Lost Stars escrita por Luna Lovegood


Capítulo 10
Capítulo 9 - Promessas de Sangue


Notas iniciais do capítulo

Para Iza.

Eu sempre cumpro minhas promessas, atrasada, porém sempre.



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É uma armadilha consagrar algo precipitadamente, e só pensar nas consequências depois que se fez o voto.

Provérbios 20:25

 

Ariel caminhava com determinação. Em seu rosto uma expressão altiva e dura, fazia com que todos que estavam em seu caminho, se desviassem imediatamente, lhe dando passagem. Eles a conheciam bem o suficiente para saberem o seu lugar na hierarquia, e era muito acima deles. Ela alcançou uma porta simples, entalhada em carvalho, quase escondida, e que parecia destoar no meio do labirinto de corredores em mármore brilhante. Bastou girar a maçaneta e imediatamente sentiu-se respirar mais calmamente. A ansiedade aos poucos desaparecia. Tudo naquele aposento refletia serenidade e paz, desde as paredes pintadas em um tom de suave de verde-água, às imensas portas de vidro sempre abertas e que ligava à um jardim que mais parecia uma continuação do ambiente anterior, integrando-se naturalmente. O som de água fluindo não muito longe tinha o dom de desacelerar a pulsação de Ariel.

Diziam que ali um dia fora o jardim do Éden.

Mas não se permitiu ser enganada pelo o que o ambiente lhe causava, ela sabia que aquela sensação não era real. Uma ilusão apenas.

Ariel atravessou toda a sala em direção ao jardim, onde encontrou um homem com cachos loiros, parecendo alheio ao som da sua proximidade. Ele estava de costas podando uma roseira branca e parecia distraído demais com seus próprios pensamentos para prestar atenção em outra pessoa.

Apenas parecia.

Ele não estava distraído ou alheio, embora certamente estivesse em um lugar apenas seu. Ele apenas sabia quem estava ali, sem sequer se dar ao trabalho de olhar.

Ali, ela se sentiu segura para despir a máscara que estivera usando até aquele momento, ela sabia melhor que nada poderia ser escondido em sua presença. Soltou o ar que segurava com tanta força, e permitiu-se transparecer a tristeza que trazia em seu coração.

 — Gabriel — chamou ela, com a voz embargada pelas lágrimas que tanto se esforçava para conter, e que já não fazia mais sentido segurar.

O homem se virou, surpreso, o que não era natural. Seus olhos azuis claros como um céu que nunca vira nuvens, fitaram Ariel, o rosto sereno dele imediatamente se contorceu ao notar a preocupação que anuviava os olhos dela. Sentindo a dor dela, mesmo que não a compreendesse ainda.

— Ariel — disse apreensivo a puxando para um abraço afetuoso, buscando consola-la. Ele não sabia o motivo da aflição dela, mas era assim que Gabriel sempre agia, ele não suportava ver alguém sofrendo. Talvez empatia fosse seu outro dom.

Era irônico que um anjo pudesse ser tão humano.

Ela deixou se aconchegar naquele abraço por um momento, tombando a cabeça nos ombros do amigo. E permitiu-se chorar, não o pranto histérico que seu coração clamava, mas um choro silencioso, acompanhado de uma lágrima solitária, mas que parecia conter toda a sua dor.

Gabriel quebrou o abraço, mas não o contato, permaneceu segurando-a pelos ombros impedindo-a de desabar, enquanto fitava seu rosto com estranha concentração.

 — Agora, conte-me o que aconteceu. — O pedido viera num tom quase imaculado — Eu nunca a vi tão transtornada, Ariel. E eu não... — franziu o cenho com mais força enquanto a olhava. — ... Eu não consigo ver.

Gostaria que ele pudesse ver, assim não seria obrigada a contar. Mas se ele pudesse ver... Não estariam aqui agora. Não é à toa que ela esperara até seu retiro espiritual, quando a mente do anjo se desconectava de tudo, para tomar sua decisão.

Ariel se recompôs, lembrando de sua missão. Era um soldado afinal. Um soldado em uma guerra solo.

Secou a lágrima e respirou fundo, buscando recuperar a estabilidade na voz.

— Em breve irá acontecer algo muito grave, na verdade parte disso já está acontecendo. E receio dizer que é tudo minha culpa. — As sobrancelhas de Gabriel se uniram em uma clara demonstração de desentendimento. Ela via as veias em sua testa distendendo-se, o as pupilas brancas dilatando-se ao olhar focar-se nela.

Gabriel pressionou fortemente as mãos nos olhos, esfregando-os como se tentar enxergar doesse.

Quando seu olhar voltou para Ariel, havia apenas cansaço e frustração. Nenhuma resposta.

— O que está acontecendo? Me diga o que eu posso fazer para ajudar! — um pequeno sorriso adornou seu rosto triste, o anjo a sua frente sempre a fazia acreditar que ainda existia bondade nos anjos.

Ela sentiria falta dele.

— Eu preciso que me prometa uma coisa. — Ariel se aproximou tanto quanto lhe era permitido. As lágrimas ou o pequeno sorriso já não estavam em seu rosto, apenas uma seriedade fria.

— Qualquer coisa. — Ela não merecia a fé cega que Gabriel lhe oferecia. Que os céus e o inferno tivessem piedade dela. — Ariel?

— Não importa o que aconteça comigo e com o Rafael hoje, — o anjo abriu os lábios e seus olhos se mostraram aterrorizados com o que via além, mas Ariel continuou a falar — Eu preciso que me prometa que nunca, em hipótese alguma, contará onde nós estamos. — Odiou ver as perguntas no rosto do amigo, mas odiou ainda mais ver o horror que suas próximas palavras trouxeram. — Diga que morremos.

Gabriel ficou rígido.

— Vocês estão nos deixando. — Aquela talvez tenha sido a única vez que alguém viu uma emoção mais perto da raiva passar por Gabriel.

— Eu não faria isso se não fosse necessário. Confie em mim, Gabe. — O apelido suavizou o semblante dele, mas não o suficiente.

O anjo se afastou, virando-lhe as costas e caminhando até a roseira.

Ariel o seguiu.

Precisava dele, ou então tudo seria em vão.

Ela astutamente esperara até o último instante para pedir por sua ajuda, esperara pacientemente por seu retiro. Sabia que o anjo jamais concordaria com seus planos, se ela o tivesse procurado mais cedo. Além disso, não queria arruinar mais um amigo. Ela faria o que faria, controlando o caos e arruinando o menor número possível de vidas.

— Você sempre terá minha confiança. Conheço sua alma, sei que é pura e bem-intencionada, mas precisa entender que me pede além das minhas forças, Ariel. — Era ciente disso — Eu jurei nunca mentir. Eu não sou capaz de quebrar meus votos sagrados nem mesmo por um motivo nobre. —  ele não a encarava enquanto falava, tinha suas mãos em concha em um botão branco — Nem mesmo para salvar a vida de dois queridos irmãos.

Ariel engoliu em seco.

— Pensei que não pudesse enxergar quando está em retiro.

— Não posso. — confirmou dessa vez olhando para ela — Mas sei ouvir um coração, e o seu está aflito. — ele ergueu a mão pedindo pela dela, Ariel sentiu a paz momentânea ao entregá-la — Eu sinto muito, mas não sou capaz de mentir.

— Eu sei. — Havia algum pesar em sua voz, sabia que pedia muito ao amigo. Mas também sabia que era necessário ou todos os sacrifícios seriam em vão — Eu não te pediria isso se não fosse absolutamente necessário.

— Votos não podem ser quebrados. — foi resoluto.

Ariel esperou, contando mentalmente até cinco.

— Mas podem ser enganados. — Gabriel deu um passo para trás, mas a mão que segurava a de Ariel não lhe permitiu se afastar tanto.

— Faça uma promessa de sangue. — Ela falou as palavras tão baixo que Gabriel pensou que seus ouvidos estavam pregando-lhe uma peça. O silêncio pesou entre eles, todos os sons desapareceram, como se o próprio jardim estivesse assombrado com o que era pedido.

— Apenas demônios fazem isso. — Seus olhos estudaram-na calculosamente, sua mente perguntando-se até onde Ariel estava disposta a ir.

— Talvez não estejam tão errados assim. — Ela ergueu uma adaga, cortando a palma da mão com destreza, e sem sequer piscar enquanto o sangue escorria de sua palma, caindo em gotas grossas sobre as pétalas brancas da roseira. — Sua vez. — Esticou a adaga, agora suja com seu sangue, oferecendo um acordo que manchava o anjo mais puro que já existiu.

✩✩✩

Ariel acordou agitada. Sacudiu a palma da mão buscando pelo sangue que, em seus sonhos, marcavam a pele alva fluindo de um risco perfeito. Porém nada havia ali, exceto marcas que um dia poderiam ter sido cortadas por adagas afiadas ao fazer um pacto de sangue como aquele.

Mas eram apenas as linhas das mãos.

Ela procurou respirar fundo e pausadamente, sentou-se e abaixou as mãos encontrando olhos felinos a encarando com curiosidade. O gato parecia estar ali há um tempo, placidamente sentado sobre as pernas da garota, e nem mesmo com seu sono agitado, o gato se espantou.

— Gato estranho. — murmurou ao se espreguiçar.

— Finalmente você acordou. — Lilah abriu a porta do banheiro trazendo o vapor quente para dentro do quarto. Usando um jeans apertado e blusa de seda, ela parecia produzida demais para um sábado de manhã. — Pensei que teria que jogar um balde de água fria em você.

— Onde está indo à essa hora? — Deu uma olhada rápida no celular sobre o criado mudo, não eram nem oito da manhã, e Ariel conhecia bem a amiga para saber que ela jamais se levantaria antes da dez, para um dia sem aula.

— Entrevista de emprego. — respondeu ao mesmo tempo em que passava o batom avermelhado sobre os lábios com uma habilidade incrível.

— E você vai fazer teste para dançarina de pole dance? — a amiga lançou um olhar enviesado para Ariel através do espelho.

— Damian conseguiu a entrevista para mim com o tio dele. — agora se concentrou em retirar a toalha dos cabelos molhados e ajeitá-los com as mãos, jogando o tecido úmido sobre a cama de Ariel.

O gato Voldy rosnou com ódio para sua dona, e pulou para longe da toalha que quase o atingira, se aconchegando no colo de Ariel.

— Então vocês continuam se vendo? —  Lilah ergueu uma das sobrancelhas, analisando o tom da amiga em busca de algum ciúme. Ariel deslizou os dedos nos pelos espessos do gato, tentando disfarçar a inquietação estranha que sentia ao pensar no rapaz, que se esforçara muito a evitar após aquele dia na praia, quase esquecendo que a criatura não gostava de ser tocada.

Mas estranhamente o gato não reclamou.

Ele acomodou-se, como todo felino, apreciando ser mimado.

— Nos esbarramos aqui e ali. —  Deixou no ar. E embora suas palavras tenham sido vagas e inexpressivas, seu olhar ao se aproximar de Ariel não era. — Ele manda mensagens. Mas sinceramente, o cara está totalmente afim de você. Sinto que estou sendo usada, por isso não me sinto culpada por usá-lo de volta. — sorriu — Não faça essa cara.

— Que cara? — Esforçou-se para não mover nenhum músculo facial, mas isso não deteve a amiga, que marchou em sua direção, colocando o indicador bem entre as sobrancelhas.

— Essa. — Ariel tirou-lhe o dedo, usando seu próprio para tocar a pele levemente enrugada. — Você está pensando demais. — Lilah continuou sentando-se placidamente na beirada da cama, o tom doce não combinava com um sorriso suspeito desenhado nos lábios carmim. — Foque-se na combinação mais importante: ele é um gato e está disponível. Por que não deixa ele se aproximar?

— Não tive tempo. — Sabia que amiga não engoliria sua mentira, por isso apenas sorriu e mudou de assunto. — Agora, me conte sobre a entrevista. Onde você vai trabalhar? — Lilah se ergueu, andando pelo quarto em direção ao pequeno armário, retirando de lá uma jaqueta vermelha estilosa, mas que não combinava nem um pouco com o sol forte que atravessava as cortinas do quarto.

— Você viu os folhetos do parque novo sendo montado perto da praia? Há também um circo o acompanhando, e o tio de Damian é o mestre de cerimônias. — Concordou mesmo não sabendo do que a amiga falava. Andava estranhamente alheia na última semana. Tinha habituado a sorrir, concordar e falar o que lhe era esperado, como se tivesse ativado o piloto automático, enquanto sua mente... Esta estava preocupada demais com outra coisa para perceber a vida que passava por ela. — Não um circo infantil com palhaços e animais sendo abusados, é algo mais contemporâneo, com acrobatas e mágicos, com danças e elementos teatrais. E eles precisam de alguém para ficar nos guichês, e que seja tão espetacular quanto o próprio espetáculo. — jogou os cabelos curtos por sobre o ombro e piscou. Ariel sorriu para si mesmo, Lilah era cheia de vida, combinaria perfeitamente. — Não é algo duradouro, o parque só ficará na cidade alguns meses, mas é dinheiro rápido e terei ingressos grátis para qualquer brinquedo ou evento que eu quiser. —  seus olhos se tornaram maiores ao encarar Ariel, suspeitos demais. — Ouvi dizer que há uma vidente que é certeira.  Talvez ela possa prever nosso futuro. — forçou um ar misterioso, mas que se perdeu na pequena gargalhada — Ou quem sabe falar sobre seus sonhos estranhos...

Ariel ficou desconfortável.

— Isso parece bom. — Apesar do pequeno sorriso nos lábios de Ariel, o olhar de Dalilah se estreitou desconfiado.

— Por que ele não te mordeu até agora? — o gato estava cochilando no colo de Ariel.

— Estamos começando a nos entender. —  Devolveu com um sorriso convencido, mesmo sabendo que o que dissera não era verdade. Era provável que o gato sofresse de dupla personalidade.

— Isso é bom. — pontuou — Preciso que leve Voldy para passear essa manhã, ele tem estado muito preso no dormitório. Talvez seja por isso que é tão mal-humorado.

— Ele não é um cachorro, Lilah.

— Claro que não. — ela abaixou em direção ao gato que tinha seus olhos semiabertos — Se fosse um cachorro ele seria bem-comportado. — A mão foi em direção a cabeça do animal, para um cafuné — Coisinha esquisita que a mamãe ama... Ouch. — Lilah puxou o braço assim que o bichano rosnou, mas não rápido o suficiente para evitar o arranhão que agora marcava a pele do pulso.

— Lilah, precisa de um curativo? — Ariel se ergueu prontamente, tentando se lembrar onde estava a caixinha de primeiros socorros.

— Eu estou bem. — refutou apenas puxando a manga da jaqueta para cobrir o machucado, e sorriu. — De todo modo, não tenho tempo para isso. Cuide do nosso gato. — Saiu apressada e exclamando antes de bater à porta.

Olhando para o bichano esparramado em sua cama, inocentemente lambendo a pata usada como arma do crime, Ariel teve uma única certeza: o gato Voldy sabia muito bem como se cuidar.

Mas talvez as duas precisassem aprender.

 

✩✩✩

Rafael caminhava com passos pesados e lentos.

Particularmente não gostava da sensação de areia sob seus pés, por isso usava sapatos, mas gostava das pegadas impressas que eram deixadas para trás e logo depois apagadas pela água do mar. Havia algo de tristemente belo na efemeridade delas. Questionava-se se na vida também era assim. Se todos seus atos passados seriam, em algum momento, apagados como se nunca tivessem existido.

A vida progride.

As pessoas mudam quando necessitam se adaptar.

Gostava de pensar que era isso o que estava fazendo, mas não importava o quão longe caminhava, o quanto as ondas apagassem suas passadas, quem ele era, no final, sentia que não caminhava para lugar algum.

Sentiu algo roçando-lhe a perna.

Desceu o olhar.

Seus reflexos eram excelentes, mas não vira a bola de pelos negros se aproximar.

— Você é um gato muito estranho.

— Eu vivo dizendo isso. — A voz feminina flutuou até ele, fazendo-o fechar os olhos por alguns segundos, apenas sentindo-a. Tinha que estar realmente distraído para não perceber sua proximidade mais cedo.

— Ariel. — O nome foi dito dentro de um suspiro cansado. Estava exausto de lutar contra pensamentos que o levavam a ela, e quando estava perto de conseguir, o destino trabalhava contra ele... Trazendo-a para ele. — Que surpresa vê-la por aqui. — Tentou amenizar o tom anterior.

— Eu posso dizer o mesmo. — Rafael ergueu uma das sobrancelhas, sem compreender a razão da ligeira acusação da garota. — Você não apareceu para as aulas. — Explicou mordendo o lábio, quase como uma punição por ter dito algo que não deveria. O ato chamou-lhe a atenção, não era comum à Ariel que conhecia ficar nervosa ou se reprovar.  — Tivemos Alaric no seu lugar pelas últimas semanas. — Sorriu, gostando de fingir para si mesmo que a reclamação era um jeito dela dizer que sentiu sua falta.

— Tive alguns... — Como explicar? Foi sequestrado pelo líder do exército dos anjos, e agora tentava manter o perfil baixo, longe dela, esperando que Miguel fosse embora antes de descobrir que Ariel estava aqui? — ...Problemas familiares. — simplificou por entre os dentes.

— Eu espero que tudo esteja resolvido. — Longe disso, pensou.

— Precisaríamos de milênios e de um terapeuta muito paciente. — Rafael se esforçou para dar ao seu tom pragmático um pouco de humor. — E provavelmente nem mesmo assim. — Rafael piscou em camaradagem e Ariel riu, algo quente e há um longo tempo adormecido cresceu dentro do peito de Rafael. Seu olhar rapidamente se desviou acompanhando a direção do sol. Fugindo. Apreciando o efeito cegante de seus raios. Esperando que cegassem seus olhos para o efeito deslumbrante que o pequeno sorriso causava em seu rosto.

Mas nada podia fazer sobre o som do riso, que agora reverberava como a mais bela das canções em seus pensamentos.

Ele era um soldado.

Treinado para ser resiliente, para controlar emoções. Mas passara tanto tempo na terra sem precisar fazê-lo, que se esquecera de como fechar-se... Ou talvez, nunca soubera com fazer isto quando estava com ela.

— Então... Voltará a dar as aulas na semana que vem? — A pergunta trazia uma ansiedade que o incomodou. Ela não deveria se sentir assim com ele. Deveria ser capaz de apenas substituí-lo.

— O que faz aqui, Ariel? — A garota deu um passo para trás, um reflexo contra a pergunta um tanto quanto rude. Sentiu-se imediatamente mal por sua atitude. Era difícil se lembrar de que esta versão de Ariel não tinha culpa em seus problemas.

— Trazendo o gato para passear. — apontou para Voldy que estava bem a frente dos dois, brigando com uma planta.

Continuaram a caminhar por um minuto ou dois sem nada dizer. Ariel tentando compreender porque tudo era tão estranho entre eles, e ainda assim, porque era tão difícil para ela, apenas se afastar como o simples conhecidos que eram.

Ele era seu professor.

E ela apenas uma aluna, entre tantas outras.

E Rafael... Ah Rafael. Sempre tão cuidadoso ao redor dela. Pensando e repensando cada palavra antes de ser dita, se preocupando com cada respiração dada próxima demais a dela, temendo tocá-la, mas ao mesmo tempo desejando tanto. Desejando tudo. Era egoísta. Desejava encontrar em seu rosto qualquer indicação de que ela se recordava dele, desejava poder rir com a melhor amiga mais uma vez, desejava pegar em sua mão e entrelaçar seus dedos, apenas... Desejava. Rafael sabia que o mais seguro seria jamais encontrar reconhecimento em seus olhos, que após esse reencontro, Ariel seguisse com sua vida humana sem ele. Por mais que lhe doesse, este era o certo. Deveria ir embora. Porém o conflito entre seu coração e sua mente, o mantinha inerte. Sequer percebia que não fazia diferença. Seus atos jamais mudariam o que estava dentro deles. Jamais mudariam suas almas.

Moldadas para buscarem uma pela outra.

E muitas vezes, não fazer nada, é tomar uma decisão.

—  Onde estão seus sapatos? — Rafael perguntou após olhar para baixo e notar os pés desnudos da garota, quebrando o perturbador e ao mesmo tempo, tão confortável silêncio.

—  Em algum lugar não muito longe.  — Deu de ombros.

— Está frio. — Resmungou aborrecido ao se lembrar de que ela, era afinal, humana. —   Você vai adoecer.

—  Obrigada pela informação, mamãe. — não gostou da forma como se sentiu velho ao lado dela, que sorria e revirava os olhos para sua colocação. — Mas acho que já sou grandinha o suficiente, sei me proteger. — Não sabe se proteger do que está por vir, sequer faz ideia. Pensou Rafael, ainda mais irritado com a mortalidade. Como Ariel pode ter pensado que isto — se tornar humana — era uma boa ideia? —  Você deveria tirar os seus.

—  Os meus o quê? — perguntou, completamente alheio.

—  Sapatos. —  olhou para os próprios pés, presos em sapatos sociais escuros, sujos de areia branca nas extremidades. — Experimentar a sensação da areia entre seus dedos, sentir que não há nada entre você e a terra. É um processo de unificação com a natureza. Além do quê, é quase como uma massagem para os pés.

— Vou manter meus sapatos, mas esse foi um excelente discurso. — começou a sorrir para ela, mas logo se refreou. —  Se algum dia eu decidir tirá-los, saiba que foi graças a você.

Ela sorriu. E o sorriso dela aqueceu o coração dele ainda mais dessa vez. Como se fossem mil sois explodindo ao mesmo tempo.

Eles caminharam um pouco mais, em silêncio dessa vez.

—  Eu amo essa vista. —  Ariel parou olhando para o mar infinito, fundindo-se ao céu azul. Era impossível determinar onde um começava e o outro terminavam, eram um só. —  Não consigo imaginar nada mais lindo.

—  Eu consigo. —  Suas memórias o levaram para outro momento, tão parecido quanto. O alto de uma montanha. Um por do sol. Os dois sozinhos. O mesmo olhar de contemplação nos olhos dela.

— Como pude esquecer? — Estaria ela se lembrando...? Seu coração encheu com a mais pura esperança quando Ariel voltou o rosto na direção do dele. — Sempre me esqueço que você já viajou o mundo inteiro, professor.

Professor.

Não apenas Rafe, o anjo que um dia foi seu melhor amigo.

Mas professor.

—  Nunca quis sair de Paradiso? — Indagou. A curiosidade o movia e o distraía de seus dilemas maiores. Por hora queria conhece-la, queria entender como ela poderia ser tão diferente, e ainda assim, essencialmente a mesma.

— Acho que querer não é bem o verbo. — ela enrolou, parecia haver algo escondido ali. —  Eu sempre tive curiosidade com o restante do mundo, eu estudo história não porque gosto do passado. Mas porque há tanto a entender, ver, conhecer. Culturas. Pessoas. Lugares. Há um mundo inteiro lá fora esperando ser descoberto, e aqui estou eu, presa em Paradiso. — chutou frustrada um cascalho em seu caminho.

— É uma questão de dinheiro?

— Não. É uma questão de má sorte mesmo. — Rafael franziu o cenho sem compreender — Toda vez que planejo alguma viagem, algo ruim acontece.

— Está exagerando.

— Não estou. Seria engraçado, se não fosse quase mórbido. — Ela explicou dentro de um suspiro — Passamos meu último ano escolar planejando minha viagem de formatura. Europa. Mas minha mãe quebrou a perna num acidente estúpido e tive que cancelar. E todas as viagens antes disso seguiram a mesma linha. A ponte caiu quando estava indo para o acampamento de verão, quando eu tinha nove. Tive catapora em uma excursão escolar. Tirei o apêndice na outra. O museu que iríamos visitar pegou fogo. Teve um ano em que nevou por quase trinta dias direto, e ficamos ilhados aqui. Bye, bye viagem para esquiar. — Rafael escutava suas palavras com uma sensação ruim. Não existem coincidências. — Viu só? Azarada. Vinte e um anos, e tudo o que eu conheço são os prédios velhos de Paradiso.

— Você deveria ir embora. — Falou com seriedade. Esta seria a solução mais prática, Havia algo de estranho na cidade e tirar Ariel lhe daria tempo para investigar, ao mesmo tempo que a manteria segura. — Pegar suas coisas e entrar no primeiro avião para bem longe.

— Agora? No meio do semestre? — Ele assentiu — Está tão ansioso assim para se livrar de mim?

—  Eu não quis dizer isso. — Apressou-se em corrigir temendo tê-la magoado. Estava sendo apressado e estúpido, e se estava correto, tão pouco seu plano funcionaria. Ariel possivelmente estava atada à algo aqui, por isso não poderia sair.

— Eu sei. — sorriu, o desculpando — Talvez você possa me ajudar, diga-me, por onde devo começar minha incrível aventura de descoberta?

— A terra é um lugar incrível. —  Rafael divagou deixando a inspiração guia-lo. Viver entre os humanos, de certa forma era um presente que ele jamais teria a coragem de pedir, mas que Ariel sempre soubera que ele queria. — Tantos anos aqui, e ainda há tanto que nunca vi...

—  A terra? — ela o interrompeu com um riso. — Você fala como se fosse um alienígena.

—  Talvez eu seja. — piscou, sentia-se um na maior parte do tempo.

—  Pouco provável. — recusou a ideia — Você seria verde.

— Gostaria de te mostrar.

— Que é verde? — Perguntou. E dessa vez quem riu foi Rafael. Um riso encorpado e rico, e, Ariel não pode deixar de notar que parecia um pouco desacostumado.

— Gostaria de te mostrar o mundo, e todas as coisas belas que há nele. — ficou surpresa com a intensidade com que gostaria com que Rafael lhe mostrasse tudo. Sentia que veria o mundo por outros olhos que não apenas os seus. — Fotos, é claro.

— É claro. — Conteve seus sonhos bobos.

— Levarei algumas para a próxima aula. — se viu falando, e os olhos de Ariel se iluminaram.

— Então voltará? — Havia mais na pergunta dela. Ambos sentiam isso, embora ainda não entendessem a extensão dela.

— Não consigo me manter afastado. — havia uma leve repreensão a si mesmo que não passou despercebido. — Você deveria ir para casa, Ariel. — ele disse, evitando olhá-la. — Logo irá chover.

—  Ainda é cedo. — Encarou as nuvens que se formavam no céu. Elas não estava ali quando chegara a praia, o dia prometia ser claro e quente, mas agora subitamente mudara. — Acredito que Voldy ainda não terminou seu passeio pela praia.

— Voldy?

— Como em Voldemort, de Harry Potter. — explicou.

— Não conheço. — A garota parou. Rafael viu em seu rosto que a havia ofendido.

— Para um professor culto que conhece o mundo, como é possível que não saiba nada sobre o livro mais lido?

— Eu pensei que fosse a bíblia. — Uma gota de chuva atingiu Ariel certeiramente na testa, mas ela sequer se moveu ou a secou, apenas deixou que outras gotas espaçadas se juntassem a ela salpicando seu rosto com água limpa. O gato por sua vez não apreciou tanto o chuvisco, correu de volta em sua direção e entrelaçou entre as pernas da dona miando pedindo por abrigo.

Ariel abaixou-se e segurou o bichano no colo.

—  Leia Harry Potter. — falou em tom exigente.

— É um pedido?

— Uma ordem. — Ele assentiu, talvez acostumado demais a sua época de batalhas em que seguia a liderança de Ariel, ou talvez apenas ansioso para descobrir mais sobre seu livro favorito.

— Acho melhor eu ir, Voldy não gosta de chuva. — Ele assentiu.

Ariel partiu.

Os olhos de Rafael não a seguiram como costumavam fazer. Ao contrário, ele olhou para trás observando suas pegadas impressas lado a lado, junto as dela. Se atreveu a sorrir, gostando de ver suas vidas entrelaçadas mais uma vez, gostando de ter todas aquelas sensações eufóricas domando seu ser. Mas o sentimento foi fugaz, e logo se foi quando uma pequena onda quebrou lavando a areia, e levando as passadas consigo. Lembrando Rafael de que isto era tudo o que eles sempre seriam.

Uma história apagada.


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