar para os anjos que estavam em fila no canto oposto do porão, apenas aguardando por ordens. Eles haviam entrado assim que seu convidado saiu. Analisou cada um deles, escrutinando os rostos com o olhar, tentando decidir qual era o mais confiável. Ou talvez, fosse melhor escolher aquele mais disposto a provar seu valor.

— Estão todos dispensados, voltem a investigação anterior. Exceto por Uriel... — chamou, e o anjo caminhou em sua direção enquanto os demais saíram. — Quero que siga Rafael, me dê um relatório detalhado de todo o dia dele. A que horas ele acorda, o que ele come, com quem ele fala. Eu quero saber de tudo. Cada detalhe insignificante da vida dele.

— O senhor acha que ele teve a audácia de mentir? — perguntou.

— Não mentir sobre o que eu o questionei, ele é mais esperto do que isso. Mas ele definitivamente está me escondendo algo. Ele sempre está me escondendo algo. — vacilou, num pensamento apenas seu — Vá. — ordenou, com um movimento de despache, ansioso para se ver sozinho.

Esperou que a porta estivesse fechada, e trancou passando o ferrolho antigo. Esperou um pouco mais, até ter certeza de que não havia nenhum outro anjo naquele prédio e então caminhou até a mesa. Seus dedos voltaram a escovar o metal frio da espada, dessa vez seu olhar para ela era consternado, quase triste.

Ergueu-a com uma das mãos no cabo.

A outra segurava bem ao meio da lâmina com força, lhe cortando a ponto do sangue começar a gotejar, mas o anjo não pareceu se importar. A dor lhe era bem-vinda.

— Onde você está? — perguntou, podia-se ouvir o som de algo partido em sua voz enquanto o aperto se intensificava. E então houve um estalo quando o metal partiu ao meio.

Os dois pedaços da preciosa espada caíram-se ao chão. Assim como seu dono, que caiu sobre os joelhos de frente aos restos. Lágrimas lhe cortavam a face mais do que a lâmina havia lhe cortado a palma, ao segurar com ódio os pedaços da espada que era conhecida por sua grandiosidade, mas que nesse momento revelava ser nada menos que ordinária.

 — Onde você está, minha Moriá?


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Notas finais do capítulo

O que acharam dessa dinâmica Miguel e Rafael?



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