Brazilian Batman escrita por Goldfield


Capítulo 4
Capítulos 6 e 7




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Capítulo 6

Obtendo recursos.

Ele impeliu novamente os pés calçados de botas contra a parede rochosa da caverna, descendo mais um pouco segurando a corda. De pé na superfície, resmungando preocupado da borda da abertura, o fiel Alfredo apenas observava enquanto Bruno voltava a descer ao local onde tivera um dos maiores traumas de sua infância.

–         Cheguei ao fundo! – exclamou o jovem assim que saltou sobre o solo da gruta. – Vou ver o que há por aqui!

–         Tome cuidado, senhor! – recomendou o mordomo.

Vale fez sinal de positivo com a mão direita e, acendendo uma lanterna, prosseguiu por uma estreita passagem. Esgueirando-se por entre as pedras, tropeçando aqui e ali, logo atingiu um ambiente mais amplo, tendo certeza de que não estava sozinho naquelas profundezas. Sorrindo, Bruno iluminou ao redor, constatando ser a caverna imensa; boa parte da mansão caberia dentro dela. Só então os moradores se manifestaram: um grande número de morcegos, que aparentavam formar uma nuvem negra sob a luz pálida da lanterna, começaram a dançar ao redor do órfão como quando ele era criança, parecendo lhe desejar boas-vindas. O rapaz, tendo já vencido seus medos, deixou-se levar, e nunca se sentiu tão em casa quanto naquele momento.

Pouco depois, Alfredo também desceu até o subsolo, e ficou igualmente surpreso com a amplitude da câmara. Não estaria exagerando se afirmasse que era possível jogar futebol tranqüilamente naquele espaço. Caminhando pelas rochas, ele explicou, admirado:

–         No século XVIII, um antepassado de sua família, Bragato Vale, era responsável pela administração de parte do ouro extraído nas Minas Gerais. Como a tributação da Coroa Portuguesa era muito pesada, muitas pessoas ocultavam parte do outro que encontravam para não terem de entregá-lo às autoridades. Na época o Rio de Janeiro constituía o local onde os impostos eram embarcados rumo a Portugal, então esta caverna devia ser útil como esconderijo de última hora...

–         Meu tataravô já desafiava o sistema... – riu Bruno, ainda inspecionando o lugar com a lanterna. – Que irônico!

–         O que pretende fazer agora, senhor Vale?

–         Equipar esta caverna com o que for necessário. Ela será meu esconderijo e centro de operações, Alfredo.

–         Não seria mais apropriado, talvez... Uma cobertura em Copacabana ou no Leblon, patrão Bruno?

O milionário se limitou a sorrir em resposta.

Haroldo Dias saiu feliz do tribunal. Um pouco adiante de si, dois policiais levavam o traficante que tentava colocar na cadeia até um camburão, o qual o transportaria até o complexo penitenciário de Bangu. A decisão do juiz fora a que esperava, afinal. Um criminoso a mais fora de circulação, e um passo a menos rumo a Maranhão.

Mas subitamente, uma linda morena, empurrando alguns curiosos no caminho, saiu do meio da multidão que cercava o bandido e, após tirar duas fotos suas com sua máquina digital, tratou de indagar, tendo numa das mãos um gravador ligado:

–         Tem algo a dizer, senhor Ferreira? Teme que os comparsas de Maranhão tentem assassiná-lo na prisão? Qual sua ligação com o chefe do tráfico de drogas no Rio?

Era Vilma Vinhedo. O detento não ia responder, porém antes mesmo que tivesse chance se o desejasse, a repórter fotográfica foi puxada pelo braço por Haroldo, saindo da frente do réu condenado ao mesmo tempo em que outros jornalistas se aproximavam feito um bando de urubus. A jovem soltou-se do procurador e, endireitando a roupa, falou zangada:

–         Olhe o que fez! Por sua culpa perdi uma matéria!

–         Eu só estou tentando te proteger... – disse Dias discretamente.

–         Não preciso ser protegida, e você sabe muito bem disso!

–         Ouça: Maranhão subornou ou ameaçou de morte boa parte da cidade. Eu, por exemplo, devo ter neste exato instante uns três ou quatro assassinos em meu encalço. Portanto, não é preciso botar em risco mais vidas do que aquelas que já estão em jogo. Fique fora disso, Vilma, por favor. É um conselho de amigo. Uma ordem, se preferir.

A mulher abraçou o promotor, agradecendo a Deus por existir alguém que se preocupava tanto com sua pessoa. Ainda sem desvencilhar-se dele, ela perguntou, mais a si própria do que a Haroldo:

–         Aonde vamos parar desse jeito? A que ponto chegaremos?

–         Eu não sei, minha cara... Eu simplesmente não sei...

Alguns dias depois.

Era quase Natal. Bruno estava se preparando rapidamente para botar sua cruzada em prática. A caverna que adotara como novo lar já contava com um elevador ligando-a ao interior da mansão, passarelas de metal e iluminação esparsa através de lâmpadas de mercúrio. Ele não queria que o local fosse muito claro, afinal de contas. As trevas do refúgio combinavam com a escuridão na qual vivia.

Estando sentado diante de uma mesa, Vale, observado por Alfredo, trabalhava em alguns acessórios, armas e equipamentos, sendo que praticamente todos possuíam em alguma parte ou tinham o formato do emblema de um morcego. Intrigado, o mordomo se aproximou do patrão e inquiriu, apanhando um dos artefatos em mãos:

–         Por que morcegos, patrão Bruno?

–         Morcegos sempre me assustaram – replicou o rapaz. – Está na hora dos criminosos compartilharem esse medo comigo!

O empregado sorriu e em seguida colocou alguns papéis ao lado do órfão, dizendo:

–         Esses são os recibos das encomendas que o senhor fez. Devo salientar que foi muito astuto de sua parte comprar tudo com o pretexto de que os materiais serão usados na confecção de fantasias de carnaval.

–         Acho que os vendedores ficarão meio decepcionados quando descobrirem não haver nenhum “bloco dos morcegos” no próximo desfile!

Alfredo piscou para o milionário e saiu, deixando-o a trabalhar.

O frustrado compositor entrou em seu barraco numa das favelas mais pobres do Rio com o peso de uma tonelada em sua consciência. Refizera o samba-enredo para a Unidos do Polonês mais duas vezes, porém em ambas as tentativas ele fora novamente rejeitado. Não sabia como trazer dinheiro para casa, e ver a esposa grávida sofrendo de fome e falta de remédios deixava-o apenas mais rancoroso.

Tentando clarear um pouco os pensamentos, o pobre artista fechou-se em seu quarto, que era decorado das paredes ao teto com adesivos, pôsteres, pinturas e desenhos que remetiam ao carnaval. Presas por pregos ao concreto era possível ler marchinhas antigas escritas em pequenas tábuas, sem contar os bonecos numa estante representando personagens clássicos da tradicional festa como o Pierrô e a Colombina.

Veio-lhe então um repentino pensamento em mente. Era arriscado, mas ele teria de tentar. As vidas de sua mulher e de seu filho a nascer estavam em jogo, e ele não podia hesitar agora... Em situações extremas, não importava se uma ação salvadora era certa ou errada.

Após um reconhecimento mais detalhado, Alfredo e Bruno acabaram descobrindo que um comprido túnel rochoso ligava o interior da caverna até uma estrada de terra, que por sua vez seguia em direção a uma pouco movimentada avenida da Baixada Fluminense. O herdeiro dos Vale imediatamente pensou em algo mais ao saber disso, e era por esse motivo que o mordomo, naquela tarde, guiava uma caminhonete rebocando algo grande coberto por um pano até o coração do esconderijo.

Assim que parou o veículo, o empregado saiu e caminhou até o patrão que, intrigado, olhava fixamente para a encomenda ainda oculta pelo tecido plastificado. Perguntou a Alfredo num dado momento:

–         Então isso realmente existe?

–         Sim, patrão Bruno. Segundo o gentil Lúcio Raposo, esse protótipo foi desenvolvido há alguns anos quando as Indústrias Vale pensaram em se tornar a primeira equipe brasileira de Fórmula 1, mas a falta de patrocínio acabou engavetando o projeto. A máquina, todavia, permaneceu intacta. Com exceção de algumas sessões de testes, ela praticamente nunca foi pilotada.

Vale sorriu e removeu o pano. Seus olhos contemplaram um belíssimo carro de corrida possuindo formas arrojadas, perfeita aerodinâmica e mecanismos ultramodernos. Fora pintado inteiramente de preto, assim como o milionário desejava, e também incrementado com alguns equipamentos a mais. Maravilhado, Bruno tocou-o com a mão, ouvindo seu mordomo dizer:

–         Espero que não planeje sair para encontrar garotas com esse carro, senhor.

–         Não se preocupe, Alfredo... Este aqui não é para pegar garotas!

Com isso, tudo estava pronto.

Capítulo 7

A primeira noite.

Ele bateu à porta rústica do cortiço com grande receio. Um homem com uma camiseta enrolada ao redor da cabeça, estando apenas os olhos visíveis e o tronco nu, bermuda na cintura e chinelos de dedo nos pés, veio atender ao visitante com uma escopeta nas mãos. Falando com grosseria, ele perguntou ao estranho após examiná-lo rapidamente:

–         O que tu quer?

–         Preciso falar com o Tiozinho! – respondeu o recém-chegado, que era o compositor cujo trabalho fora vetado pelo diretor da Unidos do Polonês. – Ele está?

–         O que quer com ele? Fique sabendo que se tentar alguma gracinha teu miolo vira pó! – ameaçou o porteiro, engatilhando a espingarda.

–         Eu... Quero ajudá-lo num roubo!

De dentro da construção em péssimo estado, o criminoso mequetrefe conhecido como Tiozinho, dono de certa moral no morro, ouviu o que o artista disse no sofá velho em que estava sentado e tratou de correr até a entrada do cortiço, exclamando para o visitante:

–         Como ficou sabendo disso, truta?

–         Um sobrinho meu trabalha para você... E vim aqui auxiliá-los, em troca de algum dinheiro! Estou muito necessitado!

–         Dinheiro, hem? Bem, isso pode ser arranjado. Como pode facilitar pra gente?

–         Eu trabalhei na fábrica de laticínios da Tijuca que vocês querem roubar. Fui demitido de lá há meses, porém tenho o mapa do lugar memorizado na cabeça. Vocês vão precisar de um guia, e posso fazer isso.

–         E que garantia você me dá que não vai trair o Tiozinho, gente boa? – sorriu o meliante, exibindo os dentes podres.

–         Não sei... O que você quer?

O compositor notou o olhar malicioso que seu contratador lançou sobre a aliança de casamento em sua mão... Atordoado, o pobre desempregado pensou na exata coisa que Tiozinho exigiu:

–         Sua mulher! Se algo der errado, ela é nossa!

–         Mas, ela... – balbuciou o autor de sambas-enredo, recuando instintivamente. – Não, ela...

–         Ou você nos oferece ela como garantia, ou nada feito!

O desolado artista baixou a cabeça, sua mente raciocinando velozmente. Não tinha outra opção. Era pegar ou largar, mesmo botando sua amada esposa em risco. Tudo daria certo! Eles roubariam a fábrica tendo ele como guia e, assim que tivesse o pagamento em mãos, compraria os mantimentos necessários para seu humilde lar.

–         Feito!

Ele e Tiozinho deram um desconfortável aperto de mão.

A noite vem, e com ela o senso de justiça de Bruno Vale é plenamente liberado. Aquela seria sua primeira noite como defensor dos inocentes que sofriam nas garras do crime.

O milionário, de pé na caverna ao lado de seu carro especialmente preparado, já trajava o uniforme que confeccionara para ocultar sua real identidade. Consistia numa máscara que lhe revestia totalmente a cabeça, dotada de duas pontas semelhantes a orelhas de morcego, sendo que as únicas aberturas existentes se encontravam uma diante de cada olho e uma outra na região da boca. Seu tórax e abdômen estavam cobertos por uma leve e ao mesmo tempo resistente armadura, e uma capa de tecido fino saía de seu pescoço, caindo até os calcanhares. Na cintura havia um discreto calção, junto com um cinto de utilidades com alguns acessórios.

Como morava num país tropical, Bruno sabia que não suportaria andar com o corpo coberto por completo, por isso parte de seus braços e pernas estavam nus. Utilizava, porém, joelheiras e cotoveleiras e as mãos e pés estavam cobertos, respectivamente, por luvas e botas. Tudo até agora mencionado, exceto o cinto, que era amarelo, possuía um tom azul enegrecido. Porém, em seu peito, existia também na cor mostarda um losango lembrando a bandeira brasileira, e em seu centro via-se o emblema preto de um morcego.

–         Boa caçada, senhor! – desejou Alfredo, orgulhoso e ao mesmo tempo preocupado em relação ao órfão.

–         Obrigado. Não se assuste se eu aparecer no telejornal noturno!

Vale entrou em seu veículo e, ligando a potente turbina, dirigiu-o rumo ao túnel que dava acesso ao mundo exterior.

A fábrica de laticínios Cazrio, na Barra da Tijuca, fora recentemente interditada devido a exames comprovando que o leite nela produzido vinha sendo adulterado com produtos químicos noviços à saúde, e os donos foram proibidos de retirar qualquer coisa de dentro das instalações sob ordem judicial. Muitos bandidos viam nisso a oportunidade perfeita de penetrar no local e roubar o que havia no cofre da diretoria, e Tiozinho era um deles. Se fosse dinheiro, sairiam lucrando diretamente. Se fossem papéis comprometedores, eles poderiam fazer chantagem com os proprietários visando altas quantias de reais.

O grupo de nove homens, entre os quais estava o próprio Tiozinho, era guiado pelo desesperado compositor que necessitava do pagamento para sustentar a mulher grávida. Por enquanto tudo corria de acordo com o plano: eles haviam adentrado o prédio sem dificuldade por uma das garagens, e agora se dirigiam pelos escuros corredores rumo ao escritório onde se encontrava o cofre. O que não faziam idéia era que, ao cruzarem uma das portas, acionaram um quase imperceptível alarme silencioso...

Bruno guiava seu pitoresco carro por Copacabana, arrancando olhares assustados dos transeuntes enquanto fitava um monumento erguido na praia em protesto à violência: um varal repleto de rosas. Súbito, interceptou a freqüência da Polícia Civil através do rádio:

–         Atenção: temos uma suspeita de arrombamento na fábrica da Cazrio, Barra da Tijuca! É melhor alguém ir lá dar uma olhada!

O vigilante entendeu perfeitamente o recado: dando meia-volta e fazendo os resistentes pneus do veículo cantarem, partiu em direção ao local da ocorrência. Seu batismo de fogo estava cada vez mais próximo.

Os assaltantes ganharam a área de produção da fábrica: tanques contendo diversos tipos de substâncias junto com esteiras e máquinas fora de funcionamento. Constataram que o que menos havia ali era leite. O grupo seguiu por uma passarela alguns metros acima do chão, quando foram surpreendidos por um policial de colete armado com um revólver do outro lado.

–         Todo mundo parado! – gritou ele.

O bando se dispersou: enquanto alguns recuaram pelo caminho atirando, outros saltaram para o andar de baixo ou simplesmente se jogaram sobre a passarela também abrindo fogo. O homem da lei respondeu disparando, porém logo foi baleado mortalmente. O compositor ficou apavorado. E agora, como iam fazer? A polícia provavelmente logo cercaria o prédio!

–         Você vem com a gente! – berrou Tiozinho, puxando o guia para frente.

Ele avançou contrariado, não tinha muita escolha.

Um terceiro carro da Polícia Civil parou diante da fábrica. Dele saíram o delegado Gonçalves e o detetive Bueno, encarregados de averiguar o que se passava dentro do local. Alguns policiais já haviam entrado e até o momento não mais deram sinal de vida.

–         Arrombadores? – indagou Heitor.

–         Prováveis amadores, acionaram o alarme e nem deram conta... – murmurou Jaime. – O jeito é aguardar!

–         Se o pessoal demorar a voltar, vou entrar lá para ver o que está acontecendo, “delega”! – disse o detetive, colocando balas em seu calibre 38.

O mulato coçou o bigode.

Agora só dois bandidos acompanhavam o apavorado compositor. A cada minuto se esquecia do caminho e tinha vontade de voltar correndo para a garagem, porém o cano da arma de Tiozinho fazia com que ele rapidamente se lembrasse.

Vieram mais tiros. Outro criminoso tombou sem vida, um buraco na testa. O líder da quadrilha reagiu, acertando o policial autor dos disparos três vezes no peito. Depois novamente puxou o artista, forçando-o a continuar. Andavam por entre bordas de tanques e dutos, não deviam estar muito longe da diretoria. Para o guia, todavia, tudo estava perdido. Eles pensariam que ele chamara a polícia e então teriam o direito de fazer o que bem entendessem com sua esposa.

E, para completar, ele sem mais nem menos apareceu...

Era fantástico, medonho, surreal. Pareceu ter entrado voando por alguma abertura no telhado, ou então saltado de alguma parede ou passarela. Tinha asas enormes, cor escura, face aterrorizante... Não podia ser verdade, mas era... Um morcego gigante!

Tiozinho gritou de susto, e num piscar de olhos foi desmaiado com uma chuva de socos e chutes desferidos pela criatura. No auge do terror, o compositor, após inicialmente ter caído sentado para trás, ergueu-se afobado e tentou correr. Seu maior descuido: raivoso, o morcego avançou sobre si, agarrando-o fortemente pela camisa. Sem qualquer piedade aparente, puxou-o e mergulhou seu rosto desprotegido dentro de um tanque contendo solvente que seria colocado em litros e mais litros de leite...

–         IIIIIIIIIAAAAAAAAHHHHHH!!!!!

Perdendo os sentidos devido tanto ao medo quanto à dor em sua face, o artista caiu duro sobre a passarela. Nisso, o terrível morcego já se dirigia até o andar inferior, planando com suas aparentes asas na direção do único bandido ainda ativo. Tremendo feito vara verde, o meliante, sem reação, foi agarrado pela roupa, perguntando com os olhos cheios d’água:

–         O que é você?

–         Sou o Homem-Morcego! – rugiu o justiceiro, desacordando o oponente com uma violenta cabeçada.

Nesse mesmo instante, um grupo de policiais liderado por Gonçalves e Bueno entrou no lugar, deparando-se com a soturna figura do vigilante mascarado. Temendo expor-se e até ser preso, o agressivo alter ego de Bruno Vale saltou através de uma janela, rolando para um terreno baldio e em seguida correndo dali o mais rápido possível, desaparecendo na escuridão noturna antes que os homens do 12º DP conseguissem entender o que haviam acabado de presenciar.

Início de madrugada.

Recobrando a consciência a tempo, o desventurado compositor pôde escapar da fábrica antes de ser encontrado pelos policiais. Aturdido, retornou trôpego até seu barraco na favela não muito distante, temendo o pior a cada metro que percorria. Assim que ganhou a ruela deserta, percebeu de longe, apesar da pouca luz, que a porta da morada estava aberta. Já prestes a chorar, desatou a correr até sua casa, entrando lentamente ao constatar que a fechadura fora arrombada...

Tudo estava virado de cabeça para baixo. Os poucos móveis destruídos, objetos jogados pelo chão, marcas de sangue nas paredes. E, avançando mais alguns poucos passos, teve a visão que tanto temera: sua mulher, nua e enrolada numa toalha de mesa tingida de rubro, morta a facadas após ser estuprada. Os homens de Tiozinho haviam usufruído a garantia...

Sem poder conter-se, o artista rompeu em prantos, apoiando-se numa parede para não cair de tanto desgosto e desespero. Perdera tudo que tinha. Sua amada mulher, o filho no ventre desta, seus bens, sua dignidade...

Soluçando, ele entrou em seu quarto. Encontrava-se incrivelmente intacto. Fitando tudo com uma amargura sem igual, andou até um pequeno espelho preso próximo à janela fechada com papelão... Acendeu a luz e, transtornado, contemplou seu semblante na superfície reflexiva.

A imagem era pavorosa. Seu rosto, emergido no tanque de solvente pelo morcego gigante, havia se tornado uma rodela branca como giz que envolvia seus olhos, nariz, boca e o queixo. Suas orelhas e a parte anterior da face haviam sido poupadas, mas o dano à pele parecia irreversível... Estava agora, de forma permanente, maquiado como o Pierrô, personagem carnavalesco pelo qual ironicamente tinha tanta afeição...

Mais duas ou tres lágrimas rolaram a partir de seus olhos, até que, de repente, a expressão triste tornou-se um sorriso maligno, a desolação e o pesar deram lugar a uma insana alegria. A pouca razão que ainda lhe restava havia acabado de abandoná-lo. Rindo e pulando, o compositor deu uma cambalhota e, removendo o papelão da janela, saiu do barraco cantando feliz uma clássica marchinha de carnaval:

Ó abre alas que eu quero passar!

Ó abre alas que eu quero passar...

Continua... 


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