Café com um pouco de amor, por favor. escrita por Forsaken Boy


Capítulo 2
Tecks, tucks e tuns.


Notas iniciais do capítulo

Espero que gostem - ou odeiem - o jeito da Anne. Bem, tá ai, boa leitura.



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Experiências. Pra mim são elas que nos constroem; que nos moldam.

No caso, ela – Anne – foi a minha experiência. Foi ela quem me moldou.

O cinza já não aparentava estar tão cinza. O vapor do café subia diante dos meus olhos. O pequeno copo mantinha o café aquecido.

– Idade? – Ela perguntou enquanto dava o último gole no café.

– 16. – Eu respondi, dando um pequeno gole no meu.

Ela então se levanta e começa a andar. Eu deveria parar de ser curioso, não sei bem se é uma dádiva ou uma maldição. Eu fui atrás.

Eu observava as costas dela. Anne não era – ainda não é – muito alta.

A blusa azul que descia até o quadril. Ela estava muito encharcada.

– Pra onde você tá indo? – Eu perguntei. Dei mais uma golada no meu café.

Ela continuou andando. Os riscos – pingos – voltaram a desenhar no céu, e dessa vez estavam irritados.

Corremos pra nos proteger da chuva.

Ela estava respirando pesado. Eu conseguia ver o ar saindo, quente, da boca dela.

Mais um gole no café, e, enfim, fim.

– Você mora aqui há quanto tempo? – Ela me perguntou, sentando-se no banco do ponto de ônibus.

Nenhum sinal de carros. Agora eu não estava mais sozinho naquele mundo cinza. Eu estava acompanhado. Não era a melhor das companhias, tenho que admitir, mas era melhor que nada.

– Desde que eu nasci. – Eu podia ver o meu próprio ar também. Não era desconfortável, não o ar quente. O frio que congelava o meu rosto talvez fosse. Talvez.

“Risca, risca, risca, risca, risca, risca”... Era o que os pingos de chuva diziam, ou gritavam, ao atingirem o chão. Nada de “pinga”, ou “ping”, ou até “tick”. Era “risca”.

– A chuva é tão legal né? – Disse Anne olhando para frente. Os olhos encaravam o nada. A mente devia estar viajando, eu pensei.

– Sim, eu acho. Gosto muito da chuva, mas só quando eu estou dentro de casa, pronto pra dormir. – Eu respondi, tentando encarar o mesmo nada que ela.

O banco ficou molhado no lugar onde ela estava sentada, eu me lembro bem disso.

A água escorria dela. Ele deveria estar congelando de frio naquele sábado.

– Pode ser, eu também gosto mais dela desse jeito. – Anne respondeu.

Silêncio. Nada acontecendo. Só os riscos riscando o céu.

Encarei-a mais uma vez, me lembro bem. Ela estava olhando para o nada outra vez.

O coque já sumira, deve ter caído enquanto corríamos para o ponto. Os cabelos negros todos jogados – e ensopados – caindo pelos ombros. Olhos negros como o céu de uma noite sem lua.

Eu lembro. Perdi a noção do tempo encarando aqueles olhos. A chuva talvez já devesse ter parado de riscar quando ela me disse aquilo.

– Seus olhos são bonitos. – Ela falou me tirando do transe.

– Hein? – Eu perguntei. Era meio impossível ver os meus olhos. Os óculos tampavam a visão. Estavam suados e borrados. As coisas eram borrões para mim. Não percebi os óculos incapazes de ver. Eu tinha realmente me perdido em pensamentos.

Anne se aproximou de mim, eu me lembro. Com um gesto meigo ela retirou os meus óculos, pegando na parte remendada.

– São olhos grandes, combinam com você. E são castanho-escuros. Gosto de olhos dessa cor. – Ela disse enquanto tentava secar as lentes do óculos na blusa azul dela, na qual também estava encharcada.

Como foi o primeiro encontro de vocês? Aliás, vocês já tiveram um primeiro encontro?

Bem, pelo o que os filmes nos passam, os encontros são sempre em restaurantes ou em algum lugar socialmente aceito. Comemos coisas boas e gostosas com as pessoas na qual estamos interessados e no final – de acordo com os filmes – nós beijamos essa pessoa e tudo acaba bem.

O meu primeiro encontro foi num sábado chuvoso. A melhor coisa que eu tomei foi um café e ambos pagamos nossos próprios copinhos. E depois de correr de uma chuva forte, ficamos conversando debaixo de um ponto de ônibus. E eu nem sabia que estava interessado nessa garota. Esse foi o meu primeiro encontro. Eu me lembro.

– Você vem sempre nesse mercado-padaria? – Ela me perguntou enquanto devolvia-me os óculos, agora menos embaçados. Ela fizera uma tentativa falha de secá-los na blusa azul encharcada.

– Minha casa fica perto, então sim. – Eu respondi.

– A pergunta era de sim ou não, mas obrigado por me dar informação a mais e de graça. – Anne disse enquanto se sentava novamente no banco de ônibus.

Rude e esquisita.

– Você mora onde? – Eu perguntei.

– Numa casa. Em algum lugar. – Ela respondeu.

Engraçado, eu nunca – quase nunca – fiquei bravo com ela. Não importavam as respostas rudes e estranhas. Eu não conseguia.

– Com mais alguém, eu suponho. – Retruquei entrando no jogo dela.

– Supôs certo. – Ela respondeu.

O silêncio voltou novamente. Tá aí uma das coisas que eu odeio. Silêncio. Pra mim o silêncio é insegurança. O silêncio diz tudo. O silêncio grita o barulho da falta de um assunto – da falta de intimidade – entre duas pessoas.

– Talvez eu te veja quando vir tomar mais um café. – Ela falou.

Um ônibus fantasma. É o que eu acho que era. Ele surgiu do meio da neblina e então Anne entrou nele. Ela sumiu. Sumiu e me deixou ali. Ela era – é – estranha.

Voltei pra casa assim que a chuva parou.

– Cheguei! – Eu gritei assim que entrei em casa.

– Se perdeu no caminho pro mercado? Foi pelo caminho da floresta e encontrou o lobo mau é? – A minha mãe disse, enquanto assistia a TV.

De certo modo ela havia acertado. Eu havia encontrado o lobo mau.

– Desculpa, só algumas distrações. – Eu respondi.

– Deixa as sacolas ai e vai tomar um banho quente. Se você pegar um resfriado só vai ter mais motivos pra ficar na cama. – Minha mãe me disse enquanto se levantava pra pegar as sacolas.

Gosto de banhos quentes. Não muito longos, mas bem quentes. Mas naquele sábado foi – tudo foi – diferente.

Um banho quente e longo no qual me fez pensar. Lembro ter ficado recordando incessantemente a frase dela.

“Tá, é estranho. Mas é divertido, então, foda-se.”

A voz ecoava dentro da minha cabeça. Por quê? Até hoje eu não sei.

Ao sair do banho fui direto para o meu quarto. O único som que eu conseguia ouvir era o dos riscos batendo na janela do meu quarto.

Fechar os olhos.

Leve.

Meu sonho.

Leve-me.

Acordar.

Levantar-se.

Nenhuma vontade. Aquele domingo foi esquisito. O dia todo. Mais cinza que o sábado. Mais café. Muito mais café.

Não faço ideia do porque eu tinha tanta esperança, mas voltei todos os dias, de domingo até sexta, lá no mercadinho. Procurando ela, Anne.
Esperava algum sinal, algum sinal. Sentava-me na escada e tomava um gole do pequeno café de 50cents.

Tudo isso pra que no final – de todos os dias – as luzes dos postes se acenderem e toda a cidade descansar. Tudo isso pra que no final ela não viesse.

Sábado. Eu me lembro muito bem desse sábado.

Escreve.

Um gole.

Calcula.

Outro gole.

Apaga tudo.

– Desisto! DESISTO! Amo odiar a matemática! – Eu gritei do meu quarto. O dia não era cinza, era um dia muito bonito até. O sol deixava as coisas calmas e alaranjadas.

Saí de casa.

Andei. Naquele sábado meus passos não faziam mais “teck” como no anterior. Era um barulho de passada completamente diferente. Era um barulho mais alegre e seco. “Tuck” talvez. Disso eu não me recordo muito.
Uma coisa que eu me lembro muito bem é que não era um “tuck” solitário. Era uma sinfonia de “tucks”. Atravessando a rua, andando na calçada, correndo para pegar o ônibus. Uma orquestra de “tucks”.

Cheguei ao mercado-padaria. Minha esperança, naquele dia, era de encontrá-la sentada no degrau onde eu a conheci. A minha esperança era de vê-la mais uma vez tomando café.

Mas eu não a vi. Ela não estava ali. Vários “tucks” entravam e saiam do mercado. “Tucks” incessantes. “Tucks” irritantes. “Tucks” que não eram tão legais e, de algum jeito, nostálgicos quanto os “tecks” do sábado anterior.

– Um cafezinho, por favor. – Eu pedi para o balconista. Ele meio que já estava acostumado comigo a pedir café, já que havia passado a semana toda indo lá e dando 50cents para ele.

Sentei-me na escada onde ela – Anne – estava sentada no sábado passado.

Silêncio.

Tuck.

Barulho.

Tuck.

Um gole.

Tuck.

O alaranjado desse sábado não trouxe o que o acinzentado do outro sábado havia trazido. Não até àquela hora

Os “tucks” diminuíram consideravelmente. As luzes foram se acendendo.

– De segunda a segunda você vai me procurar? – Uma voz inesquecível disse num tom irreverente.

Eu me lembro. Eu estava encarando o céu escurecendo. Imerso em pensamentos como “matemática”, “café” e “queria ser ruivo”.

Encarei Anne.

Um sorriso foi o que ela me deu.

Um sorriso mais “teck” do que “tuck”. Um sorriso mais cinza do que laranja. Um sorriso mais molhado do que seco. Um sorriso mais gelado do que confortável. Um sorriso mais lindo do que qualquer outro que eu já havia visto.

– Não estava te procurando. Só gosto muito do café daqui. – Eu menti. Argh, eu sou um idiota. Diga-me uma pessoa que acreditaria nisso.

– Claro que gosta. – Ela respondeu enquanto estendia a mão para mim.

Eu podia ter levantado e ido embora. Eu podia ter negado a ajuda. Eu podia, quem sabe, não ter procurado ela desde o inicio. Quem sabe?

Eu aceitei a ajuda. Eu levantei e a segui. Os cabelos presos num coque no topo da cabeça. Uma blusa do mesmo estilo da azul encharcada, só que dessa vez era vermelho. Uma calça de moletom completamente amassada e crocs. Deus, quem usa crocs? Ela usava – usa – crocs. Mas, acreditem, ficava bem nela.

Fomos pro meio de um parque. Não havia muitos “tucks” por lá, apenas nós dois e alguns vaga-lumes.

Um círculo, um tanto quanto afastado da área “civilizada” do parque. Um mastro e uma bandeira. Estava sujo. Havia bastante ferrugem no mastro e a bandeira parecia que não fora lavada há anos. Mais vaga-lumes.

Anne sentou-se e se encostou no mastro. Eu me lembro. Ela parecia amar aquele lugar como se fosse um templo pra ela. Como se lá ela pudesse pensar, como se lá ela pudesse ficar viva.

– Senta ai. – Ela havia me dito. Um sorriso ela me deu. Ah, que sorriso. – Seus óculos estão tortos. Você parece um desenho desse jeito.

Como eu queria voltar naquele momento. Cada palavra que saia da boca dela, cada gesto, mesmo que quase nulo, era como se fosse incrivelmente majestoso. Ah, eu sou um idiota.

Ajeitei os meus óculos e sentei-me com ela.

– Que tipo de música você escuta? – Ela me perguntou enquanto olhava para cima, talvez encarando a bandeira. Disso eu não me lembro bem.

– Não tenho tempo pra ouvir música. – Eu respondi. É, eu realmente não tinha tempo pra música, nem pra sair, nem pra conversar, muito menos pra viver.

– Você é um cadáver. Um zumbi que perambula pelo mundo dos vivos. – Ela me disse enquanto socava o meu braço esquerdo. Eu me lembro disso.

Verdade, eu era só mais um “tuck” ali. Eu era.

– Não sei, música também não me atrai muito. Não sei bem dizer o porque. – Eu retruquei, enquanto tentava revidar alguns socos.

Silêncio.

– Então o que você faz pra passar o tempo? – Ela me perguntou. Estávamos fazendo luta de dedões. A mão dela era – é – tão pequena. A minha não é colossal. Não sou um garoto de estatura alta. Tenho apenas meus queridos 1,70 de altura. Mesmo assim a mão dela é muito pequena.

– Bem, eu estudo. – Respondi passando o meu dedão por cima do dela.

– Estuda? – Ela disse, desviando o dedão dela de um K.O quase certeiro.

– É. – Eu disse repetindo o golpe.

– Você só estuda? – Ela perguntou enquanto escapava de outro K.O.

– É... – Eu respondi.

Naquele momento eu havia pensado algo como “Porra... eu só estudo e é isso?” e foi então que aquele pequeno dedo de hobbit prendeu o meu dedão.

– Ganhei, seu manézão. – Ela disse enquanto se reencostava no mastro da bandeira.

Silêncio. Alguns tons de verde apareciam e desapareciam um pouco ao longe.

– Entendi. Então... – Anne disse enquanto se levantava bruscamente.

Ah, aquele momento. Aquele eu lembro sem falta.

Foi então que ela deu alguns passos para longe da bandeira. Adentrou o pequeno oceano de luzesinhas que apareciam e desapareciam. Seus cabelos se soltaram do coque e mais uma vez se esparramaram feito um mar de céu noturno pelos ombros dela. Um sorriso.

– E um vaga-lume
lanterneiro que piscou
um psiu de luz

Foi o que ela me disse. E todos os pequenos bichinhos brilhantes correram – voaram – enquanto piscavam incessantemente em outro canto do parque.

Aquele momento eu me lembro muito bem, como se fosse uma fotografia na minha memória. O tom fraco de um verde-amarelado piscando perto do rosto de Anne que sorria como se aquela fosse a primeira vez que ela via vaga-lumes. Aquele momento eu me lembro muito bem.

– Guimarães Rosa. – Ela disse. - Eu vou te ensinar. – Ela me disse sentando-se novamente perto da bandeira.

– Ensinar? – Eu perguntei.

– Eu vou ensinar você a se divertir. – Ela respondeu.

E, nem com um “tuck” ou um “teck, mas sim com um “tum-tum”, ela me carregou para fora daquele parque.

Mal sabia que, no momento em que brindei um café na chuva, eu já não era mais a mesma pessoa.


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Notas finais do capítulo

Tentei mostrar um pouco da relação superficial entre as personagens. Acho que tudo vai começar de verdade lá no cap. 3.



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