Lost Stars escrita por Luna Lovegood


Capítulo 8
Capítulo 7 - Akai to


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura!



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Ela não se moveu por um tempo.

Um tempo suficiente longo.

O calor da água quente caía sobre a pele de Ariel tingindo o branco alvo com manchas vermelhas, mesmo quase queimando a pele, a sensação de frio não desaparecia. A garota dizia a si mesma que nunca mais pularia no mar nessa época do ano, quando a água estava assim tão gelada, mas no fundo ela sabia que era algo mais. Não era o frio da água do mar que a incomodava, esse há muito já havia se dissipado. O novo frio era um frio mais profundo que vinha de dentro de Ariel e passava por seus olhos nublando lhe a visão, como se fosse uma neblina espessa, por isso o calor do chuveiro não era capaz de aplacar.

Ela jogou a cabeça para trás e fechou os olhos, esperando que a pressão da água sobre o rosto, ao menos a livrasse da súbita dor atrás dos olhos. Mas nada aconteceu. Algo estava errado dentro de si, ela podia sentir. Ou melhor, não sentir.

Era o vazio que a incomodava.

A sensação de que algo aconteceu, que algo não estava certo. Algo estava faltando. Esticou a mão para frente tocando o nada, tentando alcançar a tal coisa perdida sem sucesso, embora sentisse que ela estava tão próxima que quase podia tocá-la. Uma sombra indistinta dançou no fundo das pálpebras, um formato reconhecível, mas era só.

— Ariel — seu nome veio acompanhado de batidas insistentes a porta, o som da voz da melhor amiga fazendo-a se perder do devaneio. Abriu os olhos ainda debaixo d’água, piscando-os freneticamente, pois os mesmos ardiam e ela já não sabia se as lágrimas que escorriam dele eram pela ausência ou pela dor — Você vai demorar muito? Ainda não escovei meus dentes.

— Estou saindo. — respondeu, desligando a água e desligando suas divagações também. Apressou-se para enrolar os cabelos com a toalha e vestir um roupão, sem se dar ao trabalho de se secar direito.

— Você está bem? — Dalilah inspecionou o rosto da amiga assim que esta abriu a porta.

— Estou. Por que a pergunta? Foi você quem quase se afogou. — Ariel revidou, mudando o foco da conversa. Lilah já sabia de coisas estranhas demais ao seu respeito, não desejava acrescentar a lista a recente obsessão de Ariel por sentir falta de algo que não sabia o que era.

— Eu sei, mas eu não me sinto diferente, na verdade foi como se eu tivesse tirado um cochilo e depois acordado. Eu sequer me lembro de como aconteceu... — deu de ombros, como se não desse importância para o evento — Agora já você, minha amiga... Você sim parece que se afogou.

Me afoguei no vazio.

— Você me assustou, Lilah. — disfarçou a verdade com outra. — Eu pensei que não estivesse respirando. Foi assustador. — Os olhos das amigas se encontraram, o coração de ambas reagindo a seriedade e ao medo que as duas sentiram.

— Você é uma fofa! — a garota deu grande um sorriso, quebrando a tensão. Dalilah nunca gostou de momentos assim, ou de perder seu bom humor se preocupando com coisas ruins que já passaram.  — Eu até te abraçaria se não estivesse toda molhada. Vá se aprontar enquanto eu escovo meus dentes, precisamos dormir depois de todas as emoções, porque temos que terminar aquele trabalho dos infernos amanhã. E infelizmente eu ainda estou respirando e não tenho uma desculpa para não fazê-lo. — falou dramaticamente levando a mão a testa num gesto teatral, e por fim dando-lhe as costas, mas não sem antes jogar os cabelos por sobre o ombro e sorrir. — A não ser que você possa convencer seu professor por mim...

— Ele não é meu professor. — negou veemente.

—  Oh, então você não assiste as aulas dele? — Lilah perguntou num tom falsamente ingênuo.

— Apenas, cale a boca! — Ariel exigiu, pegando a almofada mais próxima e jogando em direção a amiga que corria aos risos para dentro do banheiro batendo a porta. Ariel riu também, mas seu riso logo cessou assim que não havia mais razão para forçá-lo. Ela havia aceitado a provocação de Lilah apenas para dar a impressão de que tudo estava bem.

Mas não estava.

Talvez nunca estivesse.

Ariel invejou a vida da amiga por um momento, se perguntando por que não poderia ser normal como ela? Por que não ter preocupações tão simples quanto um trabalho da faculdade ou provocar a melhor amiga sobre seu interesse no novo professor?

Seria tão mais fácil.

Ariel não foi se aprontar para dormir como Dalilah tinha sugerido. Ela apenas deitou-se a cama, ainda molhada e ainda sentindo aquela falta.

Fechou os olhos, imagens daquele dia repassando no fundo de suas pálpebras.

E dormiu.

E sonhou.

Ficando contente dessa vez porque apesar da noite agitada, seus sonhos não foram assombrados por batalhas estranhas e sangrentas ou pessoas sendo torturadas. Tão pouco pareceram vivos como memórias reais. Ela sonhou que estava em uma sala branca e vazia.

Com fios vermelhos que se emaranhavam presos por todos os lados, do chão ao teto, de uma parede a outra, formando uma intricada cama de gato. E ela estava bem no meio deles, sem conseguir se mover sem que o estranho fio embolasse nela.

E o mais estranho aconteceu quando Ariel ergueu seus olhos e penas brancas começaram a cair do céu.

Ela parou a mão e uma delas pousou suavemente sobre sua palma.

— É isso.

***

Há muito tempo que Rafael não sentia aquele formigamento nas palmas das mãos. Tanto tempo sem usar seu dom para salvar uma vida humana, que ele havia quase se esquecido do poder que ainda corria por suas veias. Quase se esquecera de quem ele era. Parte dele acreditava que ao ter suas asas ceifadas e ser jogado à terra como a escória dos anjos, ele perderia aos poucos aquele incrível dom dado a ele, tantas outras coisas angelicais foram desaparecendo com o passar dos anos. Por que não mais essa? Talvez a outra parte dele tenha se acostumado a ver que a cada dia ele se sentia mais humano, até chegar ao ponto em que sequer pensava que havia restado algo angelical dentro de si.

Mas havia.

Ele curara a amiga de Ariel com suas próprias mãos.

Ergueu as palmas para cima, olhando as linhas ligeiramente avermelhadas que circulavam pela pele formando padrões diferentes toda vez que se encontravam. Puro poder passando por elas.

— O que eu sou? Metade anjo. Metade homem? — perguntou a ninguém em especial. E como já era esperado, tão pouco ninguém lhe respondeu.

Mas mesmo assim, ele sentia que estava sendo observado. Sentia que salvar aquela vida talvez lhe trouxesse uma atenção indesejada. Atenção essa que Rafael não desejava que recaísse sobre Ariel.

***

Rafael se concentrou na normalidade. Tentou agir como se aquele fosse um dia qualquer, porque no final ele era. Depois de um final de semana pensativo, decidiu-se por apenas ir para sua sala e lecionar suas aulas, sem mais surpresas, sem mais permitir que assuntos celestiais roubassem seu sono. Ele decidiu que seria apenas um humano, sua decisão deveria contar para algo, certo?

E quando ela entrou na sala naquela manhã ensolarada, ele não lhe deu uma segunda olhada. Não notou como o sol dava aos seus cabelos nuances diferentes de vermelho quase brincando com os fios. Não percebeu as pequenas olheiras que faziam os olhos castanhos parecerem maiores, e também não viu o misto de confusão e tristeza que havia ali. Ele não se importou com ela. Ele agiu indiferente, como o professor que deveria ser.

Exceto que não.

Ele não se contivera.

Era suposto que Rafael se mantivesse longe da garota, era isso o que sua mente lhe dizia para fazer. Ele ouvia o tom de ordem em uma voz há muito tempo esquecida lhe dizer “Afaste-se dela, Rafael”, “O que você sente é errado, sabe disso”. Mas o chamado de sua alma era mais forte do que o som imperativo daquela voz. Numa outra época ele teria obedecido aquela voz, teria se posto de joelhos e lamentado por seus pensamentos reprováveis. Porque haviam leis maiores a serem obedecidas, regras as quais Rafael devia submeter-se. Ele sacrificaria a sua vontade e esconderia seus sentimentos, a razão teria vencido.

Não dessa vez.

Agora ele não devia nada a ninguém, não havia mais voz lhe dizendo o que fazer, não havia mais lei. Pelo menos não uma à qual ele tivesse que se submeter. Ele não era mais um anjo, e pela primeira vez ele se viu realmente aproveitando os benefícios do livre arbítrio e cedendo aos desejos sem medo de ser punido por isso.

Não, Rafael não atravessou a sala indo diretamente à Ariel como alguém desesperado e sofrendo pela saudade.

Por mais avassaladores que fossem seus desejos, ele ainda não sabia muito o que fazer com eles. Um passo de cada vez, decidiu-se. Porque ele não estava acostumado a isso. Não estava acostumado a poder sentir. E também não era tolo para apressar tudo. Foram mil anos para conhecê-la e encontrar nela sua melhor amiga, e mil anos amando-a em segredo e se condenando por amar porque sabia ser errado, que este sentimento fazia dele uma aberração entre os anjos.

Por mais que tenha perdido uma parte de si ao cair, não podia negar que encontrara alívio na vida humana. Sem mais esconder sentimentos.

Sem mais esconder a si mesmo.

Humano ou anjo, não importava.

Talvez fosse exatamente isso o que ele sempre devesse ser.

Ele se concentrou em observá-la quando sabia que seus olhos não se cruzariam, prestou atenção em seus detalhes. O jeito que ela tamborilava impaciente com o lápis por sobre o caderno, e sua boca se contraía expulsando uma maldição. O seu cabelo que lhe caia sobre uma parte do rosto, como se intencionalmente ela quisesse se esconder de todos. Ele apenas observou. Mesmo que a vontade fosse de ir até ela e saber o que se passava em sua mente que parecera tão fora do ar durante toda a aula. 

Nem mesmo a sua Ariel lhe contava tudo. Seria estupidez sua, acreditar que esta — que mal o conhecia — iria dividir qualquer pensamento com ele. Mas isso não impediu de querê-los para si, não impediu que seu olhar a seguisse a cada momento, tentando decifrar em seus pequenos detalhes o que ela pensava. Em um momento de distração, no meio de uma explicação, riu para si mesmo ganhando um olhar confuso dos demais alunos, ao perceber que ela não era tão diferente da Ariel que conhecia, com seus segredos.

Sentiu um verdadeiro peso deixar o coração.

E permitiu-se sonhar.

Talvez ela tivesse voltado para ele, e fosse apenas isso o que importava.

­— Professor? Eu não consegui responder a quinta pergunta. — Um dos alunos fez sua voz audível, interrompendo seus pensamentos sobre ela.

— Iremos discutir sobre na próxima aula, é um assunto um pouco extenso. — respondeu olhando rapidamente para o relógio em seu pulso e verificando as horas — E a aula já acabou. Deixem seus trabalhos sobre a minha mesa antes de saírem.

Rafael percebeu, com certa satisfação, que Ariel demorou mais tempo do que os demais alunos para recolher suas coisas. Enquanto a maioria simplesmente jogava as folhas sobre a mesa e saia rapidamente pela porta, ansiosos para se livrarem do que para muitos deveria ser a matéria mais chata da grade.

Ariel caminhou altivamente na direção dele.

E Rafael sustentou o olhar, ansioso à medida que ela se aproximava.

— O trabalho. — Ela colocou sobre a pilha desarrumada na mesa de Rafael, seus olhos grandes se prendendo no dele, buscando por algo mais profundo, talvez? Mas logo desistiu, se afastando.

— Você está bem? — ele se viu perguntando, tentando ter mais tempo com ela. Sua voz foi mais suave e preocupada do que deveria, seu olhar pedido a ela coisas que a Ariel não estava pronta para dar — Depois do que aconteceu no sábado...

— É. — foi a resposta eloquente de Ariel, se afastando e colocando a mão sobre a pilha de trabalho — Eu quero dizer, o senhor está perguntando se Dalilah está bem, certo?

— Não. — negou sem hesitar — Estou perguntando se você está.

Ela piscou, confusão estampada em seu rosto.

— Eu não me afoguei.

— Eu sei. — Ele suspirou, ainda sustentando o olhar no dela — E então?

— Então o quê?

— Você se sente bem? — reforçou a pergunta que tão teimosamente ela evitava.

— Sim. — Não. Algo está errado. Os instintos de Rafael lhe alertaram da mentira, o gosto amargo dela atacando sua bile — Até a próxima aula, Rafael.

Rafael.

Rafael.

Rafael.

Ele sentiu o peito comprimir quando ela disse seu nome. Era tão bom ouvir a voz dela dizendo seu nome outra vez que ele se atreveu a sorrir. Por anos sua mente reproduziu a voz dela o dizendo, mas o tempo era cruel e cobrava seu preço. Sua mente já não era afiada e treinada como antes, e suas lembranças aos poucos tornavam-se mais imprecisas. Mas agora teria essa lembrança recente para reavivar as antigas.

Os antigos sentimentos que sempre estavam à espreita, se libertaram e voltaram a superfície e ele apenas se permitiu ser feliz naquele breve instante, feliz porque ela ainda estava viva.

— Ariel? — ele a chamou, se atrevendo a esticar a mão e enrolá-la sobre o pulso da garota. Mais por vontade de lhe tocar e de que ela ficasse mais um pouco, do que ter algo para lhe falar.

— Sim? —  Olhos de lince, grandes e castanhos piscaram para ele. Rafael buscou por aquele brilho especial nos dela, aquela ferocidade que não encontraria em uma estudante comum, mas apenas naquele anjo mais rebelde. Ele sorriu ao vê-lo ali, passando ao fundo de seus olhos, quase zombando dele.

— Apenas se cuide. — a garota assentiu com um pequeno e confuso sorriso, suas mãos soltando-se e o brilho no olhar de Ariel desaparecendo.

Ele a observou enquanto ela partia. Os olhos acompanhando sua silhueta, enquanto permanecia escondido atrás da persiana que encobria a janela, até que já não fosse possível mais vê-la. E só então Rafael afastou-se apoiando-se a mesa, os olhos caíram para o trabalho de Ariel no topo da pilha, pegando-o em suas mãos.

O ar fugindo-lhe.

O chão desaparecendo por baixo de seus pés.

Ele piscou os olhos e os esfregou, para ter certeza que estava enxergando bem. Mas não importava quantas vezes ele fizesse isso, não mudava o que tinha ali.

Rafael fitava ainda incrédulo as folhas em suas mãos quando um aluno retornou à sala para pegar um casaco esquecido. Ele sorriu, e assentiu educadamente, mas sua mandíbula estava dura e seus dentes rangiam. Os dedos apertavam as folhas numa mistura de raiva e temor, amassando-as.

Os mistérios da arca da Aliança.

Ele riu amargamente.

Aquilo era um tipo de brincadeira de mau gosto?

O que Gabriel havia lhe dito?

Que quanto mais ele se aproximasse da garota, mas ela se recordaria. Em um momento ele estava tão absorto pensando nela, no que significaria seu retorno para ele, que se esquecera completamente do resto do universo. Mesmo que Ariel agora fosse humana, mesmo que ele pudesse se atrever a não mais aprisionar seus sentimentos por ela.

Ariel não estava aqui por ele.

Seria um belo sonho se estivesse. Mas era apenas isso, um sonho, uma impressão de algo que jamais poderia ser, um desejo ingênuo de que a história de ambos, realmente fosse uma história. E não apenas ele e seus sentimentos por ela.

Rafael olhou para os papéis em sua mão novamente, dessa vez com uma raiva que lhe era tão incomum e que quase lhe cegava.

Ele estava disposto a não se aproximar por mais que ele quisesse que ela se lembrasse dele, que houvesse uma chance para eles no final. Rafael não lhe desejava a memória do restante, porque se lembrar era perigoso.

E era dever dele protegê-la do perigo.

E único jeito de protegê-la, era se afastando.

Mas, nesse confronto, onde ficava o coração de Rafael?

***

Akai Ito.

As palavras na língua estranha ainda se repetiam em sua mente o deixando frustrado e confuso. Rafael fechou o pequeno livro de capa gasta que tinha nas mãos com certa brusquidão, o jogando de qualquer jeito sobre o sofá do pequeno apartamento que alugara nas proximidades da faculdade, enquanto caminhava em direção à janela, encostando-se no vidro um pouco empoeirado que ia do chão ao teto, e encarando a noite sombria e sem estrelas.  

O prédio era antigo e nenhum pouco luxuoso, sem elevadores ou interfones, havia apenas o básico, mas Rafael nunca foi exigente com isso. Ele não se importava, poderia viver em qualquer lugar, principalmente quando ele sentia que nenhum daqueles lugares poderia um dia ser considerado propriamente seu lar. Havia apenas um prazer ao qual ele jamais se negara: ele gostava de estar no alto, que fosse no alto de um morro ou no último andar de um prédio, não importava, ele apenas precisava sentir que havia mais abaixo de si.

Ele não sabia ao certo o porquê.

Talvez ele apenas quisesse estar perto das nuvens.

Ou talvez fosse um modo de se torturar. Afinal do que se valia estar no alto de uma construção e não poder pular dela com suas asas abertas? Não poder sentir o vento cortando-lhe a face, a adrenalina de cair para logo depois subir aos céus com suas asas abertas?

A verdade que Rafael tão teimosamente ignorava, era que seu desejo nada tinha a ver com a vontade de estar mais próximo do único lar que um dia conheceu, ou tão pouco era alguma espécie de punição sádica por não ser mais um anjo completo. Não, a verdade era muito mais simples, talvez por isso tão difícil para alguém complexo como Rafael enxergá-la.

Ele sempre procurava estar no alto porque aquele era o meio do caminho. Ele não estava no céu, ele abandonara sua casa sem pestanejar para seguir um anjo, por amor e lealdade a este anjo. E Rafael também não estava na terra, porque não havia nada para ele neste lugar.

Mas agora, ele queria estar ao chão.

Uma força mais intensa do que a própria gravidade o puxava para ele, dizendo-lhe que ali era o seu lugar.

Que havia algo para ele ali afinal, algo que lhe pertencia.

Akai Ito.

Rafael praguejou batendo com o punho com mais força do que deveria na vidraça da janela, ele se surpreendeu ao ver as rachaduras intrincadas que se formaram ali num padrão arredondado. Ele estava assim tão frustrado que não controlou a própria força? Voltou seu olhar para o sofá, onde o pequeno livro ainda estava jogado sem saber que era a razão da confusão na mente daquele anjo caído.

Rafael sempre gostou de estudar.

Ele havia se mudado para Paradiso há pouco tempo, ainda haviam caixas. As poucas coisas que estimava e acumulara com o tempo em sua andança pelo mundo, todas elas espalhadas pelo pequeno apartamento. Exceto na sala. Esta estava imaculadamente organizada, com suas estantes embutidas em ambos os lados da lareira que existia apenas para fins estéticos, repletas pelos mais variados livros que Rafael havia adquirido naquelas duas décadas.

Ele era curioso por natureza, e mesmo essa não sendo a função para a qual foi criado, vez ou outra ele se via ávido buscando nos livros pelas respostas de todas as suas perguntas. Gabriel era aquele a quem o conhecimento era dedicado, assim como a espada era feita para Miguel. Mas ao contrário de seus irmãos, Rafael sempre gostou de pensar que ele era algo no meio dos dois, não totalmente voltado para batalha, tampouco apenas à sabedoria. E isso fez dele um anjo mais contido e pensativo, ele não era guiado por seus instintos assim como Miguel, ele gostava de pensar e avaliar antes de tomar decisões de risco, tentar visualizar todas as possibilidades e ver o quadro completo. Mas também não chegava a ser tão circunspecto e voltado para o estudo que sequer participava da ação, como Gabriel.

Talvez por isso tenha sido tão fácil encontrar seu ofício na terra como professor. Afinal, ele tinha milhares de anos em conhecimento e informações acumulados.

Mas hoje ele percebia que conhecimento não tem valor quando não se há prática, e que às vezes, palavras são apenas palavras.

Que outra razão havia para não se encontrar as respostas para as suas perguntas em um livro?

Assim como a humanidade pensava, era suposto que por ser um anjo ele soubesse sobre cada mistério da vida e da criação, que ele tivesse todas as respostas para todas as perguntas já feitas. E de algumas ele até tinha. Mas se vinte e um anos vivendo na terra como mortal havia lhe mostrado algo, era o quão pouco ele sabia, quantas novas perguntas surgiam diariamente? Percebeu que conhecimento adquirido nos livros não podia ser aplicado na sua vida.

Porque o conhecimento em sua maioria era sobre a vida humana.

E ele não era humano.

Akai ito.

A frase brotou novamente em sua mente, fazendo-o voltar ao sofá e tomar o livro em suas mãos, com um pouco mais de calma desta vez. Ele se sentou e respirou profundamente, relendo as palavras, absorvendo seu significado enquanto buscava por algo mais nas entrelinhas. Algo que pudesse ser usado para si.

Ele lia sobre Akai Ito, uma lenda de origem chinesa na qual acreditava-se que cada pessoa ao nascer tinha um fio vermelho invisível amarrado em seu tornozelo, e que o final desse fio estaria atado àquela outra pessoa destinada a ser sua alma gêmea. Assim, por mais distante que estivessem, mesmo que se passem anos, essas pessoas estão fadadas a se encontrar em algum momento.

Rafael não sabia se a lenda era real, talvez fosse. Humanos eram regidos por leis celestiais diferentes das dos anjos.

Anjos foram criados para lutar pelo bem e para proteger a criação. Enquanto os humanos... Havia tanta complexidade na existência dos humanos, mas em grande resumo eles vieram para viver.

 A vida era um ciclo. Eles nasciam e cresciam, eles aprendiam e repassavam esses ensinamentos aos seus filhos, com sorte para os netos e então morriam. Mas viver não era sobre completar o ciclo como se ao final existisse uma linha de chegada esperando por você, porque a verdade era que não havia uma. Viver era sobre amar e sorrir, chorar e ser feliz. Sobre amar pessoas e também perdê-las e com isso perder parte de si. E ao final, quando a morte viesse, sentir-se feliz e grato por apenas ter tido a chance de vivenciar tantas experiências.

Viver era, em sua mais simples definição, sentir.

E aos anjos foi negado o direito de sentir.

De viver e morrer.

De amar e sofrer.

Em todo o tempo em que Rafael perseguiu o conhecimento ele sempre evitou o tópico “amor”, não porque não quisesse saber sobre ele, mas porque tinha medo do que iria descobrir. Ele era um anjo afinal, e amar nunca fez parte das suas atribuições, longe disso, amar para um anjo era proibido, amar outro anjo, um pecado mortal... E mesmo quando o sentimento surgiu, ele se negou a buscar por qualquer informação, se limitando a apenas sentir as mudanças que ele fizera dentro de si.

Em um momento de loucura ele se perguntou se ele e Ariel estariam atados pelo tal fio vermelho. Eles eram continuamente atraídos à vida um do outro, lutaram lado a lado as mesmas batalhas, encontraram um no outro o apoio e a lealdade que residia na amizade, e jamais se separaram. E quando decidiram cair, decidiram fazer isso juntos. E mesmo depois de Ariel se tornar humana, aqui estava Rafael, novamente sendo trazido para o redor de sua vida. Quais as chances de se reencontrarem num mundo com bilhões de outras almas? Gabriel negara haver um plano divino para fazê-los se encontrar, então seria tal o fio vermelho unindo suas vidas novamente?

Seu coração inflou, esperança jorrando por ele, apenas para depois seus ombros se curvarem ao perceber que era impossível. Ele era um anjo caído e Ariel agora uma humana.

A regra não se aplicava a eles.

Mas, por que, apesar de toda a sua mente lhe dizer que era impossível, de que não havia falhas naquela construção, ele se sentia de alguma forma irrevogavelmente ligado a ela? Ainda sentando, ele ergueu o pé para que entrasse em sua linha de visão, girando-a e forçando os olhos, tentando enxergar alguma linha vermelha.

Não a viu.

Pensou que talvez anjos pudessem ser tão sonhadores quanto humanos.

Ou talvez, essa fosse a parte humana dentro de si.

***

Ele escondeu o trabalho dela sobre a arca da Aliança dentro daquele livro e o colocou de volta a estante. Ele o releu tantas e tantas vezes, impressionado com a riqueza dos detalhes. Detalhes esses que nenhuma página da internet ou livro poderiam prover, apenas alguém que realmente tivesse visto, a sentido e a tocado para saber realmente. Desejou poder falar com Gabriel, mas que diferença faria? O anjo havia lhe avisado que quanto mais perto ele ficasse de Ariel, mas ela se recordaria.

E seria tão ruim assim que ela soubesse quem ele era?

Ele desejava que ela se lembrasse.

Mas seu desejo era puramente egoísta, ele condenaria uma pobre humana apenas para que sua Ariel lembrasse dele? Que diferença faria? Ela nunca pertenceu a Rafael para que ele a reivindicasse de volta.

Não demorou para que ele percebesse que quanto mais tentava se afastar dela e manter os pensamentos limpos, mais tudo o pressionava em direção à Ariel. E seus olhos varriam o campus com maior frequência do que deveria, buscando por ela. Seu coração sentindo uma pontada fria quando a via conversando e sorrindo para outras pessoas, tendo outros amigos.

Tendo outra vida.

Uma vida sem ele.

Rafael parou de perguntar a Ariel como estava. Parou de tentar desvendar por si mesmo como ela estava. Forçou-se a ficar em sua casa corrigindo provas e planejando suas aulas, os afazeres o ajudavam a pensar em outras coisas que não se relacionassem a ela, a versão humana da sua Ariel. Ele tentava se convencer que por mais que a alma dela estivesse em um corpo humano, isso não significava que eles poderiam voltar a ser o que eram. Afinal ela era só uma humana. Mas simplesmente não conseguia evitar, e mais uma vez, depois de uma semana evitando se aproximar, se viu lendo aquele maldito trabalho sobre a arca.

Ele estava absorto na leitura, nas descrições precisas, toda a história da Arca estava ali, era um trabalho impecável, mas havia detalhes ali que seriam impossíveis de serem encontrados em livros. Isso o fazia questionar o quanto daquele trabalho tinha sido resultado de uma pesquisa árdua, e o quanto poderia estar relacionado a uma possível lembrança. E que lembrança seria essa?

Suspirou. Ele estava novamente sendo um tolo esperançoso. Se deixando levar pelas palavras de Gabriel.

A concentração dele era tanta, que não notou os passos silenciosos, porém firmes como os de um soldado do lado de fora.  Se não fosse pela pequena sombra que se moveu pelo vão da porta, ele teria sido pego completamente de surpresa. Os poucos segundos de vantagem que obteve serviram para pegar sua adaga de prata na gaveta da escrivaninha e se desviar do golpe rápido do homem que adentrou pela porta, prendendo-o por trás e forçando o metal afiado contra a garganta.

— Seus reflexos estão mais lentos, Rafael! Em um outro tempo você teria me parado bem antes de eu chegar à porta. Viver como um humano amoleceu você? — ainda que a adaga apertasse a garganta, o homem riu despreocupadamente como se não temesse a morte, ou ao menos aquele que a enviaria.

— Podemos dizer que estou envelhecendo, Uriel — o tom de Rafael manteve-se calmo — Mas a que devo a honra da sua visita? — Ele não fraquejou, seu aperto se tornando mais opressor. Conhecia um guerreiro celestial, não poderia vacilar com um deles.

—  Não é uma visita. — Outra voz o respondeu, um vislumbre a porta apenas — E abaixe a arma, não somos bárbaros.

Algo dentro dele ainda reconhecia o poder que emanava daquela voz, mais do que isso. Reconhecia o comando. Seus dedos sobre o metal relaxaram, e ele se viu abaixando a arma encarando o rosto ainda escondido pelas sombras. Violência nunca tinha sido o caminho escolhido por ele ou pelos demais anjos. Somente quando necessário.

Ele deu um passo à frente, tentando ver melhor o rosto entre as sombras. A distração promovida pela curiosidade foi seu erro, e ele só percebeu isso quando a pancada de um murro no centro do peito o jogou para trás com tanta força, que ele voou atravessando a vidraça da janela.

Violência não era o caminho.

Pelo menos não costumava ser.

E agora ele estava caindo.

E caindo.

E não tinha suas asas para impedir de chocar-se com o chão.

***

Demorou alguns segundos para que a visão turva de Rafael entrasse em foco. Mas por mais que ele tentasse, não conseguia identificar onde estava. A luminosidade no local era precária e composta por apenas um lampião emitindo uma luz fraca e amarelada sobre a mesa a sua frente, e essa luz tremeluzia. O resto era feito de escuridão. O ar abafado e o cheiro de mofo e poeira o levaram a crer que não haviam janelas ali, e se caso existissem provavelmente estavam fechadas. Tentou prestar mais atenção nos detalhes, mas a dor no meio do peito não o ajudava a se situar. Tentou levar uma das mãos até o local dolorido, foi quando notou que estava sentado em uma cadeira de ferro com os seus pulsos presos a correntes no chão. Aquilo lhe trouxe memórias dolorosas. Ele apenas suspirou vencido, não havia nada a fazer naquela situação exceto esperar.

Ele esperou um par de horas até ouvir um barulho de porta se abrindo, passos duros caminhando sob o chão de madeira antiga e podre que rangia. A sombra da pessoa que acabara de entrar se focalizou a sua frente, sob a fraca luz, e então ele pode perceber os intensos olhos negros que o encaravam.

— Nos encontramos de novo, Rafael...  — Reconheceu imediatamente aquela voz grave. Não havia como não a reconhecer, mesmo depois de anos. — Eu diria que senti saudades, irmão. Mas estaria mentindo.

 

 

 


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado!



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