Cantiga de outro Verão escrita por DezzaRc, A Little Dreamer


Capítulo 7
Interesses


Notas iniciais do capítulo

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# Música do capítulo: A Dança - Playmobille



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— E o vizinho bonitão, já se pegaram?

Eram pouco mais das vinte horas de domingo, mas para aqueles amigos a diversão estava longe de terminar. A visão de Nina tornava-se um pouco mais turva a cada piscada dada; podia ser impressão sua ou realmente havia uma cortina branca tentando cobrir seus olhos verdes. A sala parecia afetada também, pois ora ou outra girava como se algo chacoalhasse o cômodo e o largasse de repente. De uma coisa a ruiva tinha certeza: estava na hora de dar um tempo à tequila.

Jacque estava piadista esta noite, pensou.

— Quem?

— Não seja cínica! — a amiga de cabelo afro gritou. — Aposto que ele foi lhe visitar no seu apartamento, safada.

— Você por acaso instalou uma câmera na minha casa?!

— Ah, meu Deus! Eu s-a-b-i-a!

— Por que só eu estou de fora do assunto? — Marcelo se manifestou, sentado aos pés de Julia, que estava largada em uma poltrona na sala do amigo.

— Não é o único — Julia resmungou e encheu mais uma dose de tequila, colocou sal na língua e engoliu o líquido de vez, que desceu rasgando sua garganta. Logo depois, pegou uma rodela de limão e chupou a fruta enquanto aproveitava as sensações que a bebida provocava em seu corpo já relaxado.

O apartamento dos pais de Marcelo ficava no mesmo bairro da casa de Jacque, alguns quarteirões de onde Nina morava. Julia, por sua vez, habitava em outro bairro e dividia a casa com os dois irmãos e a mãe divorciada. Os quatro resolveram aproveitar o dia de folga e a viagem dos pais de Marcelo para passarem o dia juntos, entre conversas, bebidas e gargalhadas. Nina realmente amava esses encontros, pois era quando se esquecia do mundo e dos problemas, apenas se concentrava no agora, sem sequer pensar se existiria um amanhã. Tudo o que importava era o que iriam fazer a seguir e quem arrancaria mais risadas ao longo do dia. Uma ótima válvula de escape para a ruiva, tão boa como seus amados livros, mas não tão frequente e duradoura quanto eles.

— Nina ganhou um vizinho gostosão e está trocando fluxos corporais com ele — Jacque explicou em meio a risos, o que fez Nina sorrir também e dar um empurrão de brincadeira na amiga já bêbada. As duas dividiam um sofá de três lugares, disposto em frente à TV ligada no programa de Paulo Gustavo, que servia como plano de fundo à farra dos amigos.

— Estamos discutindo para qual dos dois apartamentos vamos nos mudar, altos planos... — Nina beliscou um amendoim torrado em uma vasilha na mesa de centro. — Hugo Torres é meu mais novo vizinho e aluno na oficina de escrita.

— Como assim Hugo Torres é seu vizinho?! — Julia indagou surpresa, sua ajudante na oficina. — O engravatado que só faltou atirar a maleta na sua cara? Uau! Eu realmente sou a última a saber das coisas.

Nina observou a amiga oriental, o olhar puxado e a pele morena clara. Diferente do cabelo liso e escorrido das garotas japonesas, o dela era encorpado e possuía fios grossos, um pouco abaixo dos ombros. Talvez pelo comportamento retraído ou possivelmente seu grau de exigência alto, Julia não chamava muito a atenção dos caras, pois beleza lhe havia de sobra — o que às vezes causava uma inveja branca na ruiva.

— Também quero conhecer o deus grego polêmico, amiga! Devíamos ter marcado esse encontro na sua casa, só acho — Marcelo intrometeu-se na conversa, indignado por estar de fora do assunto. — A beleza dele valeria a pena as horas de tortura naquele sanatório que você chama de lar.

— Ei! Não fale assim da minha casinha, ela é bem aconchegante.

— Ah, Nina, vamos concordar com o Celinho! Aquela decoração de hospital tem que ir embora. Aquilo é uma afronta para sua amiga designer aqui — Jacque enfiou um amendoim na boca, o olhar na televisão. — E o filho do gostosão, já se candidatou para madrasta?

Esta realmente seria uma noite longa. Não poderia fugir do inevitável encontro dos amigos com seu vizinho, ainda mais agora que todos sabiam da existência dele. Seu aniversário estava próximo e sua mãe faria jus à promessa de reuni-los no apartamento da ruiva, ela querendo ou não. A única coisa que realmente esperava era que eles não a colocassem em uma posição constrangedora, vendo coisas onde não existiam.

Depois de mais uma rodada de perguntas inconvenientes e alusões ao seu caso com Hugo, os quatro dispersaram-se com comentários aleatórios sobre a programação da TV e relatos antigos da época que estudavam juntos no ensino médio. Por volta das vinte e três horas, Julia deu o primeiro sinal de que estava pronta para ir. Nina não queria nem imaginar a ressaca que sentiria no dia seguinte, ainda teria que aguentar algumas horas de aula e depois a tarde inteira no estágio. Estava realmente encrencada, mas valera a pena ter passado o dia com os amigos, apesar da relutância inicial em ir. Era sempre assim, Nina nunca queria ir a lugar algum, e se não se obrigasse a sair, nunca o faria. No local de fato, nem parecia a mesma pessoa rabugenta e antissocial.

Marcelo acompanhou as garotas até o ponto de ônibus. Jacque se despediu e foi caminhando até em casa, que não ficava muito longe dali. A rua ainda estava movimentada devido a grande concentração de barzinhos naquela região, não seria um problema andar àquela hora por ali. O ônibus de Julia não demorou a chegar, ela e Nina faziam letras, embora pegassem algumas matérias separadas. Marcelo aproveitou para ter um papo sério com a ruiva, ele abraçou a amiga pelo ombro e lhe deu um beijo fraternal na cabeleira alaranjada.

— Você sabe que amo essas duas loucas, mas vai com calma com esse tal de Hugo, Marina. Se lembre do que aconteceu com Yuri. Você precisa de alguém que entenda sua carga emocional e saiba lidar com isso, não apenas ignorá-la e fingir que não existe. Seria como isolar uma parte importante de você, e não faria sentido viver ao lado de uma pessoa que apenas a enxerga pela metade.

Nina se aconchegou mais ainda nos braços finos do amigo.

— Não quero me envolver com ele. Do jeito que vocês falam, parece que estou procurando desesperadamente por um namorado. Não estou. Yuri foi um erro que eu poderia ter evitado.

— Se as coisas continuarem do jeito que estão, não vejo como essa história possa terminar sem os dois envolvidos com algo. Não precisa ser necessariamente um envolvimento amoroso, ele pode ser um bom amigo.

— Nem isso, ele é um grande idiota.

— Então ele está no caminho certo, porque você só ama idiotas.

Marcelo sorriu, o sorriso branco perfeito emoldurado pelo rosto fino e de traços excêntricos que chamavam a atenção de olheiros por onde passava. Defensor fervoroso da comunidade LGBT e o melhor amigo gay que uma garota poderia ter. Nina com certeza sabia a preciosidade que tinha nas mãos, assim que bateu os olhos no garoto franzino sentado no fundo da sala no primeiro dia de aula do sétimo ano, fazia ideia do seu potencial. A amizade entre os dois foi complicada, mas quando aconteceu, ambos sabiam que seria para sempre. Marcelo tinha conhecimento de como Nina se sentia com relação aos seus problemas psicológicos, assim como Nina tinha ciência dos problemas pessoais de aceitação do amigo. Trocar experiências com ele era sempre uma poesia profunda e sentimentalista.

O ônibus de Nina chegou e então ela se foi.

O percurso de volta foi tranquilo e a ruiva aproveitou o vento fresco que entrava pelas janelas e sacudiam seu cabelo ondulado. Além dela, havia mais três pessoas espalhadas pelo ônibus. Se não fosse pela hora, talvez até encarasse a caminhada; a noite realmente pedia para ser aproveitada no sereno. Nina encostou a cabeça no vidro frio e um grande nada passava por sua mente ainda sob efeito do álcool. Esse era um dos poucos momentos que se sentia em paz consigo mesma, pois até nos sonhos seus problemas a perseguiam constantemente. Por pouco não perdeu o ponto, uma rua em frente ao prédio que morava, cujo largo separava a pista do passeio.

Havia uma placa escrito “interditado” em frente ao elevador. Nina até aceitava descer pelas escadas de emergência, mas subir era outra história, mesmo morando no terceiro andar. Isso acontecia com mais frequência que o desejado, para sua infelicidade. Nina respirou fundo e subiu carregada por uma força maior, um tanto confusa e com dificuldade para enxergar os degraus. Talvez tenha sentado duas ou três vezes para recuperar o fôlego ou simplesmente porque se cansou. Em uma delas, por pouco não cochilava na escada, e somente acordou porque Marcelo a ligou querendo saber se tinha chegado bem em casa.

Quando finalmente colocou os pés no seu andar, deu glórias aos céus, mas antes que empurrasse a porta de emergência meio aberta, escutou vozes alteradas do outro lado. Ao invés de seguir seu caminho, permaneceu em silêncio tentando ouvir o que se passava na casa do vizinho, escondida no breu graças à lâmpada queimada na escadaria do terceiro andar. Por sorte, ninguém notou sua presença.

— Eu realmente não gosto de incomodar, mas não tem nada aberto essa hora e só nos resta recorrer aos vizinhos.

Nina logo reconheceu a voz de Priscila, a atirada do décimo andar. Com a fama que carregava, não lhe impressionava nem um pouco o fato dela estar na porta de Hugo quase à meia noite, com a desculpa esfarrapada para rolar nos lençóis dele. Era difícil um homem recusá-la, a mulher era a típica brasileira: morena, cheia de curvas nos lugares certos e marquinha do bronzeado caprichado. Não valia um centavo, e Silvia, a fofoqueira do andar debaixo, comentara algo sobre Priscila ser garota de programa. Não sabia se o boato era verdadeiro, não dava para confiar em tudo que a velha espalhava por aí, mas se fosse verdade, quem era Nina para julgar a moça em pleno expediente?

— Tem um supermercado 24 horas aqui perto — Hugo respondeu irritado, pois achava que era a irmã batendo àquela hora na sua porta com mais uma de suas bombas prestes a estourar na cara dele, como sempre fazia. Helena não retornara nenhuma de suas ligações e estava preocupado com o sobrinho na tal festa de aniversário do filho do novo amante dela.

— Vai mesmo me fazer andar até lá uma hora dessas? Não seja insensível...

— A vizinha da frente deve ter — interrompeu curto e grosso, o que fez Nina dar um pulo no lugar achando que tinha sido descoberta.

— Tudo bem então — Priscila concordou a contragosto, mas não tinha se dado por vencida. Teria aquele homem em sua cama, custe o que custar. — Soube que você tem um sobrinho. Caso precise de uma babá, pode contar comigo, sou muito boa com crianças, são criaturas tão fofas!

Hugo examinou a mulher da cabeça aos pés tentando se lembrar de quando se bateu com ela pelo prédio. Até poucos segundos atrás, ele nunca a tinha visto na vida, e agora ela caíra em sua porta como um presente grego. Seria um bom presente se não estivesse tão estressado e angustiado, e caso Priscila não morasse no prédio, claro. Por experiência própria, se envolver com vizinhas ou mulheres que morassem perto demais era assinar o atestado de grude permanente. Só ele sabia o quanto ralou para se livrar da última ex.

— Obrigado, mas dou conta do meu sobrinho só. Mais alguma coisa?

Priscila bufou.

— Você não tem cara de ser puritano, então para que tanta resistência? Não sou boa o suficiente, é isso? Não faço seu tipo? Você prefere as ruivas, não é? Ouvi falar que a magrela daqui da frente estava dando em cima de você, não sabia que preferia roer osso ao invés de saborear uma carne suculenta — insinuou com a voz rouca na tentativa de soar sexy, porém, aos ouvidos de Hugo foi extremamente grosseiro. Agradeceu ao bom Pai pelo sobrinho não estar com ele para escutar tais obscenidades.

Nina gelou no lugar. Ansiou ser absorvida pela escuridão e sumir de vez para que ninguém pudesse vê-la, de não ter voltado agora e ainda estar gargalhando com os amigos, com pessoas que a amavam e a aceitavam da forma que ela era. Quis estar em casa, debaixo dos lençóis e abraçada aos travesseiros, onde ninguém poderia alcançá-la ou feri-la, e estaria segura para não ouvir coisas que a machucassem. Desejou dormir e nunca mais acordar. Sentiu a garganta bloquear por alguns segundos e segurou o choro que ameaçou escapar. As pessoas poderiam até humilhá-la, mas Nina nunca demonstraria na frente delas o quanto doía em sua alma. Queria gritar no meio das fuças daquela cachorra o quanto a opinião dela não afetava em nada na sua vida, que ela não era digna de lhe dirigir à palavra, que uma pessoa que era usada pelos homens e não se dava ao respeito não tinha moral nem para olhar em sua cara.

Mas não conseguia. Não tinha forças nem para sair do lugar. E sentiu-se pior quando se deu conta que esperava pela resposta de Hugo ansiosamente. Porém, para a surpresa das duas, ele nada disse. Deu meia volta e bateu a porta na cara de Priscila, sem se importar com a educação ou os bons modos, se é que ele realmente tinha.

Nina não sabia mais o que sentia naquele momento. Se ainda se doía pelas palavras da nojenta ou se ria da cara de palerma dela. Priscila, por outro lado, encarava a madeira incrédula se aquele imbecil tinha mesmo ousado bater a porta em sua cara. Ela engoliu o ódio e jurou de joelhos que aquele troglodita iria se arrepender de tê-la humilhado daquele jeito.

Antes de sair dali, porém, encarou a porta da frente, os olhos vermelhos com toda raiva que guardava no peito naquele momento. Não aceitaria perder para uma sem sal que não tinha atrativo algum. E se perdesse, aquele pedaço de mau caminho tinha mesmo um péssimo gosto ou um problema sério de visão.

Nina encolheu-se atrás da porta de ferro no momento que a morena passava que nem furacão para subir para o décimo andar. Permaneceu no mesmo lugar por alguns minutos tentando se recompor. Sabia que hoje não era seu dia. Na verdade, nenhum deles seria.

♦♦♦

Como se eu devesse explicação a uma vagabunda qualquer, foi à primeira coisa que Hugo pensou assim que fechou a porta. Fazer inimizades com esse tipo de mulher era tão problemático quanto ter um caso com uma. Infelizmente, não era algo que pudesse controlar. Voltou para o quarto e pegou os óculos de leitura que tinha tirado para atender a porta. O notebook estava ligado sobre a escrivaninha e ele fitou a tela, aborrecido pela interrupção. Não que estivesse sendo produtivo, longe disso. Queria mesmo era a opinião de alguém que entendesse do assunto, saber onde ele estava errando e o que precisava melhorar no texto.

Certa ruiva veio à sua mente.

Se ela fosse mesmo tudo aquilo que se provara ser na oficina e em seu currículo literário, Nina seria a pessoa certa para ajudá-lo.

Esse era provavelmente o pensamento mais egoísta que tivera nos últimos dias, se levasse em conta a forma como a tratara ao se conhecerem. Seria hipocrisia dizer que o ser humano não era movido por interesses, porque alguém sempre o tinha quando se aproximava de outrem. Nobres ou não, dependeria da pessoa. As intenções de sua vizinha de cima passavam longe de serem boas.

Precisava se redimir com a ruiva a qualquer custo. Não era fraqueza pedir ajuda, e sim insistir no erro quando este lhe era ciente. O que faria pela garota que apenas se esquivava de suas tentativas de aproximação? Teve uma ideia, mas além de egoísta, achou-se a pessoa mais baixa do universo. Não iria usar o sobrinho para o propósito, caso contrário, estaria no mesmo nível da irmã que só levara o filho ao aniversário para fazer média com o cafajeste da vez.

Pensaria em algo, mais cedo ou mais tarde.

Depois de mais uma lida frustrada no conteúdo da página do Word, Hugo deixou o óculos de lado e foi em busca do seu maço de cigarro. Vasculhou a casa inteira e não encontrou nenhum cigarro perdido pelos cantos. Seu nível de estresse aumentou consideravelmente e, sem outra forma de se acalmar, pegou a carteira, enfiou no bolso traseiro da calça e saiu do apartamento para dar uma volta e espairecer os ânimos. No último instante, lembrou-se do porteiro dizer que o elevador estaria em manutenção até à tarde seguinte e teriam que usar a escada de emergência por enquanto.

Um choro baixo vindo de lá chamou sua atenção.

Hugo aproximou-se com cautela, achando que era a louca oferecida, mas levou um susto ao ver um corpo magro encolhido na escada. Apesar de estar escuro, ele conseguiu distinguir facilmente os cabelos longos e ruivos de Nina, mas não soube o que fazer.

Esse prédio só há gente que não bate bem da cabeça.

— Marina?

Nada. Mais choro.

— O que aconteceu? — ele tocou o ombro ossudo de leve, o que a fez afastar-se bruscamente de seu toque, como um animal acuado.

Hugo suspirou, impaciente. Pela noite tenebrosa, devia mesmo ter ido dormir cedo, como pensara logo após jantar e o sono preguiçoso tentar lhe arrastar para longe. Pensou seriamente em desviar da garota e largá-la onde estava, mas algo lhe dizia que sua vizinha de porta não passava mesmo bem. Para início de conversa, estava largada na escada de incêndio do prédio, chorando como se não houvesse amanhã, achando que estava trancada no quarto colocando as mágoas para fora.

Chamou-lhe mais uma vez e então desceu um degrau e agachou-se, de modo que pudesse ver seu rosto escondido nas pernas finas. Com uma delicadeza que não sabia de onde tirara, tentou afastar o braço que cobria o rosto dela, mas Nina recuou novamente.

— Tem certeza que vai continuar aí largada que nem moribunda?

De repente, um lampejo passou por sua mente. Bêbada. A ruiva só poderia estar bêbada. Era só o que lhe faltava. Não dava para confiar nessa garota, onde estava com a cabeça quando deixou o sobrinho com essa irresponsável? Seriam constantes essas saideiras? E ainda por cima chegar num estado lastimável como esse? Cuidara da irmã bêbada várias e várias vezes, mas não pretendia repetir o feito por aqui. Se a patricinha resolveu morar só, ela que se virasse na nova fase da vida, Hugo que não faria o papel de pai protetor.

Pai.

Ela tinha perdido o dela.

Balançou a cabeça e tentou expulsar tais pensamentos. Todo dia alguém perdia um pai, uma mãe ou qualquer outra pessoa que fosse, isso não era desculpa. Definitivamente, Hugo precisava de cigarro. Não estava mais pensando coisa com coisa.

— Vamos, levanta — ele a puxou para cima, ignorando seus resmungos. Hugo segurou a bolsa presa na transversal do corpo pequeno e procurou pelas chaves do apartamento da ruiva. Encontrou um molho marcado por cor. — Se eu te soltar, você não vai se estatelar no chão, não é?

Nina levantou o rosto e ele pôde ver o estrago da bebedeira. Amanhã ela teria uma baita ressaca para lembrá-la de pegar leve da próxima vez ou arrepender-se de coisas que não deveria ter feito ou dito, como soltar o berro na escada de emergência do prédio onde morava.

— Não pedi sua ajuda. Você não precisa retribuir favor algum.

Ele parou de tentar adivinhar qual das chaves abria a porta do apartamento e observou o rosto inchado e avermelhado. Os olhos brilhavam em meio às lágrimas, e algo como remorso pintava nas íris esverdeadas. O rosto miúdo em formato de coração, o queixo pontudo e as madeixas alaranjadas lhe davam um toque de meiguice e de vulnerabilidade. Talvez fosse por causa disso que Hugo sentia uma vontade imensurável de abraçá-la neste momento.

— Não entendo a linguagem dos bêbados.

— Não estou bêbada! — cuspiu, puxando o molho de chaves da mão dele. — Olhe, Hugo. Não foi porque lhe fiz um favor que você tem que fingir toda essa animosidade para cima de mim. Tenho certeza que se não tivesse olhado seu sobrinho naquele dia, você ainda estaria me tratando mal, mesmo não tendo te feito nada para receber tal hostilidade. Educação abre portas, e a falta da sua fez fechar a minha para você.

Hugo a encarou, atônito. Não esperava receber aquele jato de palavras na cara, como um doloroso tapa a seco. Nina o empurrou para que ela mesma pudesse abrir a porta e Hugo apenas deu um passo para que ela o fizesse. No entanto, não deixou que a ruiva batesse a porta na sua cara, e pôs o pé entre a madeira e o batente.

— Não é assim que o mundo funciona? Uma grande troca de favores?

— Pois saiba que quando coloquei seu sobrinho para dentro de casa naquele dia, ignorei a forma como me tratou aqui e na oficina de escrita. Passei por cima do meu orgulho e foi minha piedade que me fez olhar aquela criança, não um pagamento. Nunca me perdoaria se deixasse uma criança desamparada, e se em algum momento você achou que devia algo a mim, considere a dívida quitada. De você, Hugo, quero apenas distância. Se me der licença, estou cansada, com sono e pretendo dormir.

De forma mecânica, Hugo retirou o pé e Nina bateu a porta assim como ele fizera com Priscila. Talvez tivesse merecido aquilo, ou talvez tivesse faltado o tal tapa para finalizar a noite. Já tinha levado muitos sermões das mulheres com quem ficava quando era sincero a respeito de seus sentimentos — ou a ausência deles. As lições de moral que recebia da mãe e de Lúcia, sua segunda mãe, também foram traiçoeiras. Mas nenhuma o fizera se sentir um grande nada como se considerava naquele exato momento.

Hugo sentiu-se envergonhado consigo mesmo como há muito não o fazia.


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Notas finais do capítulo

Quem aí detesta a vaca da Priscila e achou bem feito o corte que a Nina deu no Hugo? Para quem shippava #Nina&Hugo, agora vai ser complicado fazer esses dois se entenderem, eu acho que eles não têm jeito, viu! Hahaha. Comentem, recomendem, adicionem CdoV nos acompanhamentos e favoritos e indiquem para os amigos, porque semana que vem tem mais! õ/
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