Lucila escrita por Nucha Rangel Braga


Capítulo 4
IV – Medo. Do quê?




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OS DOIS o olharam espantados! Ir lá ao matagal? Nos espinheiros? Sergio só podia estar...

– Doido! Você endoidou agora, foi? – reclamou Rubem, quase gritando.

– Lá nem tem como andar, cara. – completou Ricky. – É mata alta, espinho para todo lado. Nem passarinho entra ali! Mesmo porque nem tem o que bicho comer.

Sergio os ouvia, quieto. Mas os olhos estavam agoniados! E ele só olhava em direção ao mato. Os encarou:

– Eu tenho medo, também! – a voz nervosa: - Mas tem; tem alguém, alguma coisa lá!

– Certo! – disse Ricky. – Mas que tenha? E se for um bicho morto? Aí, a gente vai ter se arriscado por causa dum bicho morto, o quê que vai adiantar?

– Por que Viking ficaria tão agitado, se fosse alguma coisa morta? – perguntou Sergio. E na hora, eles ouviram o rottweiller rosnando e suas pancadas na grade. O cachorro parecia sentir que falavam dele. Parecia avisar.

Ricky pôs as mãos nos ombros de Sergio:

– Olhe, me desculpe; mas desta vez a gente não vai se envolver, tá bem?

– Mas...

– Avisamos polícia ou bombeiros e eles entram lá. Pronto, tudo resolvido, se for um animal ou outro problema, eles prestam socorro. Mas A GENTE, não. Ok?

Sergio ia insistir. Ricky nem deixou:

– Não. E acabou-se.

– Mas... A gente não pode chamar a polícia.

– Por quê? – perguntou Rubem.

– Tudo o que envolve a gente vira notícia de tudo quanto é jornal. Se a gente chamar a polícia e for mesmo alguém morto lá no mato, amanhã mesmo vai aparecer em todo lugar.

– Ele tem razão. – disse Rubem para Ricky, que continuava apreensivo.

– O McGillins mata a gente, isso sim. – Sergio aproveitou, para ver se os convencia. Eles confiavam no produtor. Mas adolescentes agravam sempre as circunstâncias, nada é tão simples... Nenhum deles tinha coragem de ligar para ele. Ainda. Porque ele poderia reclamar do tal mau cheiro, ou do cachorro agitado, ou de...

– Tudo bem. Vamos entrar para parar de inalar esse fedor. Lá dentro a gente pensa, pode ser? – perguntou Ricky para Sérgio.

Que continuava angustiado. E os outros dois já começavam a ficar com pena.

Fecharam a janela e foram para o quarto de Sergio. E conversavam em voz baixa, para não chamar a atenção dos dois mais novos. Eles já estavam até meio assustados com os cachorros, imagine com alguma outra coisa estranha.

– No que você está pensando? – perguntou Rubem a Sergio que estava quieto, custando a falar.

– Diga o que é que você está sentindo, - disse Ricky – senão a gente não pode ajudar você.

– Er... Eu tou apavorado!

Os dois ficaram surpresos; o amigo era sempre brincalhão, valente como qualquer menino da idade deles. E sabemos, não é leitor, que um menino virando rapaz, prefere se arriscar a dizer com todas as letras que está com medo de alguma coisa! E ali, um achava que o outro não estava com medo de nada. Mas os três estavam apavorados, sentados ali no chão do quarto. A sensação era a de criança-com-medo-do-embaixo-da-cama. De verdade!

– Medo de quê? – perguntou Rubem.

Ricky quieto, controlando a respiração, ouvindo os dois. Sergio baixou os olhos:

– Eu não tenho certeza do que é. Mas só consigo pensar que o aconteceu ontem é o que está lá atrás no mato! E eu não sossego!! – voz de choro, espalmou as pernas. – Eu sei que é algo vivo, lá! E se eu não fizer nada...!

Não terminou a frase. Prendeu o ar. O rostinho avermelhando, o longo cabelo todo desalinhado. Ele queria FAZER ALGUMA COISA! Mas nesta idade, às vezes a vontade verdadeira não é dita tão facilmente e esse “entupir” a voz sempre dói. Silenciou-se, doendo. Furioso com aquele choro entalado!

– Tudo bem. – Disse Ricky. – O que você quer é ir até lá, porque acha que pode ajudar em alguma coisa.

Rubem olhava para cada um, por vez. Apenas ouvia. Tanto medo quanto eles. Ricky tenso, achava sempre que, por ser o mais velho, precisava manter o controle. Mas é que há momentos em que manter o controle é não ser normal. E ali, três garotos escondidos num quarto, assustados com o que ainda não sabiam e longe dos pais...? Sem poder (ou achar que não podiam) dizer nada aos adultos, o ar pesava!

Não era normal. Desde aquele ontem que não estava normal. Sergio ouvia olhando para o chão.

– Então a gente vai lá e vê o que é. Rubem não precisa ir, se não quiser. Agora; a gente vai, olha o que é e volta! E pede ajuda, se precisar. Topam?

– Ele vai de todo jeito, você sabe... – respondeu Rubem. – Eu não vou ficar aqui, olhando vocês entrarem lá sozinhos. Vou também.

– São cinco horas. Se vamos hoje, tem que ser logo, antes que escureça.

– Podemos pegar o carrinho do jardineiro e lanternas na garagem. Os dois pequenos não podem ver a gente indo, senão vão querer ir também.

– Eu falo com eles. – respondeu Sergio, respirando. Olhos molhados. – Bom, se... Se for alguma coisa que morreu no mato, melhor levar pá, também. Assim a gente já enterra.

– Tá bem. Eu vou descer na frente, passo na cozinha e invento alguma desculpa para D. Nena. Você chama os meninos pela linha daqui lá para a da sala, fala com eles e descem os três. Rubem, você vai para a garagem.

– Ok.

E pronto, lá se foram.

Ricky deu um jeito de dizer a D. Nena que ele e os outros dois iriam sair para visitar Dra. Olívia, a pediatra. Coitada da copeirinha, preocupou-se achando que algum deles não estava bem! Mas o rapaz inventou um “esquecer o livro de não-sei-que” na casa da médica e para não ir sozinho, vão os três. Não leva os pequenos porque não saberia que horas voltariam, e outros blá-blá-blás.

Quase se puniu por mentir tanto para D. Nena, mas ela não os deixaria sair se falasse a verdade. Se bem que ela é sempre melhor.

Ele e Sergio saíram pela porta da frente, cuidando de que D. Nena não os percebesse fazendo o retorno pela casa. Perto da garagem, Rubem já estava no carrinho de jardinagem (daqueles motorizados, que se usa em terrenos jardinados muito amplos, para levar material pesado de trabalho), carregado de ferramentas.

– Eu trouxe botas e luvas; só não sei se vão servir na gente. Tem pá e lona aí dentro. – disse o menino, apontando para o interior do carrinho, enquanto os outros embarcavam. Seguiram para a parte de trás da casa, pelo oitão que acessava após a piscina; ali, havia uma rede de proteção.

Como era matagal muito alto e de difícil acesso, não havia cerca elétrica ali. Então os garotos ergueram um pouco a rede e Rubem estacionou o carrinho bem na passagem, mantendo-a erguida.

Escurecia. Olhavam o céu e a Lua estava perdida atrás de nuvens. O cheiro de podre estava mais fraco, mas ainda ofendia respirar. No viveiro, Viking se rendera ao cansaço: deitara no chão da casinha, brigando contra o sono. Hera já dormia. Nem o barulho do carrinho os agitava.

Mas apesar das luzes perto da piscina, estava escuro ali.

– Lembrou das lanternas? – perguntou Sergio.

– Tem duas grandes e uma pequena. Peguei um facão também.

– Para que? – assustou-se Ricky.

– Cortar o mato para andar, né? E os espinhos!

– Vamos falar baixo, senão vão perceber a gente aqui! – reclamou Sergio.

Calçadas botas e luvas e lanternas acesas, adentraram o mato.

Era repleto de galharia resseca, parecia que nada germinava ali. E sim, havia espinheiros por toda parte. A luz das lanternas não ajudava muito; leitor, quando você está em uma falta de energia e olha para fora de sua casa à noite, tudo parece acinzentar, concorda? Era assim que eles enxergavam. Além disso, os três ainda estavam apavorados! Medo que os fazia ver e ouvir o que não havia. Golpes de vista e medo dos próprios passos. Nenhum dizia nada a nenhum; a propósito, Rubem não comentou com os dois amigos... Mas o mau cheiro e o medo o maltrataram. Sentia-se enjoar, ficando gelado... Ou era o ar da noite, mesmo? Não sabia. De qualquer modo, ali não adiantava mais avisar.

Ele ia atrás dos outros dois. Sergio ia à frente, mais apressado. Cortava os espinheiros, com medo do facão.

– Alguém tá entendendo de onde vem o cheiro? – perguntou Ricky.

Sergio os chamou com o braço, para virem para a esquerda. Avançavam e sentiam que o terreno era uma colina e eles a subiam. O chão cheio de folhas secas não ajudava a caminhar: era como subir uma ladeira pisando em um chão cheio de pedaços de papel. O barulho das folhas quebrando enganava. As solas das botas às vezes escorregavam para a frente e...

– AUGH!! Tsc! – gritou Ricky.

– Que foi? – voltou Sergio.

– Raspei o braço num espinheiro... M&%d@! – esbravejou, olhando o arranhão. Estava de luvas, mas a camiseta não tinha mangas... Três cortes finos no braço.

E Rubem atrás, quieto. Sem os amigos notarem, cuspiu. Não estava bem. Mas teimava.

De repente, Sergio fez sinal para pararem.

– Ouviram? – perguntou.

– Hein?

– Barulho aí na frente, bem perto. E o cheiro tá pior.

Silenciaram. Primeiro, pareceu tudo quieto. Os olhos deles já doíam de forçar a visão. Aquele cheiro perturbava! Medo, dor de cabeça e nos olhos, impaciência:

– Não tou ouvindo nada...

– Shh!

Quietos de novo. Silêncio.

Silêncio.

Silên... Não!

Agora era mesmo um ruído!

– Ei, agora eu ouvi!

– Também!

Era um uivo, ou um gemido. Parecia alguém agonizando de dor. Depois parecia uma respiração. Forte, ressonante.

Sergio ia, mas Ricky o puxou pelo braço:

– Não senhor! A gente não vai lá!

– A gente TEM que ir! E se for alguém ferido?

Ricky não teve o que dizer. Medo. E o braço latejando. Sergio reagiu:

– Eu não vou abandonar. Está lá e precisa de ajuda! Eu vou entrar! – e, soltando o braço com um safanão, avançou em direção aos barulhos, rapidamente. Embrenhou-se no matagal. A luz da lanterna dele, afastada das outras, piorava o foco. Ricky irritou-se:

– Inferno...! Tá, tou indo! – e foi atrás do amigo. Mas não notou que Rubem vinha mais devagar. Este caminhava mais lento, pois já estava meio zonzo e suava frio. Cuspiu novamente, sabia que vomitaria a qualquer instante. Mas não vinha nada e o mal-estar piorava! Avançou lentamente, antes que ficasse muito atrás dos outros e a luz das lanternas se afastassem, deixando-o na escuridão. Nada de Lua no céu. Olhou para cima, respirou... Viu as árvores imensas e seus galhos secos. Também ouviu os gemidos e agora tinha ainda mais medo.

Naquela altura do matagal, os espinheiros pareciam fechar ainda mais. Agora havia mais troncos de árvores naquela parte alta da colina. Apesar disso, entrava vento ali, fazendo um som assobiante. Sergio seguia à frente, cortando os espinheiros com o facão. Às vezes, sentia os espinhos furarem a borracha das luvas, mas não se importava; o coração batendo forte de medo, queria ver logo o que estava ali, se era um pessoa, ou um animal, se era para socorrer... Ou enterrar.

Mas queria terminar aquilo de vez!

Ricky reclamava com ele:

– Sergio, pelamordedeus, espere!! – Só não queria que ele se machucasse. Mas era aquele senso de ser-o-mais-velho-e-ter-que-se-controlar. Às vezes detestava isso.

O espaço para andar entre as árvores parecia estreitar cada vez mais. Sergio gritou:

– Ouvi de novo! Tá perto!

O ressonar era forte; como se alguém inspirasse muito ar e depois soltasse, roncando a garganta. Gemia também, parecia dor. De repente, Sergio pisou forte e sentiu o chão afundar! Felizmente, largou o facão a tempo. Era um declive; mas as folhas no chão estavam... Úmidas? Ricky o alcançou, mas ele fez sinal para não avançar. E para fazer silêncio. Iluminou o chão com a lanterna; as folhas estavam empapadas de sangue!

– Meu Deus...

– Misericórdia...!

– Ugh...

O vento assoviava entre os galhos cheios de espinhos. Sergio olhou para cima e com a lanterna, apontou para as árvores. Viu as manchas vermelhas nos troncos, aquelas que viu da casa, àquela tarde. O cheiro de podre, na verdade, não era de podre. Era como um açougue sujo. Cheiro acre, fétido! De sangue.

Ele desceu o facho de luz da lanterna pelos troncos manchados, e os amigos fizeram a mesma coisa. Estarrecidos de medo, nem falavam! Ricky olhou em volta; algum animal por ali...?

Quando as lanternas iluminaram o chão à frente deles e perto dos troncos, pularam de susto!!

Nos espinheiros à frente, havia alguém. Dava para ver o cabelo longo e uma mão caída sobre os galhos. A pessoa estava imunda de sangue; notando as luzes, gemeu e moveu a mão. Mão de mulher, toda arranhada dos espinhos.

Rubem não aguentou mais; envergou o corpo e vomitou! O cheiro do lugar era de dar nojo! Ricky acudiu:

– Ei, cara. Devagar aí. Tá sentindo o que?

– Não sei. Saímos sem jantar e eu estou tenso. Passei mal com esse cheiro.

– Ricky! Vem cá, rápido! – gritou Sergio. Ele já estava do lado da pessoa ferida.

– Tu endoidou, p#rr@? Não sabe nem o que é isso aí!!

– Não tem perigo... Ela tá muito fraca, me ajuda aqui, corre!

As lanternas não ajudavam; as sombras das árvores impediam que vissem melhor. Ela estava cheirando terrivelmente mal, mas não estava morrendo. Os garotos se apavoraram com a quantidade de arranhões na pele dela, ela estava em cima de um espinheiro e agoniava-se, tentando se mover. Sempre que se mexia, os espinhos machucavam mais! Gemia, se retorcendo de dor!

– Ei... Calma. A gente vai tentar te tirar daqui. Pare de se mexer. – disse Sergio, procurando o ouvido dela, para falar perto. Percebeu o cabelo: todo melado de sangue, uns fios já estavam com sangue seco colando. O menino estava com medo e pena, chorava. Ricky notou:

– Mulher e albina! Meu Deus, a pele já não agüenta nada e neste estado... – percorria a pessoa com a lanterna, procurando algo grave e notou: - Ela está sem roupas? Por que a coitada tá nua?

– Será que alguém fez isso com ela? – perguntou Sergio.

– Como alguém entraria aqui? Melhor a gente tentar tirar a coitada daqui logo!

– Cadê o Rubem?

– Vomitou ali atrás...

Sergio olhou dali. O amigo, alto e magro, tinha o apelido de “gigante”. E gente assim sempre parece muito resistente, certo, leitor? O pobre rapaz, estava escorado em uma árvore, mãos apoiadas nos joelhos. Encarou os amigos.

– Ei, cara... Você tá verde. – disse Sergio.

– É...? – Rubem respirava, olhos fundos, rosto suado. – Então, tá.

– Não dá para pedir para ele ajudar; a gente vai ter que levantar ela daqui e carregar.

– Tá. – Ricky aproximou-se do rosto dela – Moça, olhe; a gente precisa que você se acalme, tá? Vamos tirar você daqui.

Não tinham certeza se ela ouvia. Agonizava de dor. Os olhos não abriam, sujos. Quando tentaram erguê-la, uma surpresa: ela PESAVA demais! E não era gorda, pelo contrário; o que dava para ver era uma moça magra e alta... Ricky olhou de novo com a lanterna:

– P*t@ que p9ri§!! Olha isso!

– O que?

Ele correu a luz da lanterna pelo corpo da jovem; ela era muito alta! Não um metro e oitenta, como Rubem. Mas bem mais de dois metros! E a pele estava totalmente arranhada. Era muito delicado removê-la. Para piorar, o cabelo, grosso como uma lã de carneiro e imundo de sangue, era muito longo, quase nos joelhos dela. E quando a moveram, os espinhos a machucaram de novo... Por falar em arranhões, as folhas no chão estavam muito ensanguentadas para ter sido sangue apenas deles.

– Melhor tentar mais devagar. Esse sangue no chão, será que ela tem mais algum machucado grave?

– Ela tá de barriga para cima. Pode ser nas costas, será? – Sergio achou um espaço na pele do braço dela sem arranhados e afastou para olhar as costas com a lanterna.

Até ali, ele ainda não havia berrado de medo.

Mas o susto foi grande demais.

O sangue nas folhas havia escorrido dum ferimento grave, sim. Um osso quebrado.

Um osso da falange se quebrara e rompera a membrana.

Da asa direita.


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