Café com um pouco de amor, por favor. escrita por Forsaken Boy


Capítulo 3
As coisas que eu nunca fiz.


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem desse capítulo! Até agora foi o que eu mais gostei de escrever, então boa leitura!



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Estávamos novamente em frente ao mercado-padaria. Nas escadas, mais especificamente.

– Amanhã. Aqui. De manhã. – Ela disse. E então começou a andar. O “tum-tum” que os pés dela faziam se distanciavam cada vez mais.
Sem se despedir. Rude.

Por quanto tempo será que eu e ela ficamos nos encarando? Até hoje eu não consigo entender como estar com ela faz – fazia – o tempo passar tão rápido. Cheguei em casa.

– Garoto, espero que você não durma o dia todo amanhã. – Uma bola ruiva de cabelos despenteados reclamou comigo.

– Pode deixar. – Eu disse, indo para o meu quarto.

Naquela noite não havia riscos riscando o céu. Naquela noite só havia barulhos metálicos passando incessantemente pelas ruas. Não sei o porque, mas não conseguia dormir.

A fotografia da Anne sorrindo em meio aos vaga-lumes ia e vinha na minha mente, o tempo inteiro.

“E um vaga-lume
lanterneiro que piscou
um psiu de luz”

Me lembrava da voz dela recitando aqueles versos.

“O que mais ela sabe? Quais músicas ela ouve? Qual a cor favorita dela? Será que ela prefere gatos ou cachorros?”

Perguntas vinham em minha mente, todas sobre ela.

A noite se arrastava. Eu lembro bem. Cada segundo parecia valer uma hora. Silêncio. Já não haviam barulhos metálicos passeando pela rua. Todos já deviam estar dormindo.

Me levantei. Mesmo sem ter nada para fazer, eu me levantei.

Minha cortina brilhava em um azul-acinzentado ou num cinza-azulado, não consegui me decidir ainda.

Abri as cortinas.

Céu.

Pontos.

Azul.

Brilhantes.

Por toda aquela imensidão de azul havia milhares deles, dos pontos brilhantes.

Nenhum “tuck” ou “teck” andando pelas ruas. Todos deviam estar dormindo. Olhei mais uma vez aquela imensidão.

“Se fossem brilhos amarelados poderiam parecer vaga-lumes. Vaga-lumes brilhando a milhares de anos luz daqui.”

Eu pensei. Me lembro bem. Depois disso, fui fazer uma xícara de café.

Já se passava das três da manhã, disso eu nunca vou me esquecer.

As luzes da cozinha estavam acesas.

Olhos vermelhos.

Papéis.

Vapor.

Água escorrendo.

Calculadora.

Um gole.

Cabelos vermelhos.

Calculadora.

Um outro gole.

Nessa madrugada eu não bebi café. Já havia alguém lá, bebendo excessivamente, por mim.

Eu deitei.

Fechar os olhos.

Leve

Sonhos.

Pesado.

Pesadelos.

Acordar.

Domingo, não era cinza nem laranja. Era um domingo verde. Bem verde.

Tomei um banho rápido, como de costume. Talvez fossem oito da manhã. Deus, quem acorda oito da manhã num domingo? Eu. Eu acordei.

Ela – Anne – não havia me dito o horário, somente disse que era de manhã.

– Hey, hey, hey. Espertinho do domingo. – Disse uma cabeleira ruiva, com um sorriso no rosto.

Forte é aquele que, depois de derramar lágrimas, é capaz de sorrir novamente.

– Hey, hey, hey. Ruivinha acabada. – Eu respondi, abrindo um sorriso.

– Caiu da cama? Tá fazendo o que acordado? – Ela me perguntou enquanto passava pra cozinha.

– Indo encontrar uma pessoa. – Eu respondi enquanto a seguia.

– Uhn, então senta ai. Bora tomar um café.

O meu café, ele é ótimo. Mas nenhum café se compara com o da minha mãe. Não sei qual é a mágica.

– Diz ai, o que te deu pra sair de casa todos os dias agora? – Ela disse enquanto enchia minha caneca verde.

Manteiga.

Pão.

– Bem, nada de especial. É só que matemática cansou um pouco. – Eu falei mordiscando o meu pão.

– Nem me fale em matemática. Quer dizer, agora eu não gosto, mas quando eu tava no colégio, garoto, a mamãe aqui mandava super bem. – Disse a cabeleira ruiva, enquanto enchia a boca com um pedaço de bolo.

Eu sentia falta disso. Dessas manhãs animadas com a minha mãe. Agora já não sinto mais. Agora já não sinto mais.

Tomei um banho frio, refrescante. Coloquei a roupa mais leve que eu podia encontrar, já que era um domingo verde.

– Não sei que hora eu volto, mas não vai ser tarde. – Eu falei quando estava na porta.

– ‘Cê vai se divertir? – Ela perguntou pra mim, enquanto eu colocava meus tênis.

Eu a encarei. “Eu vou?” pensei comigo mesmo. Lembrei da bandeira suja.

– Eu vou! – Respondi enquanto me levantava.

– Então não se importa com a hora. Você tem a chave. – Ela respondeu enquanto ia se sentar no sofá.

Minha mãe é minha mãe. Só consigo defini-la assim.

Domingo de manhã. Cara, impressionante. Muito impressionante. Onde estão todos os “tucks” na melhor parte do dia? Até hoje eu não faço ideia.

Após algum tempo andando cheguei ao mercado-padaria.

– Anne? – Eu perguntei, enquanto me aproximava.

– E ai, desenho? Tudo sussa? – Ela me perguntou.

Bem, pra quem eu conheci sentada numa escada, completamente encharcada enquanto tomava um café, ela estava diferente.

“Onde tá o coque? Cadê a blusa estilo blusa-azul-daquele-sábado?” Eu pensei.

Ela estava diferente. Roupas leves. Roupas coloridas. Uma mochila.

– Você é hippie? – Ah, eu sou um idiota. Deus, porque eu sou tão direto?

Ela riu.

– Bem, não costumo usar títulos, mas pode-se dizer que sim. – Anne disse enquanto colocava a mochila nas costas.

– Aonde a gente vai? – Perguntei.

– “Mas não precisamos saber pra onde vamos. Nós só precisamos ir.” – Ela disse.

Eu olhei com cara de paisagem – verde – para ela.

– Por Danú, você não conhece nada de música né? – Ela perguntou. – Isso é Engenheiros. Você vai gostar.

Começamos a andar. Nossos “tum-tum” eram sincronizados. Não lado a lado. Ela andava na minha frente.

Cabelos presos num rabo de cavalo. Não ficava tão bem quanto o coque, mas ficava bem.

Voltamos à bandeira dos vaga-lumes.

Anne se sentou. Tirou da bolsa um Discman.

– Senta ai, Johan. – Ela disse enquanto plugava um fone ao aparelho.

– Tá. – Eu respondi.

– Antes de tudo, vamos conversar! Cê é muito caladão. Conta ai, do que você gosta? – Ela perguntou.

“Do que eu gosto?” Eu me perguntei.

– De café. – Respondi.

– É, bom começo. E o que mais? – Anne retornou a perguntar.

– Uhn, talvez de... Chocolate. – Eu falei, dando um sorriso.

Verdade, eu gosto de chocolate. Talvez não tanto quanto café.

Ela riu.

– Bem, descobrimos que você gosta de comida. – Ela disse sorrindo. - Tá, algum livro que você goste?

– Sim, alguns. – Eu respondi olhando ao redor. Cara, era muito verde.

– Legal, que estilo?

– Ficção e... –Hesitei um pouco para responder, não sei porque.

– E? – Ela perguntou.

– Romance...

– Romance? Pensei que você era um cara do estilo quadrinhos ou sei lá, mecânica quântica. – Ela falou.

– Eu amo odiar matemática. – Eu disse automaticamente.

Ela me encarou de um jeito curioso. Pouco tempo depois eu percebi que ela fazia isso quando achava algo interessante.

– Ama odiar matemática, hum? Legal. – Ela respondeu.

Anne então abriu mais uma vez a bolsa dela. Tirou um pequeno caderno e uma caneta extravagantemente rosa.

– Rosa? – Eu perguntei.

– Rosa. E xiu. –Ela disse.

– Rosa? Eu pensei que você fosse uma garota do tipo pedras místicas ou sei lá, cultos celtas. – Eu disse debochando.

Ela me deu um soco no braço. Eu me lembro bem.

– Tá, vamos começar. Coloca o fone e diz todas as músicas que você curtir.

O tempo passava.

“Gostei.
Odiei.
Deus, quem ouve isso?
Gostei.
Deus, todos precisam conhecer essa música!
Odiei.
Como eu nunca ouvi isso antes?”

O tempo passou. Mas como chegamos cedo ainda havia muito tempo pela frente. Acabou logo o CD no qual estavam as músicas.

– Tá com fome Sr. “amo odiar matemática” ? – Anne me perguntou enquanto se levantava para espreguiçar-se.

– Um pouquinho Srta. “Caneta exageradamente rosa”. – Eu respondi, também me levantando.

– Eu sempre penso em tudo. Então, não vai ser hoje que morreremos de fome, marujo. – Ela falou tentando imitar um pirata. Terrível. Terrível, mas eu gostava.

Ela tirou da bolsa um saco de salgadinho.

– Hoje você vai conhecer o isopor mais viciante da sua vida. – Ela disse sentando-se mais uma vez.

Sentei-me na frente dela.

– Toma. – Ela disse me entregando uma folha.

– Que é isso? – Eu perguntei.

– “Isso” é a salvação da sua vida. É uma lista com todas as músicas que você gostou. Arranja um jeito de ouvir elas. – Anne disse enquanto abria o salgadinho.

– Mas o que?! – Eu disse caindo pra trás.

– Hein? – Anne perguntou enquanto me olhava confusa.

– Isso FEDE! – Eu disse, me afastando aos poucos.

Anne sorriu.

– Fede, mas é uma DELÍCIA! Prova, agora. – Ela disse, me seguindo.

– Nunca. Talvez meu sistema digestivo seja corroído por essa coisa fétida! – Eu disse me arrastando mais para trás.

– Ui ui ui Sr. “Português mais do que perfeito”. Come logo e para de frescura.

Talvez se eu não tivesse me arriscado a comer aquela coisa fétida – mas deliciosa – eu nunca teria descoberto o melhor salgadinho da minha vida.

– Isso é fétidamente delicioso! – Eu falei.

– Eu nunca erro. – Anne disse enquanto se reencostava ao mastro da bandeira.

Ela nunca erra. Nunca. Erra. Estava completamente errada sobre isso.

– Então, o que você faz pra passar o tempo? – Eu perguntei pra ela.

– Nossa, depende muito do dia. – Ela respondeu. – Mas pra simplificar eu vou falar minhas coisas favoritas. Eu gosto de ouvir música, escrever na parede, ler, procurar tesouros, sair de noite e ficar olhando o céu. Gosto de café, gosto de escrever, gosto de jogar, gosto de piadas, gosto de rir, gosto de chorar e gosto de vir pra cá. – Ela respondeu.

Nós éramos tão complicados. Nós éramos tão diferentes. Mas, acima de tudo, nós éramos.

– Procurar tesouros? – Eu perguntei.

– É! Quer vir comigo qualquer dia desses? – Anne me perguntou.

– Claro. – Eu falei.

Tirei meu celular do bolso.

– Passa o teu número pra mim.

Ela – Anne – se levantou e espreguiçou-se.

– Não. – Ela disse.

– Oi? – Eu perguntei, só pra conferir.

– Não. – Ela disse sorrindo.

– Por quê? – Eu perguntei.

– Não tenho celular. Odeio esses aparelhinhos pequenos e irritantes nos quais mostram sua localização exata. Eles sempre vão te atrapalhar. – Ela disse, como se o celular fosse algum tipo de caixa de pandora.

– Erm, você não tem? – Argh. Eu me lembro bem. De tudo o que ela falou, o que eu mais prestei atenção foi em ela não ter um celular?

– É. – Ela respondeu.

Já deviam ser umas três da tarde. O tempo é irritante.

– Só os grandes amam a monotonia.

Ela disse. Estava sentada olhando para a bandeira. Ela era – é – tão misteriosa. Nunca vou conseguir entender Anne. O jeito livre, o jeito diferente dela de ser feliz.

– Clarice Lispector. – Ela disse.

– Eu descobri de uma coisa. – Falei.

– O que? – Anne me perguntou.

– Eu gosto dos poemas que você conhece. – Respondi.

Anne me olhou daquele jeito curioso.

– Me dá a folha das músicas. – Ela me disse.

Entreguei. Ela apoiou a folha no caderno genérico dela e retirou a caneta extravagantemente rosa.

– Que tá fazendo? – Perguntei enquanto chegava mais perto pra espiar.

– Coloquei alguns poetas que você pode gostar. –Ela respondeu.

“Charles Bukowski, Clarice Lispector, Guimarães Rosa, Fernando Pessoa e Mario Quintana.”

– “e um vaga-lume
lanterneiro que riscou
um psiu de luz”

Eu recitei. Ela sorriu. Ah, que sorriso.

– Muito bom. De quem é? Você consegue se lembrar? – Ela perguntou.

– Guimarães Rosa. – Eu respondi.

Silêncio. Verde. Tempo.

– Você prefere gatos ou cachorros? – Minha voz havia quebrado o silêncio que reinava na bandeira.

– Nem um dos dois. Prefiro patos. – Anne respondeu.

– Patos? Mesmo? – Eu odeio patos. Deve ser porque quando eu era menor eu fui perseguido por um ganso ou algo assim. Sim, um ganso me traumatizou.

– Mesmo. São fofos e eu amo o “quack!” deles! Dá vontade de mastigar. – Ela disse enquanto caçava algo na mochila.

– Mastigar? Que crueldade. – Eu falei.

– Mas mastigar no bom sentido da coisa. – Ela disse tirando o Discman.

– Tem um bom sentido nisso? – Perguntei.

– Deve ter. Coloca o fone. – Ela falou.

Outro CD. Cara, esse CD combinou perfeitamente com o momento. Eu me lembro bem.

O tempo voou.

– Cansei Sr. “Odeio o salgadinho que nunca comi”, vou pra casa. – Ela disse.

– Casa? Aquela que fica num lugar por ai? – Eu perguntei.

– Essa mesmo. Vem. – Ela falou, me puxando de volta pra qualquer lugar.

Andamos um pouco com os nossos “tum-tum” e voltamos até a escada do mercado-padaria.

– Amanhã. Aqui. De tarde. – Ela falou, e começou a andar para longe.

Não se despediu. Rude.

Voltei pra casa, deviam ser umas seis da tarde. Deuses, passávamos muito tempo juntos.

– Hey, hey, hey. Cheguei! – Eu falei assim que pisei dentro de casa.

– Hey, hey, hey. Okay! – Minha mãe gritou da cozinha. – Chegou na hora certa, vem aqui me ajudar.

Fui para a cozinha. Mas que dia verde foi aquele.

– Mas o que? – Eu falei assim que entrei na cozinha.

– Para de ser espantalho e vem me ajudar. – Ela falou enquanto tentava arrastar um fogão.

Arrastamos junto um fogão consideravelmente grande e pesado.

– Pra que mudar de lugar? – Eu perguntei assim que colocamos ele num canto. Pra minha sorte, minha mãe se contenta fácil com as escolhas dela.

– Perfeito. Agora a cozinha tá mais elegante. Tá mais com cara de “A cozinha”, né? – Ela me perguntou enquanto ia pra sala.

– Bem, admito que tá mais legalzinho. – Falei acompanhando aquela cabeleira vermelha.

Sentamos juntos no sofá.

– Que ‘cê fez hoje? – Ela me perguntou.

– Um monte de coisas que eu nunca fiz. – Respondi.

– Muito bom. Espero que continue fazendo. A não ser que envolva drogas, daí eu te arrebento. – Ela disse enquanto mudava a TV de canal.

– Não, não tem drogas. – Eu respondi.

Tinha drogas sim. Anne era minha droga.

Tomei um rápido banho e me joguei na cama. Pesquisei todas as músicas que Anne havia me passado. Cara, como eu gostei daquelas músicas. Lembro muito bem de ter dormido ao som de “Infinita Highway”.

Fechar os olhos.

Leve.

“Infinita Highway”

Sonhos.

Vaga-lumes.

Leve-me.

“... um psiu de luz”.


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Notas finais do capítulo

Teoricamente a história já está no rumo certo! Logo vem mais. Comentem o que acham que pode acontecer, o que gostaram no capítulo e algumas dicas, se quiserem! Obrigado por ler.



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