Café com um pouco de amor, por favor. escrita por Forsaken Boy


Capítulo 5
Café com um pouco de amor, por favor.


Notas iniciais do capítulo

Tudo o que eu digo: Boa leitura.



Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/629675/chapter/5

Cabelos vermelhos ajeitados.

Abraço.

Óculos remendado e torto.

Sorriso.

Sono.

Leve.

Sonho.

Leve-me

Ia para a padaria assim que eu saia da escola. Comia rápido o meu almoço.

Eu era um faz-tudo. Balconista, faxineiro, lavador de pratos e enfim.

De segunda a sexta e pagavam razoavelmente. Perfeito. Era perfeito.

No sábado eu já não tinha mais o que fazer. Só encontraria com Anne domingo. Eu estava com saudade. Tinha tanto pra contar, tanto pra falar. E ela deveria ter muitas coisas pra me passar.

“Risca. Risca. Risca” – Gritavam os riscos na minha janela.

– Saudade da chuva. – Eu resmunguei comigo mesmo enquanto escutava Crosses no meu quarto. Observava o tom esbranquiçado que entrava pela minha cortina azul.

Aquele sábado foi estranho. Era pra ter sido cinza, mas foi tão, tão vermelho.

– Hey hey hey! – Uma cabeleira vermelha disse enquanto entrava no meu quarto com um prato.

– Hey hey hey. – Resmunguei.

– Nossa, que clima tenso aqui. – Minha mãe fez uma careta pra mim. – Outra vez essa música? Você não cansa? – Ela perguntou, colocando um prato em cima da minha escrivaninha.

– Tem bolo ai no meio? – Eu perguntei.

– Tem bolo ali no meio. – Ela respondeu.

E a vermelhidão saiu do quarto.

Crosses repetiu.

Levantei da minha cama com quase nenhuma vontade. Peguei um pedaço de bolo e voltei pro meu pequeno mundo de pensamentos. Pensamentos todos voltados para Anne.

A vermelhidão voltou.

Silêncio. A música parou.

– Isso. Ainda é um pouco depressivo, mas é melhor do que ouvir a mesma música trocentas vezes. – Disse a ruiva colocando um CD no meu computador.

Otherside.

– Bem, ainda sim é legal. – Falei enquanto olhava para o teto.

Uma coisa que eu nunca iria esperar da minha mãe. Às vezes acho que ela sabe de tudo o que eu gostaria de fazer.

A ruiva foi até a minha escrivaninha e pegou uma caneta azul minha.

Subiu na minha cama e começou a escrever na minha parede.

– Mas o que você tá fazendo? – Eu perguntei enquanto me levantava da cama.

– Te ajudando a sair dessa depressão toda. – Ela respondeu.

“Escreva coisas legais aqui.” Era o que estava escrito com uma letra grande e redondinha na parede na qual minha cama estava encostada.

– Pode começar, a parede é sua. – Cabelos vermelhos flutuavam enquanto pulavam de volta para o chão.

Dani California.

– Vou assistir TV, aparece lá depois se quiser brincar de “Eu sou?”.

A vermelhidão saiu mais uma vez.

Eu encarei a letra redonda e perfeita na minha parede.

“Escreva coisas legais aqui.”

Eu lia e relia a frase. Bem, acho que minha mãe deu o primeiro passo para o meu atual mural de frases escritas na parede.

“Depois de tudo o que eu havia passado, pensei em te sugerir um bom futuro, mas você me surpreendeu com um presente.” – Fala Marinheiro.

“Joguei meu mapa fora. Não preciso mais ir a lugar algum, já cheguei em você.” – Fala Marinheiro.

“Dizem por ai que os meios nunca justificam os fins.” – Vespas Mandarinas.

“Às vezes as coisas são apenas o que parecem ser, sem nada demais.” – Charles Bukowski.

Essas foram as 4 primeiras frases que eu escrevi, com minha caneta azul, em minha parede. Depois disso, com uma canetinha verde, eu escrevi o poema que eu mais gostava.

“e um vaga-lume
lanterneiro que piscou
um psiu de luz”

Voltei a colocar Crosses. Tirei o CD que minha mãe havia colocado no leitor de DVD do meu computador. Guardei para outro momento.

O resto do dia foi assim, meio cinza-avermelhado ou vermelho-acizentado. Não me lembro muito bem.

Acordei. Domingo. Eu estava esperando domingo só para ver Anne outra vez. Foi um domingo amarelo. Os riscos – pingos de chuva – de sábado não apareceram pra riscar o céu novamente.

– Hey hey hey, RAPEI! – Gritei assim que saí de casa.

Meus “tum-tum” eram acelerados. Eu queria vê-la logo. O quanto antes.

Engraçado. A saudade em pouca quantidade é prazerosa. Mas se dosarmos demais pode ser torturante.

Cheguei à escada do mercado-padaria.

Onde estava o coque? Onde estavam as roupas hippie? Onde estava a imperfeição? Onde estava Anne?

Eu me lembro muito bem. Eu gelei. Ela sempre estava lá quando eu chegava. Sempre.

Me sentei na escada, um pouco apreensivo. O céu brilhou num azul-acinzentado.

– Ela tá atrasada. Bem simples. – Eu resmunguei pra mim mesmo. – Eu preciso aprender a varrer melhor. Sim, e preciso arranjar mais frases pra colocar na minha parede. Ah, claro, preciso contar isso pra Anne porque com certeza ela vai adorar.

Eu me lembro bem dessa conversa que eu tive comigo mesmo. Me lembro porque ela durou algumas longas horas.

Eu não ouvia o tic-tac do relógio, mas de toda forma o tempo estava passando.

Onde estava a minha perfeita imperfeição?

Eu já estava encostado na parede e em silêncio.

Encarava o azul do céu como se ele pudesse engolir a minha alma. Engolir a minha mente. Algumas pequenas nuvens davam sardas para o céu.

– “Para onde
nos atrai
o azul?”

Recitei Guimarães Rosa enquanto observava as nuvens sendo sopradas para longe pelo vento.

Nenhum barulho metálico passeando pelas estradas ou “tucks” andando pelas calçadas.

Me levantei. Comecei a andar. E não importava o quanto eu queria que os meus passos voltassem a fazer “tum-tum”, eles só faziam “tuck”.

Cheguei à bandeira dos vaga-lumes.

Ela também não estava lá. Se eu não a visse no Domingo teria que esperar mais uma semana toda para poder vê-la, já que agora eu trabalhava.

Encostei-me ao mastro da bandeira. Tirei o celular do bolso.

– Hehe, ela não tem celular. – Eu resmunguei.

Coloquei Crosses.

Estar ali naquele lugar sem a Anne era – é – completamente diferente. Parecia que sem ela lá os vaga-lumes não apareceriam, os domingos não poderiam mais ser verdes e que o melhor salgadinho do mundo não seria o melhor salgadinho do mundo.
Parecia que sem ela lá nada faria sentido.

Eu me lembro bem. Fiquei um pouco desesperado com o fato de não poder vê-la novamente. Mais desesperado do que eu fiquei quando pensei nessa hipótese enquanto procurava um emprego.

O tempo voou. Voou pra longe, carregando com ele a minha esperança.

As roupas hippie não apareceram lá na bandeira. Anne não apareceu.

O céu azul arranjou.

Voltei pra casa. No caminho passei mais uma vez pelas escadas, só pra ter certeza de que Anne não estava lá.

E, enfim.

Tive certeza de que ela.

Não estava lá.

– Cheguei. – Eu falei enquanto entrava em casa.

A ruiva não estava na sala. As luzes da cozinha estavam apagadas. Não liguei, apenas fui para o meu quarto.

Deitei em minha cama e encarei o teto outra vez.

Dormi.

A semana fora a pior semana da minha vida – até lá – já que não fazia ideia se veria ou não Anne no sábado.

Sábado de manhã. Fui para a cozinha.

Coador.

Bule.

Meio caneco de água fervente.

Três colheres de pó de café.

Esse foi o resumo do meu dia: Muito café, algumas frases e muitos, muitos, pensamentos.

E tudo por causa dela – Anne.

Eu simplesmente não queria sair. Nem ir pra bandeira dos vaga-lumes.

Não quis sair da cama na maior parte do dia. Lembro bem que eu desejava nem ter acordado. Ter ficado lá dormindo o resto do dia inteiro, dentro do meu mundo dos sonhos.

Tentei dormir, tentei ouvir música, tentei tentar. Mas não consegui.

Só bem mais tarde, talvez quase perto do horário da ruiva chegar, eu adormeci.

Pesado.

Pesadelos.

No domingo eu dormi até de tarde – afinal, eu não sabia se iria ver Anne ou não.

Sai em silêncio.

Meus passos ainda me incomodavam, incomodavam pelo fato de que sem Anne eles nunca fariam “tum-tum” outra vez.

Lembro muito bem que minhas esperanças de vê-la eram quase nulas. Por quê? Nem mesmo eu sabia.

Andei até a escada do mercado-padaria.

Coque.
Cores.
Hippie.

– Ei. – Disse uma voz que eu não consigo esquecer.

Ela sorria. Com a boca e com o olhar.

– Ei. – Eu respondi.

Eu sorri. Sorri como se eu não a visse há milênios.

– Essa semana inteira você não apareceu. Isso foi tipo uma punição por eu não ter aparecido no domingo? – Ela perguntou.

– Não! É que... Bem. Eu te explico lá na bandeira. – Eu disse enquanto começava a andar.

Dessa vez era eu quem ia à frente. Senti falta do selinho. Senti – sinto – muita falta do selinho.

Chegamos à bandeira. Estava suja como sempre. Estava perfeita como sempre.

Anne se sentou.

– Então, pode começar a contar. – Ela disse enquanto tirava o Discman da mochila.

E então eu comecei. Expliquei do trabalho, expliquei que sem ele eu teria que mudar de cidade. Expliquei como foi difícil ficar sem vê-la.

– Wow. – Ela disse. – Só... Wow.

– Pois é. – Respondi, sentando de frente para ela.

Ela olhou para o alto.

Depois pegou novamente a mochila e tirou de lá um pequeno pacotinho.

– Pra você. – Ela disse.

Eu olhei confuso.

– Um presente? – Perguntei.

– Não chamaria de presente. – Ela respondeu.

Comecei a desembalar.

– Nah! Pode parar. Você só vai abrir quando... – Anne começou, porém hesitou.

– Quando... ? – Eu perguntei, colocando a pequena embalagem achatada dentro do meu bolso.

– Bem, quando você tiver que abrir vai saber. Só não abre enquanto não for a hora. – Ela disse, enquanto tirava o salgadinho mais delicioso do mundo pra fora da bolsa.

– Não faz sentido. Quando eu vou saber qual é a hora? – Eu ternei a perguntar.

– Cara! Você é muito prematuro. Já falei: Você vai saber quando for a hora de abrir. – Ela disse.

– Ok ok. – Eu falei enquanto abria o salgadinho. – Antes d’eu sujar as mãos deixa eu te mostrar uma música. – Eu falei enquanto pegava o celular.

The Girl With The Red Balloon.

Ficamos escutando a música até o fim.

– Por Danú, essa música é ótima. Põe no repeat e no fim do dia a gente ouve Crosses. – Anne respondeu enfiando a mão dentro do salgadinho.

Eu senti – sinto – falta daquilo tudo. Senti falta dos olhos sorridentes, do sorriso, do jeito estranho, da maneira de falar, da maneira de se vestir... Senti falta de Anne.

Eu me lembro que levantei. Foi um momento de descontrole.

Beijei-a. Eu senti – sinto – tanta falta dela.

Anne ficou em silêncio. Me encarando. Ela não olhava com espanto. Já havíamos nos beijado outras vezes, então não havia razão para espanto. Era mais... Surpresa. Era como se ela não esperasse aquilo de mim. E aquele olhar – aquele olhar! – não sei se eu o odeio ou amo. Até hoje não me decidi.

– Oi. – Eu falei.

– Olá. – Ela respondeu.

E ficamos daquele jeito por um tempinho, ao som de The Girl With The Red Balloon.

Adorava – adoro – essa pequena competição. Não é como se fosse um “quem piscar perde” ou algo assim. Era como se estivéssemos simplesmente nos olhando. Nos entendendo.

– Os olhos são a porta da alma. – Ela disse, enquanto olhava fundo nos meu olhos. – O que acha da minha? – Anne perguntou.

Eram olhos de um preto tão profundo, tão... Amedrontador, mas ao mesmo tempo tão confortável. Quem olhasse naqueles olhos sem prestar atenção com certeza não iria perceber que lá no fundo havia um arco-íris. Um infinito de cores diferentes, todas juntas e escondidas no fundo da escuridão.

– Acho que... – Eu comecei a falar.

– Guarda. Pra você, agora que já tem uma conclusão. – Ela disse, agora desviando o olhar para o céu alaranjado.

Eu sorri.

– Crosses? – Perguntei.

– Crosses. – Ela respondeu.

E então aquela hype, que só nós entendíamos, começou.

Após algumas vezes de repetição eu tive uma ideia. Mudei de música e coloquei uma valsa. Me lembro muito bem desse momento. Agora eu amo música clássica. Depois de Anne ter me inserido no mundo da música, eu comecei a gostar muito de músicas nesse estilo.

Anne me encarava do jeito curioso.

– Não sabia que você... – Ela começou.

– Eu também não sabia. Até ontem.

E deixamos a playlist rolar. Eram várias, tantas, músicas magníficas.

Até que em certo momento Anne se levantou.

– O senhor me daria à honra dessa dança? – Anne perguntou enquanto tentava fazer uma voz formidável.

Eu sorri. Entrei na brincadeira.

– Prepare-se para ter seus pés pisoteados. – Respondi enquanto levantava.

E então começamos a dançar. Éramos – somos – péssimos. Mas foi incrivelmente legal. Incrivelmente bobo também.

Até que no meio da dança a bateria do meu celular morreu.

– Mas o que? Não acredito. – Eu falei, indo até o aparelho.

Anne então bateu na minha cabeça.

– Que falta de educação largar a sua companheira no meio da música! – Ela disse.

– Mas já não tem mais música. Então também não tem dança. – Eu falei, me sentando.

Anne ficou de pé, observando o céu. Estava com um olhar pensativo.

Foi então que ela começou a cantarolar algo qualquer e me estendeu a mão.

– O que? – Eu perguntei.

– Nós vamos dançar a “Valsa da Anne”. – Ela disse.

E então eu levantei. E nós dançamos juntos uma música aleatória, cantarolada por Anne.

Ela era – é – estranha.

Voltamos pras escadas do mercado-padaria.

– Então quer dizer que nada de encontros durante a semana? – Anne me perguntou.

– É... Vai ser assim agora. – Respondi.

– Então tá. – Ela disse. Me deu um selinho e começou a caminhar pra casa dela, seja lá onde ela more.

Cheguei em casa, peguei minha boa e velha caneca verde e a enchi de café.

Fui para o meu quarto. Sentei em minha cama. Uma luz clara penetrava a minha cortina. Eu não podia dizer que era branca porque já não me lembro mais disso.

Coloquei músicas aleatórias para tocar.

Bebi meu café enquanto observava o pequeno pacote achatado que Anne me dera.

“O que seria? Quando eu devo abrir? Será que agora é a hora? Será que a hora pode ser, talvez, amanhã? Quem sabe quando pode ser a hora?”

Eu pensei. Quem sabe?

Bebi o resto de café e me deitei. Não era agora que eu dormiria, tinha cafeína demais fazendo efeito em mim.

Resolvi pesquisar algumas outras frases e escrever em minha parede.

“ A vida é o que acontece enquanto você está fazendo outros planos. – John Lennon.”

Foi essa a frase que eu coloquei na parede. Bem, ao menos a primeira da noite. Mais algumas outras vieram junto com o tempo que passava.

Deitei em minha cama.

Sono.

Leve.

Sonhos.

Leve-me.

Acordei.

A semana passou rapidamente, como se o tempo finalmente estivesse querendo me ajudar.

Sábado. Não era o meu plano acordar as 4:50 da manhã, mas foi o que aconteceu.

– Hey. HEY! – Uma ruiva gritou no meu ouvido.

– DEUSES! Mas o que é isso?! – Eu acordei um pouco desesperado.

– Isso é a sua mãe te dando um aviso. – Disse uma cabeleira ruiva ajeitadinha.

– E o que é? – Eu respondi me acalmando.

– Bem, me ligaram do trabalho e eu vou ter que cobrir algumas pessoas. Não volto até amanhã de tarde. Desculpa mesmo, não deu tempo de fazer outro almoço. Tem as sobras de ontem. Deixei dinheiro pra você comprar lanche. Mas é pra comer MESMO! Não vai gastar em besteira. Se cuida. – Minha mãe disse numa velocidade impressionante.

Minha mãe trabalha de recepcionista-faz-tudo num hotel importante – e longe – aqui na cidade. Os caras não pagam bem pro porte do hotel, mas dá – dava – pra gente se virar. Minha mãe sempre cobria outras pessoas que não iriam trabalhar em certos lugares, por isso o “faz-tudo”.

Tentei voltar a dormir depois que me despedi da minha mãe. Só que claro, não consegui.

Resolvi fazer diferente naquele dia. Eu iria chegar primeiro que a Anne. Qual seria reação dela?

Foi então que eu tomei café na minha caneca verde e saí.

Meus passos voltaram a fazer “tum-tum”.

Ao chegar à escada do mercado-padaria quem ficou surpreso fui eu.

Anne já estava lá.

Sentada de pernas cruzadas, com o Discman ligado e fones no ouvido, olhando para o céu que ainda estava se clareando.

– Anne? O que você tá fazendo aqui tão cedo?– Eu perguntei, assim que cheguei à frente dela.

Ela me encarou, estava com os cabelos presos. Não havia uma reação de desespero ou algo a esconder, ela estava completamente normal.

– Te esperando, ué. – Ela respondeu.

Deuses, essa garota era – é – maluca.

– Mas eu nunca chego aqui nesse horário. – Eu respondi.

– Não. Você tá aqui agora não tá? – Ela disse.

– Erm...

– Então! Nunca se sabe. – Ela disse, enquanto se levantava.

Ela começou a andar para as bandeiras.

Passamos a maior parte do dia lá, conversando e jogando tempo fora. Até que em uma parte da tarde Anne falou algo interessante.

– Hoje eu quero testar uma coisa nova, só não sei se é uma boa ideia ser nas bandeiras... – Anne disse.

Eu hesitei um pouco antes de falar. Me lembro muito bem.

– Vem pra minha casa. Minha mãe só volta amanhã.

Anne me encarou do jeito curioso e então sorriu.

– Pode ser.

Andamos até minha casa. O “tum-tum” que nossos passos faziam era confortante.

Chegamos à porta da minha casa. Eu a abri e então ela entrou. Era uma sensação estranha ter alguém diferente lá em casa. Normalmente eu e minha mãe não recebemos visitas – exceto pelas testemunhas de Jeová.

Ela olhava cada canto da minha casa, como se lá fosse um pequeno planeta desconhecido. Foi um tanto engraçado.

Enfim entramos no meu quarto.

Assim que Anne pisou lá dentro ela murmurou algo. Não consegui entender o que era.

Ela então se virou pra mim. Me encarou por alguns segundos.

– Parece e não parece ser o seu quarto. Tudo ao mesmo tempo. – Ela disse.

– E por quê? – Perguntei.

– Bem, não tem quase nada com um toque “Johan” aqui. E por esse mesmo motivo dá um toque de “Johan” no lugar.

Anne colocou a mochila delicadamente em cima da minha cama. Observou as frases na parede. Virou-se sorrindo para mim.

– Isso sim é algo inesperadamente “Johan”. – Ela disse.

Foi então que ela foi até a minha escrivaninha e pegou uma caneta.

Rude. Não pediu permissão.

Começou a escrever na minha parede.

Perfeitamente imperfeita.

– O que você escreveu? – Perguntei assim que ela desceu.

– “Dizer adeus é dar boas vindas ao recomeço” e“ A despedida nem sempre é um adeus. Pode ser um ‘até logo’, mesmo que o logo ainda seja demorado.”.

Anne coloca a caneta de volta na escrivaninha.

– São minhas duas frases favoritas. – Ela disse. – Agora coloca uma música ai. E eu espero que você seja forte.

– Forte pra que? – Perguntei.

– Pra isso! – Ela disse, tirando da bolsa uma garrafa de Uísque e um refrigerante.

Fiquei encarando Anne por algum tempo considerável.

– Ah qual é?! Vai ser uma loucura legal! Vai ser legendário! – Ela disse.

– Argh... Não sei Anne. Talvez eu passe essa loucura. – Eu disse.

Seria bom se eu realmente tivesse seguido meu pensamento inicial.

– Então pega um copo pra mim. – Ela disse.

Fui na cozinha, peguei o copo e retornei para o quarto.

– Obrigada. – Ela disse enquanto colocava meio copo de Uísque.

– Você vai mesmo beber aqui? – Perguntei.

– Prova. Só cala a boca e prova. – Ela me disse entregando o copo.

Observei a mão dela estendida com aquele copo contendo um líquido nada saudável.

Me lembro bem de como aquele negócio era horrível. Tomei meio copo numa única golada.

Anne gargalhava. Minha cara era de total desaprovação.

– Deuses! Não acredito mesmo que você bebeu isso puro. É horrível! – Ela disse em meio às gargalhadas.

– Céus, você é idiota ou o que? – Eu falei me aproximando dela.

Nos beijamos.

Ela olhou pra mim e voltou a rir.

– Por Danú, o gosto ainda tá na sua boca. Você é muito leso! – Ela disse enchendo o copo com refrigerante e mais Uísque. – Esse é pra mim, porque eu não sou idiota. Pega um copo pra você.

Fui pra cozinha, ainda incerto se eu beberia ou não mais daquele negócio terrivelmente ruim.

Ao chegar ao quarto eu coloquei meu copo em cima da escrivaninha e fui colocar alguma música pra tocar.

– Ouça e ame. – Eu disse para Anne que enchia o meu copo.

Fidlar – No Waves começou a tocar.

Anne me solta aquele olhar único novamente. Vem até mim trazendo o copo e o me entrega.

Encaro mais uma vez aquela substância de gosto terrível, agora misturada com um refrigerante de cola.

– A pergunta aqui seria: Por que não? – Eu falei.

Bebi um tanto considerável. O gosto não era bom, longe disso. Mas era consumível.

Começamos a dançar. A música contagiava.

– Johan, deixa essa música no repeat! – Anne disse. – E aumenta o volume!

Seu desejo é uma ordem. A música alta. Mais bebida. Beijos. Repeat.

Não me lembro. Mas se eu for otimista eu consegui beber 4 copos sem ficar bêbado. E eu ainda estava dançando. Não me lembro mesmo de muita coisa. Mas alguns flashes eu não consigo esquecer.

Anne me beijando. Nós dois subindo na cama. Ela tirando a camisa e ficando só com o sutiã preto. Eu passando minhas mãos na pele macia dela. A tentativa falha que eu fiz de tirar o sutiã dela enquanto bêbado.

Não, não fizemos. Como eu sei? Bem, eu só sei.

Acordei no domingo meio quebrado. Não sabia o horário. Anne estava do meu lado na cama e sem sutiã. Eu estava só de cueca. Eu dei risada bem baixinho. Me lembro bem, a minha cabeça doía como se fosse explodir.

Resolvi fazer um café para nós dois. Não fazia ideia de que hora da tarde a minha mãe voltaria pra casa, então eu precisava ter um certo cuidado.

Fiz um café da manhã para nós dois. Minha boca estava com um gosto terrível. Deuses, minha boca estava com gosto horrível!

Acordei Anne, ela sorriu até perceber que estava sem sutiã. Foi engraçado a reação dela. Não entendi o porquê esconder se eu já havia visto os peitos dela. Bem, eu estava bêbado e não lembrava muito bem, mas isso não muda o fato de eu os ter visto.

– Por Danú, minha boca tá com um gosto terrível. – ela disse enquanto se encostava à parede da cama.

– Idem. – Eu falei, sentando ao lado dela.

Conversamos enquanto comemos. A garrafa de Uísque estava em cima da minha escrivaninha. Estava perto da metade. Deuses, ela havia bebido muito mais que eu.

– Seu café é muito bom. – Ela falou.

– Eu sei. – Respondi.

Após terminarmos de tomar café ela arrumou sua pequena bagagem dentro da bolsa.

– Johan, eu posso tomar banho aqui? – Ela perguntou.

– Claro. Vai pra sala, você vai achar o banheiro dali. –Eu falei.

– Obrigada.

Anne saiu do quarto. Abri as janelas. O dia estava verde. Parece que os meus domingos com Anne são sempre verdes.

Arrumei minha cama como de costume. Li as frases que Anne havia escrito na parede.

“As favoritas hum?” – Pensei.

– Johan! Esqueci completamente da toalha. Tem alguma pra me emprestar? – Anne gritou do banheiro.

– Já vou! – Respondi.

Fui ao meu guarda roupas. Peguei uma toalha de banho verde, assim como o domingo. Fui ao banheiro para entregar.

Bati na porta. Anne abriu.

Ela estava vermelha, talvez por causa da água quente. Os cabelos estavam molhados. Ela estava linda.

– Obrigada! – Ela falou, pegando a toalha.

Pouco tempo depois ela voltou ao quarto, já vestida e com a toalha na cabeça. Me pergunto o que ela não teria naquela bolsa dela.

– Você sem os óculos fica bonito. – Ela disse, sentando do meu lado. – Porém, prefiro você com eles. Fica muito mais Johan.

Sorri, fui até a escrivaninha e peguei meus velhos óculos remendados.

– Viu? Bem mais desenho. Bem mais Johan. – Ela falou.

– Também vou tomar um banho. Pode, sei lá, mexer no computador se quiser, ou ver TV na sala. Eu já volto.

Tomei meu banho quente como de costume. Passei pela sala só de toalha, Anne estava lá assistindo TV. Ela me encarava com aquele olhar interessante.

Já no meu quarto eu me troquei. Minhas roupas de cama ficaram com o cheiro dela. Eu gostava daquilo.

Resolvemos passar o resto do dia na bandeira dos vaga-lumes. Não iríamos beber mais Uísque. Bem, eu não iria.

O tempo voou. Já era consideravelmente tarde quando chegamos à escada do mercado-padaria.

Anne era – é –meio maluca. Mesmo de ressaca ela bebeu o resto do Uísque com o resto do refrigerante. Estava um pouco felizinha.

– Anne, vou te acompanhar até sua casa hoje. – Eu falei.

– Nah! Não tem necessidade alguma disso. Eu to bem, posso ir sozinha. – ela falou me dando um selinho e começando a andar.

Me lembro bem. Não quis deixa-la ir sozinha, não mesmo. Acompanhei o “tum-tum” dos passos dela. Andei ao lado dela.

Anne parou de andar e ficou me encarando.

– Você não entendeu Johan? Não quero que me leve pra casa. – Ela disse.

– Você que não entendeu Anne. Você PRECISA ser acompanhada até em casa. – Eu respondi.

Anne fez uma expressão nova. Uma que eu nunca pensaria que ela conseguisse fazer. Ela estava irritada. Não sei se era a bebida ou se eu realmente apertei o calo dela naquela noite.

– Se é assim... – Anne começou. – Não vou ir pra casa até você deixar de me seguir. – Ela disse, voltando e sentando na escada.

– Para de ser idiota Anne. Vamos logo que já tá tarde. – Eu falei, tentando convencê-la.

Anne me encarou. Pegou a bolsa dela e tirou o Discman e o fone. Os colocou e se encostou.

– Anne. Deixa disso. Vamos! – Eu falei, tirando o fone dela.

– Johan, eu vou quando você já tiver ido pra casa. – Anne começou a falar arrastado. Não era um bom sinal.

Eu estava num dilema. Era perigoso dos dois jeitos. Deixar Anne ir sozinha – e bêbada – pra casa ou tentar acompanha-la e ela acabar dormindo na rua?

Não sabia o que fazer, não mesmo. Não era a melhor hora, mas eu comecei.

– Anne, vamos logo. Você precisa ir. Seus pais devem estar preocupados contigo. Você não avisou ninguém que ia dormir fora ontem. – Falei, mais uma vez tirando o fone dela.

– Deuses, Johan! Fodam-se meus pais ou sei lá quem você acha que vai ficar preocupado comigo. Eles não dão à mínima, ninguém liga Johan! Eu poderia dormir hoje, aqui mesmo, que ninguém iria correr atrás pra saber onde eu estou. Por que é tão importante, tão preciso me levar até em casa hein? Eu posso muito bem ir sozinha, eu simplesmente...

– Cala a boca. Quieta. Eles podem não ligar pra você Anne. Podem não se preocupar, mas EU me preocupo ok? Eu quero que você chegue bem. Não faço ideia de onde fica a merda da sua casa. Não sei se é longe ou é perto porque até hoje eu ignorei o fato de não saber nada sobre você. Eu quero te levar em casa pra ter certeza que você não vai cair por aí, ou sabe Deus mais o que. Agora vê se para de frescura e levanta daí, cacete! – Eu gritei. Brabo. Realmente não pensava que eu conseguia fazer isso. Mas eu conseguia.

Silêncio. Um longo silêncio.

Anne me encarava. Não era um olhar único, não era um olhar curioso nem um olhar de raiva. Não era medo, não era indiferença e nem tristeza.

Talvez fosse um olhar de desculpas. Um olhar de “sinto muito”. Quem sabe?

Anne se levantou e começou a andar. O Discman ainda estava ligado, ela o carregava na mão. Ela andava um pouco cambaleante. Fui ao lado dela e coloquei meu braço em torno da cintura dela. Ela me guiando e eu não a deixando cair.

Foram no mínimo 40 minutos de caminhada. Deus, ela iria tudo aquilo sozinha e bêbada.

– É aqui. – Ela disse.

Uma casa simples, não muito grande. Pelo quintal da frente podia-se ver a janela. As luzes da sala estavam acesas. Havia alguém esperando por ela. Talvez. Quem sabe? Ninguém sabe.

Quando chegamos até a porta ela simplesmente pediu pra que eu fosse embora. “Vai ser mais simples assim Johan.” - Ela me disse.

E eu fui. Não sei quem abriu a porta pra ela. O que falaram sobre o bafo de bebida, ou se falaram do bafo de bebida. Quem sabe?

Ninguém sabe.

Voltei pra casa. Já era bem tarde. A ruiva já estava na sala, com a TV ligada e roncando. Desliguei a TV e arrumei o travesseiro dela.

Fui para o meu quarto. Tirei a roupa que estava muito incômoda e deitei em minha cama. Amanhã eu tinha escola e trabalho. O cheiro de Anne ainda estava no meu travesseiro. As memórias de sábado estavam marcadas naquele – nesse – quarto. Nas paredes, no chão, nos cobertores, enfim, em tudo.

Acordei.

Café.

Escola.

Trabalho.

Casa.

Sentei em minha cama depois de requentar a janta. Observei o pequeno pacote achatado que Anne havia me dado. “Qual seria a hora certa de abrir isso?” Eu me perguntava constantemente.

A semana passou lenta, porém dessa vez havia um feriado. Tudo ficava mais suportável com o feriado em mente. E o melhor: Eu não iria trabalhar dois dias. Quinta e sexta no caso. Mas de todo jeito eu não saberia se veria ou não Anne na quinta. O jeito era tentar.

A semana se arrastou para quinta-feira. Era como se o tempo quisesse me proteger ao invés de me atrapalhar. Essa era a sensação.

Diferente de mim, minha mãe trabalhava a semana inteira. Isso meio que me irritava.

Sai cedo de casa. Ao chegar à escadaria lá estava ela. Anne. Me esperando.

Um selinho de “olá”. Não podia dizer se era um sinal ruim ou bom.

– Vamos pra sua casa hoje? – Ela me perguntou.

Fiquei um pouco surpreso, mas assenti.

Ao chegarmos lá Anne já foi direto para o meu quarto. E mais uma vez bebidas.

– Anne, eu acho que hoje não rola... – Eu falei.

Ela me encarou.

– Tá, eu falei a mesma coisa dá última vez, mas agora é sério! – Eu tentei convencê-la.

Ela abriu a tampa e me entregou.

Desceu pura.

Dessa vez nós decidimos que não iríamos ficar tão bêbados.

Quando já estávamos felizinhos paramos.

Crosses estava tocando. Estávamos sentados na cama. Anne mais uma vez pegou uma caneta minha e escreveu em minha parede.

– Qual frase e de quem? – Eu perguntei.

– “Odeio pontos finais.” é minha. – Ela respondeu.

– Sua? Você escreve? – Tornei a perguntar.

– É, de vez em quando. – Respondeu.

Olhei curioso para ela.

– Nem pense. – Ela falou.

– Pensar o que? – Eu perguntei enquanto sorria.

– Não vou falar mais frases minhas. – Ela respondeu.

– Por favor! Só mais uma! – Eu pedi.

Anne então me encarou. Acho que fiz uma cara de cão sem dono bem comovente. Ela pegou um caderno de desenho na mochila dela, deitou-se no meu colo e começou a ler algumas frases.

– Só vou falar as que eu mais gosto e uma delas eu escrevi pensando em você. Se descobrir qual foi eu te dou uma surpresinha. – Ela disse.

– Então tá, vamos lá. – eu falei.

– “A cada conversa você muda um pouquinho ou talvez simplesmente mostre uma parte tua que eu não conhecia. E isso me faz gostar mais de você.”, “Sabe qual a parte boa d’eu ir dormir? É que eu tenho certeza que vou sonhar contigo.”, “Engraçado... A tristeza é mais inspiradora que a felicidade. Claro, isso em mim.” E por fim: “A vida é tão agora. Por mais que eu queira lembrar-se dos detalhes de ontem pra sempre, vai chegar um dia que não vou me lembrar de mais nada.”.

Encarei Anne por algum tempo. O olhar dela dizia que ela estava ansiosa. Esperando uma resposta.

– Eu particularmente gostei muito da última. Tenho até uma réplica pra ela. – Eu falei.

– Réplica? – Ela perguntou. – Então eu quero ouvir.

– Como eu posso dizer? – Eu comecei. – Bem, eu gosto de relembrar momentos bons. Tentar sentir mais uma vez o que eu senti antes. Mas é que nem você disse. É tão agora. Então faça do agora um momento especial sempre.

Anne me encarou do jeito curioso que eu tanto gostava – gosto – e sorriu.

– Qual você acha que foi inspirada em você? – Ela perguntou.

– Uhn, a primeira talvez? – Eu perguntei.

– Yay! Acertou. Agora, o prêmio. – Disse Anne.

Então ela se levantou.

– Música sexy, por favor. – Ela pediu.

Fui ao PC e coloquei a primeira música que eu achava que combinaria com o momento.

Since I’ve Been Loving You – Led Zeppelin

–Perfeito. – Disse Anne.

E então eu voltei a me sentar na cama.

Um strip. Sério, um fodendo Striptease.

Deuses, ela era – é –tão sexy. Essa quinta. Nunca vou esquecer essa quinta.

Enquanto Anne fazia um strip para mim – no caso ela tentou fazer um, mas ficou sexy de qualquer maneira – eu enchia um copo com mais álcool. Não faço ideia de que bebida era.

Bem, depois disso nós começamos. Não tínhamos como não começar.

O Sutiã branco, os seios, a barriga sexy, a pele macia. O toque, o cheiro, o gosto.Tudo. Anne simplesmente me enlouquecia a cada movimento.

A noite já tinha esquentado, e como tinha.

Enfim. Naquela noite nós fizemos.

Não era a primeira vez dela, óbvio que não. Não que eu ligasse. Foi espetacular. Foi a melhor quinta-feira de todas – até agora.

Bem. Digamos que eu esqueci que minha mãe voltava pra casa naquela quinta. E digamos também que... Anne já havia dormido.

Digamos ainda que minha mãe chegou e queria ver se o filho dela estava em casa, no seu quarto.

Deuses. Foi uma madrugada interessante.

Eu estava só de cueca e meias. Fui até a cozinha para fazer um pouco de café pra mim. De repente a porta da frente se abre. Não com muito barulho, mas como a cozinha é bem ao lado da sala eu pude ouvir.

Céus, como eu gelei. Agradeço por ter a mãe que eu tenho. Corri silenciosamente até a sala. A ruiva estava indo em direção ao meu quarto.

– Ei! – Eu falei num tom que não acordaria Anne, mas chamaria a atenção da cabeleira vermelha.

E então minha mãe olhou pra mim. Deus foi um momento hilário. Juro que não era pra ser, mas foi. Deve ser porque é a minha mãe.

Fomos conversar na cozinha.

– Garoto, você não... – Minha mãe começou.

– Foi mal! Eu sim. – Cortei a fala dela.

Minha mãe queira aparentar raiva, mas aquele sorriso idiota no rosto não deixava.

– Céus, você podia ter me avisado disso. Eu dormiria fora. – Ela disse.

– Nunca! Você trabalha feita uma maluca e eu ainda te faria dormir fora? – Falei.

– Bem, mas tá tudo ok. Amanhã, quando vocês levantarem, eu não vou estar aqui. – Ela falou.

– Obrigado mãe... Por não... Sabe né... – Eu comecei.

– Vocês dois... – Ela tentou falar.

– É, sim. – Eu falei.

– Bem, você já tá na idade mesmo. Eu era só um ano mais velha quando eu fiz isso. – Ela falou.

– Céus, informação demais mãe! – Eu falei.

Ela riu.

– Isso é normal, ora bolas! Agora vai, me dá um pouco de café que eu finjo que nunca estive aqui. – A cabeleira ruiva disse.

Tomamos um bom café quente, juntos, em silêncio e com sorrisos no rosto. Deuses, eu já falei que agradeço pela mãe que eu tenho?

Voltei para o meu quarto. Anne dormia. Eu sorri. Deitei ao lado dela.

Sussurrei um “eu te amo”. Juro pra vocês: Eu não devia ter feito isso.

Sono.

Leve.

Sonhos.

Leve-me.

Acordei antes de Anne, mais uma vez. Parecia que quando ela estava em casa ela realmente podia aproveitar para dormir, diferente da casa dela.

Fiz um café para nós dois mais uma vez e levei para o quarto. Assim que entrei Anne já estava se levantando.

Ela sorriu pra mim. Aquele sorriso foi estranho. No dia eu não percebi. Eu realmente preciso prestar mais atenção nas pessoas.

Nós tomamos café, depois tomamos banho e enfim saímos para a bandeira dos vaga-lumes.

Passamos o dia conversando e rindo feito bobos. Tudo parecia estar perfeito.

Nos despedimos no fim da tarde e fomos cada um pra sua casa.

Eu teria o sábado e o domingo todo para ver Anne outra vez. Eu estava feliz.

Assim que eu cheguei em casa a ruiva estava me esperando.

– “Eu sou?” - Ela perguntou.

– Partiu! – Eu respondi.

Passamos boa parte da noite brincando de eu sou. No final, normalmente eu iria para o meu quarto e ficaria lá pesquisando músicas e escrevendo mais frases em minha parede. Mas daquela vez eu decidi ficar na sala, com ela – com a minha mãe.

Assistimos junto a um filme péssimo que estava passando na TV.

Minha mãe tem um pequeno defeito: Ela fala de assuntos aleatoriamente sérios nas horas erradas.

– Vou te mostrar fotos antigas do seu pai. – Ela disse assim que o filme deu comercial.

– Mas o que?! – Eu perguntei pulando fora do sofá.

Minha mãe sempre foi solteira. Bem, desde que eu me lembro. Quando eu era criança eu perguntava do meu pai. A resposta dela era sempre um “Ele foi embora. Mas ele te amava muito. Ainda te ama muito”.

Ela foi ao quarto dela. Por alguma razão eu estava tenso. Nunca vi fotos do meu pai. Sempre tentei imagina-lo, porém nunca consegui.

O filme voltou. A ruiva também. Ela tirou o som da TV e acendeu a luz da sala.

– Aqui, toma. – Ela me disse, entregando uma caixa pra mim.

Era uma pequena caixa de sapatos. Tive receio de abrir, mas acabei o fazendo.

– Ai tem todas as fotos do casamento e mais algumas aleatórias que tiramos ao longo do “tempo”. – Ela disse fazendo aspas com as mãos na palavra tempo.

Deus, eu sou idêntico a ele, exceto pelos óculos.

Fotos do casamento, meus avós, tias e tios, e ele – meu pai.

Pelas fotos dava pra ver que ele era um tanto mais alto que eu. Tinha mais corpo também, diferente de mim que sou magricelo.

Algumas tantas outras fotos. As que foram tiradas no inverno foram as que me chamavam mais a atenção. Minha mãe e ele, sorrindo, no meio da chuva. Ele com um cachecol verde e uma roupa preta semelhante a um conjunto que eu tenho.

De certa forma, ver aquelas fotos me deixava feliz e triste ao mesmo tempo.

– Pega uma pra você. – A ruiva me disse.

Escolhi a da chuva.

– Bom gosto. – Disse a cabeleira vermelha.

Depois disso ela pegou a caixa de volta e levou-a pro quarto.

Fui para o meu quarto. Durante o resto da noite observei a foto. Arranjei uma fita e a colei na minha escrivaninha.

Sono.

Leve.

Sonhos.

Leve-me.

Acordei sorrindo na manhã seguinte. Talvez eu tenha tido um sonho bom.

Fui para a cozinha. A ruiva estava fazendo café. Ótimo.

– Bom dia Sr. “Trago a namorada para fazer coisas indecentes e não aviso a mamãe para não aparecer e atrapalhar”. – Disse a ruiva.

– Mãe! Esse apelido é muito longo. – Eu falei, dando um beijo de bom dia na bochecha dela.

– Bafo matinal, vai escovar os dentes. – Ela falou.

Eu ri.

Fui ao banheiro, tomei o meu banho e claro, tirei o bafo matinal.

Tomamos café juntos.

– Hey, hey, hey! Fui! – Eu falei assim que estava saindo.

– Ei Johan. – A ruiva disse. Eu me virei para escuta-la. – Obrigada por ajudar aqui em casa. Como você disse, a gente vai passar por essa, juntos.

– Juntos. – Eu falei.

Depois disso corri com meus “tum-tum” até a escada do mercado-padaria.

E como na semana desesperadora, Anne não estava lá.

Dessa vez eu não me desesperei. Esperei um pouco ela nas escadas e depois fui direto para a bandeira dos vaga-lumes.

Nada da Anne. Então voltei pra casa.

– Mas já? – Perguntou a ruiva assim que me viu na porta.

– Já. – Eu falei, tirando os meus tênis.

– Poxa... Tá tudo bem? – Ela perguntou.

– Tá sim, mãe, valeu. – Eu respondi.

Comecei a ir em direção ao meu quarto.

– Coloca os tênis de novo. – Disse a ruiva.

– Por quê? – Perguntei.

– A gente vai sair! – Ela falou, enquanto corria para o quarto se trocar.

Não sabia muito bem pra que isso, mas fui e coloquei meus tênis mais uma vez.

A ruiva saiu do quarto quase do mesmo jeito, só tinha prendido o cabelo e colocado uma jaqueta. Estava desleixada, do jeito que ficava – fica – mais bonita.

Saímos. Andamos lado a lado. Interessante é que nossos passos também faziam “tum-tum”.

– Pra onde a gente vai? – Perguntei.

– Pro shopping. – Ela falou.

– Fazer? – Tornei a perguntar.

– Comprar um presente pra você e te chatear vendo várias coisas que mães veem. – Respondeu.

– Presente? Mas o que... – Acabei sendo interrompido.

– Xiu! Vamos logo.

Andamos durante algum tempo.

Chegamos ao shopping da cidade. Não é muito grande, mas quebra o galho.

Passamos em algumas lojas. A ruiva quis me comprar algum perfume e eu recusei. Ela quis me comprar um CD de alguma banda e eu recusei. Quis comprar uma pelúcia, e claro, eu recusei.

– Pô Johan, você parece àquelas namoradas chatas hein. – Ela disse, sorrindo, enquanto se sentava no banco de uma cafeteria. – Dois cappuccinos, por favor! – Ela pediu ao garçom.

– Café, pronto, você acabou de me dar o meu presente. – Falei também me sentando.

– Deixa disso. Vai, pensa em algo que você queira. – Ela falou.

E eu pensei. Pensei mesmo. Mas nenhum perfume, CD ou até mesmo pelúcia me chamavam a atenção. Foi então que eu me lembrei da foto da minha mãe e meu pai na chuva.

O garçom entrega os cappuccinos.

– Obrigada. – Diz a ruiva ao garçom.

Ficamos bebendo o cappuccino por um tempinho.

– E então, conseguiu escolher algo? – Ela perguntou.

– Consegui. – Eu respondi.

– Finalmente. E o que é? – Ela perguntou dando outro gole no cappuccino.

– Um cachecol. Um cachecol verde. – Eu falei.

Ela me encarou. Parecia que esse simples item significava muito para ela. Ela então sorriu. Acho que fiz uma ótima escolha.

– Um cachecol verde e uma calça jeans nova. – Falou.

– Fechado. – respondi.

Passamos o resto do dia no shopping. Ela me entediando de vez em quando, enquanto caçava bijuterias ou itens artesanais e eu a entediando enquanto entrava em lojas de jogos ou lojas de discos.

Voltamos pra casa com o meu cachecol, uma calça nova, um sabonete aleatório e uma vela de incenso com cheiro de canela.

Fui para o meu quarto e fiquei ouvindo música o resto do tempo.

Sono.

Leve.

Sonhos.

Leve-me.

Domingo. Acordei cedo. Tomei um longo banho quente. Tomei um bom café da manhã e vesti o meu conjunto de roupas parecidas com a do meu pai.

Mesmo não estando frio eu coloquei o cachecol. Claro, não podiam faltar os meus óculos.

Saí de casa. Fui para a escada do mercado-padaria e lá estava Anne, com seu coque, suas roupas coloridas e sua mochila.

Cheguei mais perto, Anne me encarava um pouco surpresa.

– Isso é muito, muito mais Johan do que o normal. – Ela disse sorrindo.

Selinho de olá. Já disse como amo – amava – o selinho de olá?

– Vamos pra bandeira? – Ela perguntou.

– Vamos!

O dia voou. Trocamos algumas poesias, várias músicas e poucas histórias.

O fato de eu saber onde Anne morava não mudava quase nada a minha situação com ela. Não sabia se ela morava com os pais, não sabia que escola ela frequentava, não sabia absolutamente nada sobre ela.

E isso estava me incomodando de verdade.

Os vaga-lumes logo chegaram. Voltamos para a escada do mercado-padaria no fim da tarde.

– Então até logo, Johan. – Anne me disse.

Nos beijamos. Ela me deu um abraço apertado. Foi um abraço único.

– Até! – Eu falei.

Voltei feliz para casa. Troquei de roupas e me preparei psicologicamente para voltar pra escola segunda-feira. Não reclamo do trabalho, até gosto dele.

Sono.

Leve.

Sonhos.

Leve-me.

A semana se arrastou.

No sábado eu tinha tantas histórias de trabalho para contar pra Anne que ela ficaria impressionada.

Fui para as escadas. Anne não estava lá. Fui para a bandeira e nada lá também. Esperei por uma hora, porém ela não apareceu.

Domingo chegou logo, do jeito que eu queria. Assim eu poderia ver ela. Cheguei cedo às escadas do mercado-padaria, porém, mais uma vez, nada dela lá. Fui para a bandeira novamente e esperei até o horário do almoço, mas ela não apareceu.

A semana se arrastou. Eu estava crente de que algum imprevisto teria acontecido nesse fim de semana, mas que no próximo eu conseguiria vê-la.

A semana se arrastou. Consegui mais histórias legais para contar pra Anne, porém no fim de semana ela não apareceu, outra vez.

Decepção.

No domingo eu estava no meu quarto. Já era fim de tarde. Estava tocando “Fim de Tarde com Você”.

Observei a minha parede cheia de frases. Escrevi mais algumas.

Outra semana se foi. Outro fim de semana sem Anne. Eu já estava arrasado. “Onde ela está?” Eu me perguntava incessantemente.

Era outro domingo. E mesmo sem a Anne, era um domingo verde.

Observei novamente a minha parede cheia de frases. Até que leio uma que Anne escrevera.

“Dizer adeus é dar boas vindas ao recomeço.”

Deuses, como eu gelei com aquilo. Eu gelei muito. Eu simplesmente não sabia o que pensar. O que fazer. Quem saberia o que fazer?

Lembrei do pequeno pacote que Anne me deu. A hora era aquela.

Abri a maldita embalagem.

Uma pequena fita. Daquelas que você usava em gravadores. Céus, eu nunca soube porque ela tinha tanta afeição por itens antigos.

Eu não tinha um único rádio ou gravador em casa que pudesse tocar aquela maldita fita.

A semana se arrastou. O tempo estava fodendo comigo. A fita estava fixa como meu único objetivo.

E finalmente o fim de semana.

Sábado de manhã. Sai correndo de casa, com a pequena fita em mãos.

A correria fazia os meus passos soarem como irritantes “tucks”. Tantos, tantos “tucks” em tão pouco tempo que eu me irritava.

Eu estava correndo para o centro da cidade. Talvez algum camelô ainda vendesse aqueles radinhos de pilha que tocavam fitas. Ou até mesmo uma loja de eletrônicos.

Mas nada é tão ruim que não possa piorar, não é mesmo?

O destino nunca vai perder uma chance de te foder, acredite.

Na minha correria, a fita caiu da minha mão. Céus, porque eu não guardei no bolso?

A fita caiu, e eu – Johan – também caí. Caí em cima da maldita fita.

Algumas pessoas passando observavam curiosas. Malditos, devia ter mandado um grande foda-se pra todos eles.

Recolhi os pedaços da pequena fita e joguei-os no lixo. Já não havia o que fazer.

A não ser que eu me lembrasse completamente de onde ficava a casa de Anne.

Andei, refiz todos os meus passos da noite em que eu levei Anne para casa. Foi difícil – eu me lembro – porque eu não me lembrava de onde ficava.

Andei muito mais do que os 40 minutos que eu andei da vez anterior.

Demorei mas encontrei.

Encontrei mas...

Não devia ter encontrado.

Aluga-se.

Era o que a merda daquela placa dizia.

Eu coração acelerou. Entrei no quintal.

Vi pelas janelas, agora sem cortinas, uma casa vazia, sem nada. Sem vida.

Voltei pra casa. Anne havia ido. Pra onde, eu nunca vou saber.

Eu fiquei por ela. Será que ela foi por mim?

As semanas passavam. Os finais de semana eram idênticos aos meus antigos finais de semana.

Um certo sábado a ruiva me pediu para ir até a padaria. O dia estava cinza.

Fui lentamente com os meus “tucks” até a padaria e comprei tudo o que eu devia.

Ao sair eu olhei para as escadas.

Uma coisa interessante é que eu não havia derramado uma gota de lágrima até aquela semana. Não importava o quanto eu estivesse magoado, ou triste – estraçalhado. Eu não chorava. Não conseguia chorar, mas eu QUERIA.

Resolvi ir até a bandeira dos vaga-lumes uma última vez.

O lugar continuava o mesmo. O canto escondido do parque, uma bandeira suja e um lugar largado. Sentei-me no mesmo lugar que Anne se sentava. Fechei os olhos e me lembrei de quando ouvi Crosses de olhos fechados em meio à multidão. Eu sorri – me lembro bem – porque naquele dia eu me senti inexplicavelmente... Inexistente.

Abri os olhos e observei o céu cinza daquele dia. O vento soprava forte.

A bandeira suja se debatia no topo do mastro. Ajeitei os meus óculos e me levantei. Olhei uma última vez para a bandeira suja.

Algo engraçado, diferente, se mexia junto à bandeira.

Foquei. Era uma embalagem de carta.

– Céus, quem amarraria aquilo... – Pausei. Soltei minhas comprar no chão.

Não faço ideia de como ela conseguiu, mas ela conseguiu. Ela amarrou uma maldita carta no topo do mastro da bandeira.

Eu tentei subir e pegar a carta. Pelos deuses, aquilo era impossível. Eu não conseguia subir mais do que 10 cm de distância no mastro.

Mas eu me lembrei de Anne. Se ela conseguiu eu também consigo. Não importa quantas vezes eu caísse daquele maldito mastro, eu iria pegar aquela merda de carta.

E eu tentei. Tentei muito. Tentei até o dia acinzentado virar uma noite acinzentada. Já estava escuro. Era quase impossível de se ver qualquer coisa.

Os vaga-lumes. Piscando cada vez mais. Muitos, tantos deles. A luz verde-alaranjada piscava e piscava. Tanto que o breu dava lugar a uma fraca luz – mais ainda sim luz.

E eu tentei. Subi, subi mais um pouco e escorreguei um tantinho. Continuei subindo. Peguei aquele maldito envelope. Meus óculos remendados caíram do meu rosto até o chão. Eu precisava deles para ler. Sem eles, tudo era um borrão. Desci daquela merda de mastro.

Peguei o que restava dos óculos do meu avô. Acho que eles precisam muito mais do que um simples remendado agora.

Coloquei-o no rosto mais uma vez. A lente esquerda estava trincada. A armação estava completamente mole. Já não poderia mais usar aquele óculos.

Abri o envelope. Era uma folha completamente azul. Isso me lembrou Cazuza.

Foi ali que minhas lágrimas caíram.

Sabem... Às vezes a vida não nos dá o que esperamos, e isso acaba com a gente. Eu sei que acaba. Mas você nunca deve esperar algo da vida. Deve esperar algo de si mesmo. Faça tua história e não se arrependa de nada que já tenha feito. Pare de simplesmente existir; Viva. Viva a vida, viva o momento, viva amores e viva términos. VIVA. Encontre uma pessoa que vai te fazer sofrer no fim de tudo; Vai te fazer sofrer por colocar um fim em todos os momentos bons que vocês tiveram. Depois disso, sofra. Sofra por esse ponto final de vocês. E então, quando já tiver acabado de sofrer, levanta a cabeça porque a vida continua – você ainda vive.

Como disse Raphael Bacellar: “Prefiro acreditar que não nos dissemos adeus, mas que nos separamos para que o destino nos dê um reencontro feliz.”

Talvez eu nunca reencontre Anne. Talvez esse seja o meu ponto final com ela.

Sentei na escada do mercado-padaria, que estava aberto, porém sem cliente nenhum.

Li mais uma vez a carta com o resto dos meus óculos.

De um lado havia escrito “Adeus.” Em uma letra feminina, arredondada e grande.

Do outro, havia escrito um poema.

“ e um vaga-lume
lanterneiro que riscou
um psiu de luz.”

As lágrimas voltaram a cair. Tirei do bolso 50cents.

Entrei no mercado-padaria e entreguei a moeda para o atendente que me olhava confuso.

– Apenas um café, por favor.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Foi o mais longo, tenso e cansativo dos capítulos. Ah, e o último. Espero que adorem ou odeiem a Anne. Sem meio termo. A história é assim, simples. Espero que tenham gostado e agradeço a todos que leram até aqui! Até mais ver.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Café com um pouco de amor, por favor." morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.