Café com um pouco de amor, por favor. escrita por Forsaken Boy


Capítulo 4
É imprevisível. Foi inesperado


Notas iniciais do capítulo

Esse foi o capítulo mais tenso e complicado de se escrever. Espero que tenham uma boa leitura!



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Acordei cedo naquela segunda-feira. Pessoalmente gosto de segundas. Não sei porque todos a odeiam. Ela praticamente faz a sua semana ter sentido. Como poderíamos ficar felizes com a sexta sem ter passado pelo “desgosto” da segunda?

Voltei pra casa um tanto cansado após um longo dia de aula, e cara, que dia. Não me lembro da cor desse dia. Quer dizer, dessa parte do dia.

Ao entrar no meu quarto voltei a escutar as músicas que Anne havia me passado. Ouvia o tempo inteiro.

Requentei o meu almoço que estava num pote dentro do micro-ondas.

Eu gostava – gosto – dos finais de semana porque minha mãe ficava em casa, diferente dos outros dias da semana. Eu não a via durante a semana. Ela saia cedo demais e voltava tarde demais.

Almocei e saí para encontrar com Anne.

E lá estava ela, com o coque e as roupas hippie.

– Johan, tudo sussa? – Ela perguntou.

– Tudo sussa. – Eu respondi.

– Então, partiu. – Ela então começou a andar.

– Espera. – Eu falei.

Ela então parou e olhou para trás.

– Que? – Anne perguntou.

Então eu entrei no mercado-padaria e pedi 2 cafés pequeninos.

– Toma. – Eu falei, entregando o copinho para ela. O vapor subia.

O olhar curioso mais uma vez apareceu.

– Obrigada. – Ela disse.

Assim fomos juntos para a bandeira dos vaga-lumes.

Conversamos bastante. Foi nesse dia que eu descobri que a cor favorita dela é verde. Verde, assim como foi o domingo anterior.

Mesmo tendo conversado bastante com ela eu nunca soube muito sobre Anne. Só a conhecia superficialmente, e isso me irritava.

– Vamos ver se você fez a lição de casa. – Anne disse.

– Como é? – Perguntei confuso.

– Vou começar a cantar uma das músicas que você gostou, acompanhe.

E então ela começou a cantar Engenheiros do Hawaii. Eu me lembro bem. Infinita Highway.

E eu acompanhei, como se já soubesse a letra por anos. E aquele olhar curioso dela apareceu mais uma vez. Eu estava começando a gostar daquele olhar. Eu estava começando a querer ver ele mais vezes.

– Parabéns. – Ela disse, tirando o Discman da bolsa.

– Obrigado, sei que canto lindamente. – Falei.

– Tão bem quanto eu. – Ela falou. – Pena que eu canto mal pra caralho.

E essa foi a primeira vez que eu mostrei o dedo do meio pra alguém com tanta vontade.

E ela revidou, com mais 2 dedos do meio.

Rude.

Imperfeita.

Ouvimos um CD completo. Músicas diferentes dos CDs anteriores. E eu gostei de todas. Lembro muito bem que foi trabalhoso – mas muito legal – ouvir todas elas em casa.

Depois que o CD acabou ficamos em silêncio e encostados no mastro da bandeira enquanto encarávamos o céu.

O silêncio parecia não estar mais me incomodando tanto quanto antes.
Parecia que o nosso silêncio era nosso. Simples assim.

– O passado não reconhece o seu lugar: está sempre presente...

Quem recitou dessa vez fui eu.

– Mario Quintana. – Disse Anne.

– Sim. – Eu disse.

– Fez mais do que devia pra lição de casa. – Ela disse, enquanto se levantava. – Vem, vamos andar.

E eu a segui.

“Tecks”, “tucks” e muitos barulhos metálicos no centro da cidade, que era onde nós estávamos.

– Pra que vir pra cá? – Perguntei. O fluxo de gente era tão grande que era quase impossível ficar ao lado de Anne.

E então ela fechou os olhos no meio daquela multidão. Simples assim. Ficou parada.

– Faz isso também. – Ela disse.

E eu não fiz. Anne abriu os olhos.

– Tsc... Você não fez. – Ela disse.

– Como pode saber? Você tava de olhos fechados. – Respondi.

– Eu sei que não. – Ela falou.

Continuamos andando. Passamos por um parquinho. Uma garotinha segurava alguma arma imaginária.

– Pow pow! – A garotinha disse enquanto apontava para mim.

Foi então que uma das coisas mais divertidas – sim, foi divertido – aconteceu.

Anne se ajoelhou e começou a trocar tiros com a garotinha.

– PEW PEW PEW! – Anne segurava sua arma imaginária como se realmente existisse.

A garotinha sorriu e saiu correndo enquanto atirava para trás.

– Pow pow! – Fez a pequenina, enquanto se escondia atrás do escorregador do parque. As outras crianças observavam.

– Vem seu besta! A gente tá em maior número! – Anne disse enquanto rolava na areia do parque. – POW POW!

Foi ai que eu entrei na brincadeira. Eu, Anne e a garotinha fazendo um bang-bang imaginário no parquinho. Algumas outras crianças participaram. Ficamos algum tempo lá, brincando com elas, até que alguns pais resolveram acabar com a graça.

– Tchau tios! Foi legal. – Disse a garotinha enquanto era levada para longe pela sua mãe.

– Você é uma ótima atiradora! Tchau! – Gritou Anne para a pequenina.

O fim da tarde chegou logo. Nós sentamos no pequeno castelo que havia no parque.

– Aquela menina tinha uma mira incrível! – Disse Anne rindo.

Eu não falei nada, mas sorri como um idiota. Ah, esqueci, eu sou um idiota. Me lembro muito bem do olhar curioso que Anne fez ao me ver sorrindo.

– Você vem muito pro parquinho brincar com as crianças? – Perguntei.

– Não, hoje foi a minha primeira vez fazendo isso. – Ela respondeu. - Hoje eu acordei com sono. E sem vontade de acordar. O meu amor foi embora e só deixou pra mim um bilhetinho todo azul com seus garranchos! – Anne começou a cantar.

– Você gosta músicas. – Me lembro disso. Eu afirmei.

– Eu gosto músicas. – Ela afirmou também. – E gosto desenhos também.

– Que tipo de desenhos? – Eu perguntei.

– Do tipo que usam óculos de um jeito engraçado. – Ela respondeu.

Eu ia falar alguma coisa naquela hora. Só... Não consegui. Não sabia o que dizer.

Anne então olhou pra mim com aqueles olhos de um preto penetrante. E eu gostei daquele olhar. Ela uma fusão do olhar curioso dela e do olhar que ela fazia quando sorria. Era um olhar único. E foi um olhar unicamente pra mim.

Ela se levantou.

– Tchau Johan, a gente se vê amanhã de tarde. – Ela disse, enquanto caminhava.

Me lembro muito bem disso. Ela se despediu.

Voltei pra casa cedo. Silêncio. Esse silêncio era perturbador. Fui direto para o meu quarto e me joguei na minha cama.

As únicas coisas que me vinham à mente era Anne se despedindo de mim e aquele olhar único. Coloquei mais músicas. E foi ai que eu descobri uma música excelente.

“Essa música, preciso apresentar pra Anne.” Pensei comigo mesmo.

Deixei aquela música repetindo o resto do dia. Sabe, agora mesmo eu estou ouvindo ela. Essa música é... Importante pra mim.

Fechar os olhos.

Leve.

Sonhos.

Leve-me.

“Hey. Hey!” – Algo sussurrava ao meu ouvido.

Acordar.

– Mãe? – Eu perguntei, ainda sonolento.

– E ai, bela adormecida. Eu não queria te acordar, mas é que essa música já encheu. – Uma cabeleira ruiva ajeitadinha falou numa voz doce e calma.

– Ah... Desculpa, eu vou tirar já. – Eu disse, levantando, ainda sonolento.

– Obrigada Johan. – Minha mãe disse, saindo do quarto.

Desliguei o computador. Voltei a dormir.

Terça-feira. Mais um dia cansativo na escola.

Ao chegar em casa, a mesma solidão, o mesmo cinza.

Sai. Encontrei com Anne.

– Tudo sussa? – Ela me perguntou sorrindo.

– Mais do que sussa. – Eu respondi, entrando no mercado-padaria para comprar dois copinhos de café.

Fomos para a bandeira dos vaga-lumes.

– Tenho que te mostrar uma música. – Eu disse sorrindo.

E mais uma vez aquele olhar curioso. Ah, eu adorava – adoro – esse olhar.

Tirei o celular. Anne fez uma careta.

– Qual é? Eu não tenho Discman nem MP3.

– Tá bom, tá bom. – Ela resmungou.

E então começou. A música quebrou o silêncio.

– Crosses. José González. –Eu disse. Mas pareceu que Anne não escutou. Ela estava imersa. Puxada cada vez mais para perto do celular, prestando atenção em cada nota, cada palavra que era dita na música.

Quando a música terminou Anne me encarou.

– Deixa no repeat. – Ela disse.

E foi o que eu fiz. Ficamos lado a lado, quietos, ouvindo a música. Eu não me cansava da música e parecia que ela também não.

Esse talvez tenha sido o dia mais parado, quieto, entre a gente. Não estou reclamando, não mesmo. Eu adorei.

Talvez já fosse a sexta vez que a música estava tocando quando Anne colocou sua mão sobre a minha. Ela encarava a bandeira. Eu a encarei, mas parecia que ela não estava lá. Parecia que ela havia voltado no tempo, voltado em algum momento especial. E eu não liguei pra mais nada. Fechei meus olhos.

– Agora sim, acho que vai dar certo. – Ela disse. Abri meus olhos e ela estava me encarando com aquele olhar curioso.

– O que? – Perguntei.

– Vamos. – E então ela começou a me puxar. Estávamos de mãos dadas.

Voltamos para o centro da cidade. Muitos “tucks”, e, mais uma vez, Anne fechou os olhos em meio à multidão.

– Faz isso também. – Ela disse.

Dessa vez eu fiz. Talvez quem estivesse passando achava que nós éramos loucos – não que não fossemos – ou algo do tipo. Foi a sensação mais estranha da minha vida, mas ao mesmo tempo uma das mais interessantes.

Parecia que eu era invisível. Era como se eu não existisse. Era como se todos ao redor não pudessem me ver. Foi então que Anne sussurrou pra mim

“- Coloca o fone e põe aquela música.” Ela disse.

Eu poderia ficar o resto da minha vida ali. Não tenho como explicar, mas tudo simplesmente era.

Anne me pediu o celular depois disso. Ela também fez. Depois ambos fomos para o parquinho. Nenhuma criança. Sentamos e ficamos nos encarando.

E mais uma vez aquele olhar único. Foi então que ela tirou os meus óculos.

Borrões.

Borrões.

– Você fica engraçado sem óculos. – Ela disse. Continuei encarando aquele borrão na minha frente.

– Você com certeza é o borrão mais bonito que eu já vi. – Eu disse pegando os meus óculos de volta. Não pude ver na hora, mas tenho certeza que ela tinha me olhado daquele jeito curioso mais uma vez.

– Johan. – Ela disse.

– Eu. – Respondi.

– Tchau. – Ela disse.

Frustrante. Eu me lembro. Não consegui não demonstrar a frustração.

– Até logo. – Eu falei.

– Errado. Até amanhã. – Ela me disse.

Mesmo ela indo embora eu continuei lá no parquinho, olhando pro céu alaranjado. Ouvindo Crosses, lembrando de Anne e do olhar único dela.

– Você está com problemas, amigão. – Eu resmunguei pra mim mesmo.

Nunca fui do tipo falante. Por isso passei 16 anos da minha vida estudando. Nunca liguei para garotas ou relacionamento. Nunca me interessei em viver. Mas naquela hora eu sabia que algo tinha mudado em mim, que algo tinha mudado na minha vida.

Voltei pra casa quando o Sol já não estava mais no céu. Sentei em minha cama e fiquei quieto. Dessa vez eu não queria ouvir música nenhuma. Só queria... Só queria estar ali.

Olhos pesados.

“Johan. Tchau.”

Leve.

Sonhos.

Leve-me.

Acordar.

Meus encontros com Anne continuaram acontecendo. Sempre que nos víamos trocávamos músicas e poesias. E isso continuou por mais algumas semanas. E mesmo nos vendo todos os dias eu não sabia nada sobre Anne, já ela sabia muito sobre mim. Naquele momento eu não me importava com isso. Mas devia ter me importado.

Foi num sábado vermelho. Sim, vermelho. Estávamos na bandeira dos vaga-lumes. Já era tarde. Não havia mais Sol, só o brilho das estrelas no céu e o brilho dos vaga-lumes com a gente.

– Atitude é uma pequena coisa que faz uma grande diferença.

Anne recitou aquilo para mim.

– Clarice Lispector. – Eu disse.

– Muito bom. Lê bastante Clarice? – Ela me perguntou.

– É, mas prefiro Martha Medeiros. –Respondi.

– Coloca a nossa música. – Anne disse.

As coisas estavam assim. Não tinha um único dia que não ouvíamos Crosses. Nem que fosse só uma vez, nós tínhamos que ouvir.

Aquela hype era magnífica. Não tem como descrever aquele momento. Deve ser porque era um momento nosso.

Foi então que ela colocou a mão dela mais uma vez por cima da minha. Porém, dessa vez, ela não estava encarando a bandeira nem estava perdida no passado. Anne estava me olhando com aquele olhar único.

Foi então que eu entrelacei meus dedos nos dela. Minha outra mão foi automaticamente para o rosto dela. Acariciei a maçã do rosto dela.

“Tum-Tum!” meu coração gritou para todo meu corpo.

Nossos rostos se aproximaram.

“Tum-Tum!” meu coração continuava a gritar.

Meus olhos fecharam.

“Tum-Tum!” meu coração persistente ainda gritava.

Nos beijamos.

“Tum-Tum! Tum-Tum! Tum-Tum! Tum-Tum!” Meu coração comemorava.

Aquele foi o meu primeiro beijo. Foi terrivelmente bom.

Nossos lábios se separam. Anne sorria. Eu sorri.

– Primeiro beijo? – Ela perguntou.

Eu devia estar vermelho. Lembro muito bem porque minhas orelhas estavam quentes.

Eu assenti com a cabeça.

A música acabou.

– Isso é meio... fofo. – Anne disse. – Só um pouco.

A noite continuou. Eu não queria voltar pra casa. Ela também não. Ambos só queríamos continuar ali, de mãos dadas observando os vaga-lumes.

– “E um vaga-lume
lanterneiro que piscou
um psiu de luz”

Nós recitamos juntos.

Andamos lado a lado em silêncio até a escada do mercado-padaria.

– Johan. –Anne me chamou.

– Diga. – Eu respondi.

– Tchau. – Ela disse.

– Até amanhã? – Perguntei.

– Até amanhã. – Ela respondeu.

Ao invés de caminhar como sempre, Anne se aproximou de mim – me lembro muito bem – e me beijou mais uma vez.

– Segundo beijo. – Ela disse sorrindo. – Como eu sou má.

E então ela seguiu seu caminho.

Voltei pra casa. Não jantei. Achei que não precisava de mais nada naquele dia. Eu me lembro bem.

“Segundo beijo. Como sou má.”

A voz dela estava no repeat da minha memória.

Fechar os olhos.

Leve.

Sonhos.

Leve-me.

Mais semanas se passaram. Dois meses, pra ser mais exato. Coisas engraçadas aconteceram. Como por exemplo, dança “sexy” no meio da multidão; Piadas sem graça alguma, mas que, de alguma maneira, nós ríamos; Uma pequena sessão de pega-pega com as crianças dos parquinho e por ai vai.

Beijos, beijos, beijos, beijos.

Ela apertou minha bunda enquanto nos beijávamos. Me lembro muito bem.

“- Mas oi? – Eu falei naquele momento.

– Que foi? – Ela perguntou com um sorriso de deboche.

– Você... – Eu ia falar algo, porém ela me cortou.

– Eu. – Ela disse sorrindo.

– Bem, se é assim... – Eu comecei.

– Se é assim... ? – Ela perguntou.

Nos beijamos novamente, e foi aí que eu apertei a bunda dela.”

É, eu me lembro muito bem.

Era um domingo. Acordei excessivamente cedo. Resolvi fazer um café surpresa pra minha mãe naquele dia.

– Bolo. Com certeza tem que ter bolo. – Resmunguei comigo mesmo. – E café com leite. Ou deveria ser leite com café?

Terminei de arrumar as coisas. Passei pela sala carregando tudo numa bandeja. Admito que foi trabalhoso, mas foi legal.

– Hey hey hey, cabeça em chamas. Hora de acordar! – Eu disse para minha mãe que estava dormindo de bruços.

– Me deixa quieeetaaaa. – Ela resmungou com a cabeça no travesseiro.

– Trouxe bolo. – Eu falei.

Foi então que aquele emaranhado de cabelos resolveu olhar pra mim.

– Hey hey hey, olha só. Se quer dinheiro pode esquecer, não vou te dar nada. – Ela disse numa voz sonolenta.

– Não, valeu. Não to afim de mangos não. –Eu disse colocando a bandeja no colo dela.

– Uhn, se é assim muito agradecida. – Ela disse enquanto começava a comer.

Abri as cortinas do quarto dela. O dia estava azul. Era o primeiro dia azul em muito tempo.

– Cara, mas que dia foda! – Minha mãe disse com a boca cheia de pão.

– Olha só, que mau exemplo pro seu filhinho aqui. – Eu falei brincando.

– Mimimi, mau exemplo ele disse. – A cabeleira ruiva debochou. – Sei que quando você tá por ai diz coisas bem piores.

Me lembro muito bem disso porque, porra, ela tava certa pra caralho.

Fui para a cozinha fazer o meu café. Comi pouco, não estava com fome.

– Hey hey hey! Fui! – Falei enquanto colocava os tênis. Minha mãe passava pela sala.

– Vê se volta cedo hoje. A gente vai jogar “Eu sou?”. – Ela disse.

“Eu sou?”. Era o nosso jogo favorito. Claro, de tanto jogarmos já não tinha tanta graça, por isso fazemos juntos nossas próprias cartas. Me lembro de uma vez que eu era um ornitorrinco manco. Eu precisava acertar, mesmo. Por que diabos ela tinha que fazer um ornitorrinco manco? Bem, de qualquer jeito foi divertido.

– Uh! Pode deixar. – Eu falei enquanto fechava a porta.

Encontrei com Anne na escada do mercado-padaria.

Selinho. Estávamos nos cumprimentando assim agora. E eu gostava.

Estávamos na bandeira dos vaga-lumes. Anne estava deitada no meu colo.

– Tá, sua poesia favorita do Guimarães. – Ela perguntou.

– Fácil. A do vaga-lume. E a sua? – Perguntei.

­– Difícil pra mim. – Ela disse. – Fico em dúvida entre essas duas:
“Viver é etc.” e
“sussurro sem som
onde a gente se lembra
do que nunca soube”

– Uhn, fico com a primeira. – Disse.

Crosses começou a tocar.

– Johan. – Anne me chamou.

– Ai não... Vai embora já? – Perguntei.

Ela deu uma risada.

– Não, babaca, só queria te dizer que essa semana a gente não vai poder se ver. Só no domingo mesmo. – Anne disse.

Naquele momento eu não liguei tanto. Me lembro muito bem do que aconteceu essa semana.

– Okay... Mas porquê? – Perguntei.

– Bem. Problemas pessoais. – Ela disse.

Nunca tive muita coragem de perguntar sobre a vida pessoal da Anne. Já disse, eu não sabia nada real sobre ela, mas ela sabia tudo sobre mim. Sabia que eu morava com minha mãe. Sabia que vivia a semana toda sozinho em casa. Sabia que eu odiava patos, que eu tinha alergia a gatos e que gostava muito de chocolate. Ela sabia tudo.

– Uhn. – Resmunguei.

Passamos o resto do dia juntos.

Cheguei em casa, não era tarde, talvez fossem umas cinco da tarde.

– Hey hey hey! Cheguei! – Falei assim que entrei em casa.

– Hey hey hey! Okay! – Minha mãe disse.

O jogo “Eu sou?” estava em cima da mesa de centro.

– Vamos começar isso ou não? – A ruiva me perguntou.

– Partiu. – Eu falei.

Pegamos algumas folhas de sulfite e começamos a fazer nossas criações malucas.

Colamos as cartas na cabeça e começamos.

– Okay, primeiro as damas, não é rapazinho? – Minha mãe disse.

– Ok ok. – Eu respondi.

– Eu sou humano? – Ela perguntou.

– Tecnicamente. – Eu respondi tentando não rir.

– Tecnicamente? Como assim? Argh, ok. Eu sou... Meio humano? – Perguntou.

– Sim. – Respondi.

– Meio humano e meio animal? – A ruiva perguntou enquanto fazia uma careta pra pensar.

– Exato.

– Eu sou um humano pássaro? – Ela perguntou.

– Tecnicamente. – Eu respondi.

– Porra, como assim? – Ela perguntou. Caímos na risada juntos.

– Continua vai! Você tá quase.

– Tá. Eu sou um humano pássaro... O outro animal é carnívoro? – Ela perguntou.

– Sim. – Respondi.

– Então eu sou um humano crocodilo pássaro. – Ela disse.

– Na mosca! – Eu disse rindo.

Crocodilo é o animal favorito da minha mãe. Ela tem um crocodilo que balança a cabeça. O quarto dela tem pelúcias de crocodilo. Bem, já deu pra entender não é?

Rimos um pouco, porém minha mãe ficou séria. Foi nesse momento que o dia ficou cinza.

– Johan... A gente tem que conversar. – Ela disse.

Tiramos o “Eu sou?” e começamos a conversa.

– Johan, a gente vai mudar. – Minha mãe nunca foi de fazer muita hora. Direta, assim como eu de vez em quando.

Eu gelei um pouco.

– Pra onde? – Perguntei.

– Outra cidade. – Ela respondeu.

“Outra cidade?!”

– Eu conversei com uma colega minha que mora praqueles cantos e a gente vai ficar um tempo na casa dela. Lá eu vou ter um emprego melhor e... E a gente vai arranjar uma casa pequena. A gente tá numa crise Johan. Você entende não é? – A ruiva perguntou.

“Tum-Tum.” O coração gritou.

Eu assenti.

– Eu... Eu posso ajudar aqui. A gente não precisa mudar. Eu arranjo um emprego de meio período. Quem sabe a gente não aguenta isso junto? –Eu falei.

– Johan, eu até poderia tentar, mas é arriscado. Além disso, eu quero que você se concentre nos estudos agora. – A ruiva encosta-se no sofá e cruza as pernas.

Normalmente nós seríamos flexíveis aqui. Conversaríamos um pouco mais e tentaríamos ver no que dava. Mas parece que a situação era realmente ruim.

– Mãe... Eu realmente gosto daqui. Meus amigos, a maioria do pessoal que eu conheço – e a Anne – está aqui. – Eu falei.

– Johan... – Minha mãe começou.

– Me dá uma... Não, duas semanas. Eu vou tentar arranjar um emprego e juro que isso não vai afetar na escola. Por favor. – Eu supliquei.

O olhar que a ruiva, minha mãe, me deu era um olhar único. Um olhar que queria ter esperanças, mas não via mais saída em canto nenhum.

Ela suspira. Coloca a mão na testa.

– Duas semanas Johan. Mas se antes disso eu ver que nada deu certo a gente vai. Okay? – Disse a ruiva.

– Okay...

Aquele talvez fora o okay mais difícil de dizer.

Essa semana. Essa semana foi a semana que eu fiz de tudo pra conseguir emprego – qualquer emprego – e continuar na mesma cidade que Anne.

Cheguei da escola na segunda, não almocei, imprimi vários currículos e saí pra entregar.

Incrível, o mundo é tão imprevisível.

“Não estamos contratando... Mas você pode deixar seu currículo.
Desculpe, não tem vagas.
Não estamos contratando.
Pode deixar o currículo.”

Essa foi a primeira vez que eu odiei tanto a segunda-feira. Fiquei até o fim de expediente deixando currículos em todos os lugares possíveis.

Cheguei em casa e fui dormir. Eu precisava da maior parte do meu tempo. Eu precisava conseguir um emprego. Eu precisava...

Leve.

Sonhos.

Pesado.

Pesadelos.

Eu acordei de manhã, chorando.

Terça-feira. 13 dias pro fim do prazo.

“Não estamos contratando.”

Isso se repetia tanto, tanto. Tanto, tanto. Parecia um Déjà-vu eterno.

Era como se eu estivesse lendo um livro sem prestar a atenção e relia a mesma linha mais de uma vez.
Era como se eu estivesse lendo um livro sem prestar a atenção e relia a mesma linha mais de uma vez. Mais de uma vez.

12 dias pro fim do prazo.

Cheguei da escola.

Repeti o processo.

11 dias pro fim do prazo.

Déjà-vu.

10 dias pro fim do prazo.

Chego da escola. O telefone toca.

– Johan falando. – Eu atendi. – Sim. Isso. Claro! Tudo bem! Amanhã então, obrigado!

Nunca tinha dançado em toda a minha vida. Não até aquele momento.

9 dias para o fim do prazo.

Fui pra um tipo de entrevista. Era uma padaria do outro lado da cidade. Demorava um pouco pra chegar lá se eu saísse de casa, porém da escola era uns cinco minutos indo a pé.

“Muito obrigado Johan. A gente te liga.”

Foi o que eles disseram.

Sono.

Leve.

Sonhos.

Pesado.

Pesadelos.

8 dias pro fim do prazo.

Cheguei da escola. Nada. O tempo não passava. Eu estava com saudade da Anne. Eu estava com medo de não poder ver ela se por algum acaso tudo desse errado. O mundo – a vida – é imprevisível.

Quatro da tarde. Nada.

Frustração.

Telefone.

Alegria.

Naquela sexta eu não dormi. Esperei a ruiva, minha mãe, voltar do trabalho.

Eu estava sentado no sofá quando aquela cabeleira entrou.

– Consegui.
“... um psiu de luz”


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Notas finais do capítulo

Teoricamente a história já esta tendo o rumo que havia de ter. Espero que tenham gostado! Comentem.



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