Cantiga de outro Verão escrita por DezzaRc, A Little Dreamer


Capítulo 8
Sororidade


Notas iniciais do capítulo

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Música do capítulo: Desconstruindo Amélia - Pitty



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Sororidade vem do latim, sororis irmã e idad, relativa à qualidade. Se o pacto entre os homens é conhecido como fraternidade e reconhece parceiros e sujeitos políticos excluindo as mulheres, a Sororidade é o pacto entre as mulheres que são reconhecidas irmãs, sendo uma dimensão ética, política e prática do feminismo contemporâneo.

— "O que é feminismo" de Dra. Elida Aponte Sánchez.

 

Nina observava entediada a multidão aglomerada na saída da universidade. Era engraçado a forma como várias pessoas interagiam, viviam, choravam e sorriam ao mesmo tempo; cada uma tinha uma história a contar, algo único, pequenas informações que definiam o mundo de alguém. Pensar que ela era mais uma entre milhões, uma peça insignificante do jogo da vida que não faria diferença se desaparecesse, era agonizante. Afinal, que raios ela viera fazer na Terra a não ser se lamuriar da vida pacata? Será que sua vida seria apenas isso, não havia um "algo a mais" a esperando por aí? Infelizmente, a vida era injusta para muitos, pois nem todos que nasceram para sofrer necessariamente encontrariam a felicidade no último suspiro.

Ela preferia achar que sim, para o bem de sua sanidade.

A ruiva deu um suspiro aliviado ao ver que Julia se aproximava. Odiava ficar no ócio, ainda que fosse nessas horas que suas melhores ideias davam às caras. O preço a se pagar por elas era altíssimo, Nina ainda não se decidiu se valia a pena sofrer a tortura de refletir sobre a vida para ganhá-las ou não.

— Desculpe a demora, a galera acordou inspirada para os estudos hoje, a fila da biblioteca estava imensa! O livro da Kátia acabou, acredita? Na internet só tem digitalizado, que morte horrível...

— Tenta na biblioteca municipal, quem sabe dê sorte — Nina sugeriu, e ambas encaminharam-se esquivando dos alunos para a saída da instituição.

— É mesmo, tinha esquecido lá. Ei, Jacque te contou da cigana que está fazendo consultas promocionais lá na praça? Ela disse que uma amiga foi e acertou tudo, fiquei curiosa para ver.

— Sério isso, Julia? Cigana?!

Nina colocou os óculos escuros e a japa fez o mesmo. O tempo na cidade estava realmente uma coisa de louco: chovia no fim de semana e fazia um sol de rachar no restante dos dias. Nina vestia o uniforme do estágio, a calça obrigatória e uma camisa social por cima. Preferia estar com roupas mais leves, mas só de pensar em expor o corpo ossudo, mudava de ideia bem rápido.

— Ah, Marina, qual é? Você mesma disse que seu pai frequentava uma e ela vivia acertando a sorte dele — Julia se calou por um momento e só então percebeu que tinha tocado no assunto proibido. Relutante, ela fitou a ruiva de canto de olho e notou a expressão séria de Nina.

— Ela não previu o assalto.

Julia engoliu em seco e se arrependeu do que disse. Sabia, assim como qualquer pessoa próxima à ruiva, que falar sobre o falecido Fernando era um tema delicado. Por mais que Nina disfarçasse, a morte do pai era uma ferida recente e aberta. Havia dias que a moça se deixava sentir e vivia o vácuo que lhe sugava as emoções, um aperto que doía na alma e a dilacerava como uma faca de cozinha enferrujada. Pensar na morte era perturbador; a sensação de saber que uma das pessoas mais importantes de sua vida nunca mais passaria pela porta que há pouco saiu dizendo um único e simples "tchau", e logo depois tomar conhecimento que fora o último, era um pesadelo.

A agonia costumeira que a sufocava tomou-lhe conta do corpo e Nina desejou fervorosamente esquecer o maldito dia, o fatídico acontecimento que levou seu pai embora sem ela ao menos dizer o quanto lhe amava ou se a garota estava mesmo preparada para a perda. A quem queria enganar? Ninguém estaria preparado para dar o último adeus a alguém, não importava a idade. O tal adeus que significava um "até nunca mais".

— Quem é idiota de querer saber o dia da própria morte? — Julia indagou, tentando mudar de assunto.

— Talvez aqueles que decidem a própria morte — Nina ironizou, saindo de seus devaneios.

— Nina...

— Em nenhum momento eu disse que essa pessoa sou eu. Pode ficar tranquila, Julia, me manterei firme e forte sofrendo "sóbria".

Julia permaneceu em silêncio, pois preferia ficar quieta a começar uma discussão que não daria em nada, a não ser um dos dois lados machucados, o que provavelmente seria o da ruiva. A japa entendia a instabilidade da amiga e não podia recriminá-la por isso. Desde sempre, Nina fora o tipo de pessoa movida a sentimentos, que se alimentava de sonhos e vivia utopias. Àquelas que sentiam intensamente, e quando entravam em algo, era de corpo, alma e para valer. Nesse ponto, as duas garotas não poderiam ser mais diferentes. Talvez Julia tivesse aprendido a ser um pouco mais espontânea, mas Nina, por outro lado, catou o que sobrou das pedras do muro de Berlim e o reergueu ao seu redor.

Os minutos que se seguiram foram tão sólidos que era possível sentir o peso da atmosfera tensa pesar sobre o ombro das garotas. O ponto de ônibus ficava logo depois da praça que a cigana estava estabelecida, e quando as duas chegaram ao largo, Nina espiou sem interesse a fila de pessoas que esperavam para serem atendidas, o que não passou despercebido pela japa.

— A velha Nina iria sem pensar duas vezes — Julia arriscou.

— A velha Nina morreu há quatro anos.

— E a nova, quando irá nascer?

A ruiva pensou sobre a frase da amiga por alguns segundos e não gostou nada do rumo que seus pensamentos tomaram.

— Provavelmente quando recolherem os restos mortais dessa daqui. Até mais, Julia — ela molhou os lábios, apertou a bolsa no ombro e caminhou decidida até o ponto, deixando a amiga nem um pouco arrependida pelo que disse para trás. A última coisa que Julia pensou antes de tomar seu caminho foi que a vida de Nina se tornara um pesadelo no momento que ela decidira se importar.

As lágrimas queriam descer, mas Nina não mostraria ao mundo o quão fraca por dentro ela podia ser. Não sabia o que era pior: não sentir nada ou quando tudo vinha à tona e explodia em seu rosto. Distraída, entrou no primeiro ônibus que passou, por sorte o que lhe deixaria no estágio. Pagou a passagem de forma automática, se jogou no assento vazio ao lado da janela e retirou os óculos escuros, disposta a esquecer da vida enquanto observava os muros pichados do bairro.

Seu erro naquele dia ou uma coincidência infeliz do acaso.

Um senhor alto e de barba grisalha por fazer sentou-se ao seu lado e fitou a garota miúda encolhida na janela. O ônibus estava relativamente vazio, as pessoas espalhadas pela condução, cada uma perdida no próprio mundo. Os olhos astutos desceram pelo corpo da mulher, estudando-a com interesse. Nina nem ao menos percebia o que acontecia ao seu redor. O homem vistoriou o entorno e logo pensou como aquela era uma vítima fácil.

— Você é uma graça, sabia?

Nina não deduziu de imediato que era com ela que o estranho falava, mas quando finalmente se deu conta da situação, afastou-se disfarçadamente do homem, de modo que ficasse ainda mais colada à janela. A ruiva nunca sentava no canto ao sair só, sempre dera preferência aos assentos ao lado do corredor e perto das saídas do veículo, para o caso de uma fuga de emergência. Ela rezou silenciosamente para que o cara a deixasse em paz e chegasse logo no ponto dele.

— Não seja tímida — aproximou-se ainda mais e lançou em seu rosto o hálito alcoolizado, o que a fez franzir o nariz e quase colocar a cabeça para fora do ônibus. Quando a mão do estranho tocou sua perna, o coração de Nina disparou e ela deu um tapa no braço dele, enojada, o estômago dando os primeiros sinais de embrulho.

As pessoas ao invés de entrarem, saíam cada vez mais, para o desespero da ruiva. O cobrador estava ocupado com um livro, um cara um pouco à frente dormia e sua última esperança era a jovem de cabelos espessos negros e roupas justas, que fitava a janela com total descaso para o que se passava ao seu redor. Nina tinha medo de descer do ônibus e ser perseguida pelo homem ou pior, ser obrigada a ir com ele. Não era tola para não saber como esse tipo de abordagem terminava, e a possibilidade do estranho estar armado e fazer algo contra ela caso tentasse um movimento brusco era tão aterrorizante quanto o que poderia ser feito posteriormente.

♦♦♦

Helena se sentia particularmente insatisfeita com a vida naquela manhã de quarta-feira. Com uma entrevista de emprego em vista, a morena perguntava-se quando não precisaria mais passar pela humilhação de conseguir algo que pagasse metade de suas contas. Ela com certeza achava que fazia parte da parcela de brasileiros que nasceram na classe social errada, um erro do destino que estava difícil de ser consertado.

Levar o filho naquele aniversário infantil no domingo havia sido um erro. Não sabia nem porque aquela ideia patética passara por sua mente, uma vez que o moleque a odiava profundamente. Como podia uma criança compartilhar de sentimentos tão ruins no coração? Helena bufou, indignada. Talvez o garoto soubesse que, se dependesse dela, ele não estaria no mundo neste exato momento. O fato era que estava ainda mais complicado conseguir a confiança de Gregório, um ricaço que frequentava a boate que fazia bicos nos fins de semana, tudo pelas costas de Hugo, claro. Se o irmão soubesse dos trabalhos extracurriculares que ela andava fazendo, com certeza ouviria um sermão que se estenderia até o próximo século.

O que poderia fazer, afinal? Estava quase na casa dos 25, não concluiu o ensino médio e faculdade nunca fizera parte dos sonhos de sua vida. Com tal currículo extraordinário, ganhar mais que um mero salário mínimo era o máximo que poderia chegar com trabalhos "dignos" — não que dançar fosse um ultraje, mas dançar numa casa de prostituição clandestina era outros quinhentos. Entretanto, reclamava da situação que ela mesma se colocara quando tomou a decisão no passado de que festas e garotos eram mais importantes a pensar no que aconteceria alguns anos mais tarde, se é que estaria viva até lá.

Ela estava, felizmente ou não. O tal futuro chegou, cruel e impiedoso, mostrando as garras que não passavam de leves ameaças para garotas como ela não se perderem no caminho do sucesso.

O ponto que saltaria estava próximo. Dessa forma, apanhou os óculos escuros dentro da bolsa e o depositou no rosto, puxou a barra do vestido colado ao corpo para baixo e se preparou para se equilibrar no salto quinze que usava. Para as pessoas, talvez estivesse "montada" demais, mas para Helena, era sua forma de se sentir bonita e amada por si mesma. Do que adiantava ter uma vida e não poder vivê-la da forma que lhe convém? Viver em prol da opinião dos outros e só fazer o que era aceito pela sociedade? Quem era a sociedade afinal e qual era sua verdade, já que todos faziam parte dela e cada um tinha sua própria visão do mundo? Tolos eram os que seguiam ideologias que nem ao menos possuíam cartilhas de mandamentos básicos.

Helena terminou de se ajeitar e observou o ônibus quase vazio, exceto por um casal algumas cadeiras à frente, no meio do veículo. Ela franziu o cenho ao notar a garota ruiva que mais parecia uma pré-adolescente ao lado de um senhor que devia ter mais de cinquenta anos. Iria ignorar o fato achando se tratar de avô e neta, mas a forma como a moça se encolhia na janela e o homem repousava o braço na cadeira dela não parecia uma relação familiar como outra qualquer.

A morena continuou observando quando viu o rosto da ruiva em perfil e notou o desespero em sua expressão. O cobrador estava alheio ao que acontecia e o motorista tampouco poderia se dar ao luxo de olhar para trás. A pobre garota estava sendo assediada e Helena não evitou as lembranças amargas de outros casos que já presenciara na vida, alguns em seu mais novo emprego na boate. O ódio lhe subiu pela bile e ela se levantou da cadeira marchando em direção ao cafajeste que encurralava a pobre garota que mal conseguia se mexer no banco.

— Liza! Achei que não tivesse pegado esse ônibus, estava tão distraída que nem te vi. — Helena retirou os óculos e sorriu amável para a ruiva que a olhava assustada. Talvez estivesse achando que era cúmplice daquele canalha e ela não podia culpá-la por tal conclusão. A garota simplesmente estava com o alerta de perigo ligado nos 220 volts. — Nosso ponto é o próximo, acho que não estamos atrasadas para a entrevista.

O homem a olhou da cabeça aos pés e não disfarçou o interesse pela mulher encorpada em sua frente. Hoje era seu dia de sorte mesmo, pensou. Nina, por outro lado, tentou disfarçar as emoções que corriam em seu rosto e deu um sorriso tímido para a moça que mais parecia ter saído de um catálogo de moda, entrando no jogo. No fundo, sentia-se grata pela intervenção dela, mas agora sentia medo pelas duas.

Nina levantou, ainda que estivesse a alguns pontos de distância do estágio.

— Você estava lá no fundo? Dei uma olhada e não te vi — mentiu, pois a morena foi uma das primeiras pessoas que a ruiva notou assim que o asqueroso sentou-se ao lado dela. — Estou tão nervosa com a entrevista.

As duas mulheres trocaram beijos de cumprimento no rosto, como duas amigas que não se viam há algum tempo, e foram para a saída do ônibus. O estranho deixou que elas seguissem na frente, mas não tardou em descer logo atrás. Helena sabia que ele faria isso, mas o que o homem não contava era o que ela faria em seguida.

— Tem uma delegacia da mulher alguns metros à frente — falou baixo para que só Nina ouvisse. Diferente do ônibus, a rua estava movimentada e o estranho não tentaria nada contra elas no momento. — Você irá denunciá-lo e estarei ao seu lado como testemunha, não se preocupe.

— Irei denunciá-lo pelo o quê?! — Nina perguntou alarmada. — Nem tenho como provar nada!

— Assédio sexual é crime, claro que você precisa denunciar! Ainda que nada seja resolvido no momento, a polícia terá um BO¹ para consultas posteriores com outras vítimas, e o canalha será monitorado.

Nina respirou fundo e olhou sobre o ombro, percebendo que o cara havia sumido. Sentiu o corpo congelar, pois não sabia o que era pior: ter o homem na cola delas ou não saber exatamente onde ele estava, já que poderia ser em qualquer lugar, armando uma emboscada para pegá-las. Tudo que queria nesse momento era sumir e fingir que nada disso tinha acontecido com ela, era muita humilhação para uma pessoa só.

— Só quero ir para casa — murmurou apreensiva, sentia que a ansiedade queria atacar. Ela segurou o braço da morena e implorou: — Por favor!

Helena a ignorou e continuou a andar. As vítimas desse tipo de situação costumavam se retrair diante dos fatos e achar que a culpa era delas, quando na verdade o culpado era o que a tal da sociedade defendia. A morena previa o ataque de pânico que a ruiva daria a qualquer momento, mas ainda assim não desistiria do que deveria ser feito. A "Liza" não entendia agora, mas quando tudo passasse e ela pudesse respirar aliviada novamente, ia compreender a importância da denúncia. Antes de entrarem na delegacia, Helena parou na frente de Nina e olhou no fundo dos olhos verdes da ruiva.

— Se todas as mulheres pensassem como você, muitas continuariam na vida miserável que vivem sendo maltratadas pelos companheiros, violentadas nas ruas e no próprio lar, além de diminuídas pelo simples fato de terem nascido mulher e ter de viver na submissão, onde o "sexo frágil" não tem vez. Quando você se cala para um crime, você automaticamente faz parte dele como cúmplice. Foi assédio, mas poderia ter terminado em homicídio. É isso que você quer? Acobertar esses crápulas que nem mereciam ter nascido?

— Estou com medo — admitiu, seu corpo já estava trêmulo e frio. — E se ele vier atrás de mim por vingança?

— Não virá, tudo bem? A justiça falha, mas não tarda.

Nina esboçou um sorriso.

— Você é advogada?

— Não, mas o idiota do meu irmão é. A propósito, me chamo Helena — ela estendeu a mão para apertar a fria da ruiva. — E creio que você não seja Liza.

— Sou Marina, mas pode me chamar de Nina. Você tinha mesmo uma entrevista agora ou era só para despistar o... cara?

Só então Helena se lembrou do compromisso que teria nesta tarde, mas achou que era um sinal do destino de que não daria certo de qualquer forma. Ela analisou a garota à sua frente, mais pálida que o normal, e sentiu pena da moça. Parecia ser uma dessas jovens inocentes que haviam por aí, uma raridade nos dias de hoje, que tinha acabado de ser corrompida pela vida da pior maneira possível. Infelizmente, a realidade vinha para todos. Helena então sorriu e passou um braço pelo ombro da ruiva, guiando-a para a delegacia.

— É sempre bom ajudar uma irmã. Vem, vamos logo fazer essa denúncia e você poderá ligar para alguém te buscar, sei que está assustada e receosa com a situação, mas vai passar. Isso é mais comum do que gostaríamos.

♦♦♦

Hugo fumava encostado no parapeito da janela observando o trânsito intenso no largo àquela hora da noite. Tivera um dia cheio, com confusão de grupo na faculdade a casos complicados de mediação que teve de fazer esta tarde no trabalho. As pessoas estavam se tornando tão intoleráveis umas as outras que não conseguiam mais resolver simples problemas, virando um campo de guerra. Não existia mais o diálogo saudável, aliás, ninguém queria dar ouvidos ao que o próximo tinha a dizer. Ele próprio se tornara uma dessas pessoas e não se orgulhava nem um pouco disso.

Levantou o anúncio que estava na mão e releu a propaganda simplória. Uma vaga para trabalho voluntário como professor de redação no cursinho aonde dava aulas aos sábados, com endereço e dia da entrevista. A coordenadora do projeto ligara para ele desesperada à tarde dizendo que a antiga professora teve que deixar o cargo porque iria mudar de cidade. Assim, sem explicação prévia nem nada. Queria ele mesmo poder ocupar o lugar, mas os horários colidiam com suas atividades diárias e ele não tinha capacidade de manejar uma aula dessas, ainda que gostasse de escrever e achasse que o fizesse bem. Havia um abismo entre ficção e uma redação dissertativa para o ENEM. Ele até poderia ajudar a organizar bons argumentos, mas a técnica ele não dominava.

Deu mais uma tragada no cigarro que prometera parar de fumar e até agora nada, e se martirizou por ter lido outro texto de Marina Dias. Este, não mais matérias, e sim um conto escrito pela ruiva e publicado em um site de livros gratuitos. Achara por acaso enquanto vasculhava o blog dela e só então se deu conta que estava curioso para saber como era a narrativa da moça, uma vez que era professora de um workshop de escrita e devia no mínimo ter uma escrita fabulosa.

Ela não o decepcionou.

Marina Dias nunca o decepcionava na verdade. Nina, no entanto... Essa sim ele tinha problemas. Talvez as duas gostassem de surpreendê-lo, mas ainda não conseguia enxergá-las como uma só. Provavelmente não quisesse ou tinha medo do que poderia descobrir ao juntar corpo e mente.

Marina... Nina. A ruiva escrevia com o coração. Se suas opiniões lhe eram cativantes e fortes, sua escrita era poética. Marina não escrevia para qualquer pessoa, e sim aquelas que possuíam a sensibilidade de não entender, mas sentir as palavras. Era o tipo de leitura que lhe faria pensar por horas, que você refletiria antes de dormir e se recordaria quando se deparasse com tal situação que lhe devolvesse aquela memória.

Hugo tinha que admitir: nunca conhecera alguém tão profundo quanto sua vizinha, e seu verdadeiro medo era cair no abismo da alma daquela moça e se perder no meio da escuridão, quando tudo que ele precisava no momento era ligar a luz da própria alma e encontrar descanso para sua mente tão angustiada. Pessoas como Nina eram seres humanos complicados e que requeriam tempo e dedicação para traduzi-los. Você precisava se doar para desvendar quem eles realmente eram e, uma vez feito, talvez tivesse uma joia rara nas mãos... ou a chave para a insanidade.

Olhou novamente o anúncio que pegou assim que saíra do trabalho quando foi na comunidade onde morou. Aproveitou para dar uma olhada no sobrinho que parecia distante desde a última vez que se viram, e odiou sua irmã mais um pouco ao não encontrá-la cuidando do filho, mas a pobre Lúcia em seu lugar. As pessoas poderiam perguntá-lo por que ele queria ajudar os outros se mal dava conta do próprio sobrinho. Hugo diria que o pouco era muito, ou algo mais direto como deixar as barreiras sociais e de fronteiras caírem por terra e enxergar as pessoas como simples seres humanos, e não presas a nós por convenções sociais do acaso.

Ele ajudava pessoas, e somente isso lhe importava.

Hugo sabia quem seria sua indicação para aquele emprego. A resposta do candidato poderia enfim lhe sanar algumas dúvidas, uma vez que ainda não tivera coragem de descobrir perguntando diretamente a pessoa. Jogou o cigarro fora e deixou o apartamento. O corredor estava vazio e silencioso, nem a luz debaixo da porta da vizinha estava acesa. O advogado ponderou se batia ou não, mas optou pela segunda opção. Os dois não se falavam desde a discussão no domingo à noite, ele ainda não tinha cara para enfrentar o olhar censurado da ruiva bêbada.

Pensou no quão imbecil estava sendo com Marina, mas hoje não era dia de pensar nisso, as crianças precisam de sua ajuda e, talvez, se ela soubesse que ele estava por trás disso, não aceitaria a proposta. O anonimato era a melhor solução no momento. Deixou o anúncio debaixo da porta, deu uma última olhada na madeira e saiu.

Precisava beber.

Notas de rodapé:

¹ Boletim de Ocorrências.


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Notas finais do capítulo

Oi, pessoal! Desculpe por não ter postado na última sexta. Passei quatro dias seguidos em cima de um trabalho da faculdade e não tive tempo nem para respirar, não consegui escrever o capítulo. :(( Não ia escrevê-lo dessa forma, mas achei importante expor a situação que a Nina passou. Além de ter sido uma forma legal para aproximá-la da Helena (que será crucial para a trama) e ajudá-la a tomar alguns decisões na vida, queria que vocês conhecessem o projeto "Vamos Juntas?", criado pela Babi Souza e incentiva as garotas a se ajudarem em situações de risco, como aconteceu com a Nina sendo assediada pelo cara no ônibus. Há várias Ninas espalhadas pelo mundo, e tenho certeza que alguma de vocês, leitoras, já passaram por um caso parecido na rua, e talvez não tenha tido uma Helena para ajudá-las. Na página oficial do projeto (https://www.facebook.com/movimentovamosjuntas), vocês podem ler o depoimento de garotas que sofreram assédio, foram perseguidas ou até quase assaltadas, mas que por sorte tiveram um final feliz.

Vamos Juntas?

Ps.: dei uma reformada no tumblr de CdoV e criei a playlist oficial do livro no 8tracks. Acessem o site para dar uma conferida, ficar por dentro das últimas novidades do livro, conversar comigo ou simplesmente desabafar. Irei recebê-los de braços abertos. s2 http://cantigadeoutroverao.tumblr.com/