Histórias Intrísecas escrita por Renata


Capítulo 1
Entre trabalhos secretos e setas quebradas.


Notas iniciais do capítulo

A história a seguir surgiu de um devaneio no meio da aula, e no fim acabou assim. Espero que apreciem, e ah, o amor SEMPRE vence, de um jeito ou de outro! ;)



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Entre trabalhos secretos e setas quebradas.

Meu emprego não é assim tão fácil. Quer dizer, se complica pra valer quando as coisas tendem a dar muito errado. E os sentimentos e as pessoas são geralmente os responsáveis por tornar minha tarefa um pouco mais dificultosa.

Ao me deparar com essa conclusão, tomei mais um gole do meu chá de morango. Acho que coloquei muito açúcar. Encarei o líquido cor-de-rosa contrastando com o branco perolado da xícara e suspirei. Lá estavam eles... alheios a tudo e principalmente sem notar um ao outro. Faz duas semanas que estou tentando mudar as coisas. Sem sucesso. Estou ficando com dor de cabeça.

Apanhei meu pequeno caderno de capa dura que parece um diário, e li todas as informações que consegui juntar nesse tempo. Olho para o grande asterisco feito com tinta de caneta preta e o nome sublinhado ao lado dele. Natália. Natália tem recém completados 21 anos, é estudante de Letras, é uma gatomaníaca (sério, ela tem três bichanos em casa, sem contar as incontáveis coisas de uma coleção com forma e estampa de gatinhos), gosta de torta de maçã e chá gelado de limão, além de qualquer série de TV que envolva algo sobrenatural. Ela estava sentada num canto, tomando uma caneca de cappuccino e de costas para Felipe. Viro a página e encontro outro asterisco, desenhado à lápis dessa vez, e o nome Felipe circulado com tinta verde. O rapaz em questão tem 22 anos, está no último ano de arquitetura, tem uma coleção enorme de HQs e enciclopédias ( sim, esse tipo de gente ainda existe, mesmo que com grande risco de extinção, se devo mesmo acrescentar), sabe quase tudo relacionado à curiosidades históricas e gosta de fazer cupcakes.

Resumindo, eles frequentam basicamente os mesmos lugares, tem alguns amigos em comum e nunca prestaram atenção um no outro. Bom, já tentei fazê-los se sentar lado a lado no ônibus, dividirem a mesma mesa na biblioteca lotada da universidade e também a forma mais clichê de todas (mas que pasmem, geralmente funciona) que consiste em esbarrões, tropeços e materiais caídos no chão. Nada disso funcionou. Aliás, nem chegou a acontecer.

Eu não queria desistir deles. É sempre tão horrível ter de desistir. Dei mais um gole no meu chá. URGH. Doce demais. Dei mais uma encarada nos dois e então tive a atenção roubada por outro possível casal que acabou de cruzar a porta. E ah, UAU, eles combinam demais. Com toda certeza devem levar no máximo uns cinco dias de encaminhamento e então tudo certo. Levei minha xícara até os lábios novamente e me preparando para mais uma careta. Dessa vez engasguei. A cadeira que sobrava na minha mesa foi puxada e para meu desgosto alguém estava se sentando.

Odeio poucas coisas na vida:

1. Quando não consigo fazer meu trabalho.

2. Quando eu perco apostas.

3. Filas longas e vagarosas.

4. Finais de livros/filmes na melhor parte.

5. Miguel.

Miguel estava me encarando sarcástico e eu senti os cantos da minha boca se curvando para baixo. Ele é ótimo em tudo o que faz e isso é completamente irritante. Conseguiu juntar cinco casais em uma semana e eu enrolada com apenas um em exatos 14 dias. Resolvi fingir que ele não estava ali e voltei a bebericar meu chá. Com o canto dos olhos vi ele tamborilando os dedos sobre a mesa, e parecia estar escolhendo a melhor forma de começar a me tirar do sério com suas piadas e comentários desnecessários sobre o meu desempenho. Eu tive vontade de socá-lo antes mesmo que ele abrisse a boca, mas da última vez que fiz isso (ou pelo menos tentei) quase quebrei meus dedos e amassei a moldura renascentista de um quadro na sala de reuniões.

–O que exatamente está fazendo aqui?- Eu disparei antes mesmo que Miguel conseguisse dizer qualquer coisa.

–O que você acha?- Ele se endireitou na mesa e depois passou os dedos compridos nos grandes cachos castanhos.- Vim terminar seu trabalho.

Fechei a cara e apertei os dedos ao redor da xícara. Eu me controlei para não atirá-la contra Miguel, mas deixei um som esquisito escapar pela boca.

–Vamos lá Bel.- Ele tentou fingir ser amigável.- Admita que precisa de ajuda.

–I-S-A-B-E-L.- Soletrei e tomei o resto do chá de uma só vez.- E nem pensar, eu vou resolver sozinha. Estou quase conseguindo, só preciso...

–Tudo bem I-S-A-B-E-L, você pode continuar sendo orgulhosa e fingir que está quase conseguindo enquanto aquelas duas pessoas desperdiçam mais tempo do que precisam separadas. E pelo jeito vão ficar assim pela eternidade, principalmente se dependerem de você.

Miguel me cortou ríspido, e seus olhos estavam cravados em meu rosto. Eu senti a raiva subir, e me dei conta que ninguém ali estava percebendo nossa discussão. Ninguém nunca percebia o que estávamos fazendo. Funciona quase como se estivéssemos invisíveis, mesmo que as pessoas ainda pudessem nos enxergar e até mesmo interagir com qualquer um dos encarregados de Eros. Sim, Eros, ou Cupido, na verdade, tanto faz, pode escolher como quiser. O fato aqui é que existem pessoas assim, iguais à mim e a Miguel que assumem a responsabilidade de auxiliar o deus do amor. Eu não precisava fazer isso, não funciona como um fardo. Eu recebi o convite e simplesmente vi que era o que eu precisava fazer. Ajudar as pessoas e encontrarem alguém com quem dividir alguma coisa realmente importante.

Dei um longo suspiro e olhei para a xícara vazia.

–E o que sugere?-Disse por fim, sentindo-me vencida.

Miguel deu um sorriso de orelha à orelha e colocou a mochila em cima da mesa. Eu senti aquele frio na barriga e o nervosismo se acentuando. Meu colega de trabalho é um tanto quanto mais radical, por assim dizer. Ele manipula poções fortíssimas e tem uma ótima pontaria. Devo admitir, que os métodos que ele utiliza são muito eficientes, o que geralmente significa 11 numa escala de 0 à 10.

O garoto à minha frente estava alisando as penas brilhantes das setas que acabara de retirar da mochila. Ele tinha um sorriso tão convencido nos lábios que me persuadiu a acreditar que estava tudo certo. Ele se levantou determinado, agarrou o grande arco dourado cheio de adornos minuciosamente entalhados e fez um movimento com a cabeça para que eu o acompanhasse. E eu o fiz, e então percebi que estava tremendo.

Eu estava realmente nervosa. Eu não sei se era por conta do arco ou pelo fato de ter que deixar que Miguel assumisse a tarefa que eu tinha o dever de cumprir. Dei uma olhada pelo ambiente. Todos, absolutamente todos, estavam absortos nas próprias atmosferas. Um grupo de estudantes estava atirando batatas fritas no ar para que um dos membros as abocanhasse antes que caísse no chão (ergh, que infantilidade), um garoto solitário estava ocupando uma mesa inteirinha com os seus sketchs e desenhos finalizados e um trio de meninas cochichava alegremente enquanto laçavam olhares para a mesa ocupada pelo grupo de teatro do curso de Artes.

Miguel parou no meio do caminho e eu trombei nas suas costas. Ele é ridiculamente mais alto do que eu, então eu quase me desequilibrei e senti que meu nariz ficou doendo. Dei três passos para o lado e observei quando Miguel se preparou para atirar. Era sempre a mesma coisa. Testa franzida, ombros flexionados, lábios crispados. Acho que esses são os raros momentos em que esse cara fica tenso e isso geralmente dura segundos. Eu fiquei o encarando enquanto esperava que aquela humilhação acabasse de uma vez, para eu poder ir pra casa e pensar numa boa desculpa para dar ao meu chefe.

Tudo aconteceu. E foi um desastre. O silvo da primeira flecha que cortou o ar se fez audível, e atingiu Natália de um modo certeiro. A garota contorceu os lábios parecendo confusa, deu um sorrisinho e depois voltou a beber o cappuccino. Bom, o desastre se desenrolou no exato momento em que Felipe simplesmente desapareceu. Eu dei uma olhada pelo local e nem sinal dele. Miguel estava com uma expressão de espanto estampada no rosto. Bati a mão com força na testa e fechei os olhos.

–Mas que droga.- Ouvi Miguel sussurrar.

Olhei para Natália que estava com um ar bobo, alegre e distante, cantarolando uma música chiclete sobre estar acidentalmente apaixonada. E nem sinal de Felipe. Senti o aperto dos dedos de Miguel contra meu braço e ele começou a correr, desviando dos obstáculos e me levando junto com ele para o lado de fora. Fomos tragados pela multidão que passava pela rua. Miguel continuou me segurando e eu estava apavorada. Olhei para todos os lados para ver se encontrava pelo menos uma pista de Felipe. Nada.

Quando me dei conta estávamos sentados num banco velho, com a tinta descascada na praça do outro lado da rua. Miguel praguejava baixo, enquanto tentava emendar a seta par. Eu congelei quando percebi o que tinha acontecido. A seta par estava quebrada. Senti o gosto adocicado do chá e meu estômago embrulhou. Miguel deu um muxoxo e eu o encarei. Ele parecia desolado.

–E agora?- Eu arrisquei.

–E agora? E agora? E agora é que a menina está lá dentro do Café, sentindo os efeitos da seta e o cara desapareceu...- Miguel disse alto, irritado e eu me encolhi.

Segundos depois ele se largou completamente no banco, deixando a seta de lado. Miguel suspirou e me fitou.

–E agora?- Dessa vez ele pareceu realmente preocupado.

***

Miguel e eu estávamos de volta ao estabelecimento. Eu estava completamente compenetrada em resolver o problema. E o primeiro passo era resgatar Natália, que estava praticamente abandonada à própria sorte. Ou pelo menos era isso o que eu achava. Quando localizei sua mesa vi que dois outros garotos conversavam com ela. Eu resolvi me aproximar discretamente, ficando perto do balcão, de onde eu podia ouvir tudo. Miguel me acompanhou prontamente.

–Ei, Nath.- um dos garotos estava passando a palma da mão na frente dos olhos da menina.

–A sua amiga não parece muito bem, Jô.- o outro garoto disse, parecendo preocupado.

–Eu percebi.- , acho que deve ser esse o apelido, disse.- Acho que precisamos tirá-la daqui. Você se importa se o nosso chocolate ficar para outra hora?

O outro rapaz fez uma expressão quase ilegível, mas depois concordou enfaticamente. se levantou e ajudou Natália, passando o braço dela pelo vão do dele e a conduziu para fora, sendo acompanhado de perto pelo o outro garoto. Miguel e eu trocamos rápidos olhares e saímos logo atrás, os seguindo.

–Ih, será que colocaram alguma coisa na bebida dela?

–Léo, para com isso...

Léo deu uma risadinha contida.

–Okay, esse café não tem nada de balada mequetrefe mesmo.

Jô deu uma olhada de esguelha para Léo, que se calou. Os dois colocaram Natália no mesmo banco onde eu e meu colega tínhamos nos sentado minutos antes.

–Nath, tudo bem? Sou eu o João.

Miguel se colocou um passo à frente, depois fez sinal para que eu o acompanhasse. Nos afastamos da praça e ele começou a andar de um lado por outro.

–Beleza, agora ela está com os amigos.- Miguel disse rapidamente.

–Nós precisamos fazer alguma coisa.

–Não tem muito o que fazer.- Ele parecia nervoso.

Eu engoli em seco. Olhei para o banco da praça e vi João com o rosto contorcido em preocupação, enquanto Natália ainda tinha uma expressão que estava uma perfeita mescla de vazio e sorrisos bobos. Léo olhava de um para o outro até que resolveu puxar a mão de João para si, e este, se aproximou mais e repousou a cabeça no ombro do outro. Então eu entendi finalmente, e me senti tão estúpida por não ter enxergando antes. Os dois garotos eram um casal. Eu fiquei tão eufórica que bati palmas bem rapidinho.

–O que?- Miguel disse.- Só agora que percebeu?

Ele riu e eu dei um pulinho animado. Eu simplesmente não consigo segurar quando vejo um casal assim, despreocupado com o que vão pensar deles e dedicados unicamente o amor. E afinal de contas, é assim mesmo que deve ser. Eu fiquei emocionada, e por algum e curto tempo, me esqueci temporariamente da situação problema. Miguel me balançou pelos ombros.

–É, eu sei. Eu também me sinto assim.

Nos encaramos brevemente e eu sorri.

–E a Natália e o Felipe?-Perguntei.

–Vamos ter que deixar as coisas como estão.

–O que?- Eu quase gritei.

–Is, não temos mais a seta par.- Miguel começou.- E eu precisaria de pelo menos dois dias para ministrar uma dose de antídoto ou então ter em mãos uma poção super potente para o Felipe. E não temos nem a poção e nem o Felipe.

–Se encontrarmos o Felipe, acha que consegue a poção?

Miguel fez um ruído estranho.

–Sem chances. Não depois do que eu...- Miguel pigarreou.

–Você o que?

–Cupido me proibiu de usar as potentes, tá legal? Por causa de um incidente. Pronto, não falo mais nisso.

–Você o que?- Tive que conter o riso, mas Miguel me lançou um olhar furioso, e eu me concentrei em Natália novamente.

A garota iria passar por um período desagradável, por isso eu queria dar um jeito em tudo. Contudo, estava quase concordando com Miguel e indo embora. Mas meu coração doía só de imaginar os dias estranhos e vazios que se seguiriam por pelo menos umas duas semanas na vida de Natália, marcados por momentos de euforia e picos de angústia não explicada. Eu fiquei parada no lugar, com o olhar fixo nela e nos garotos que estavam ainda de mãos dadas.

Miguel bufou e eu percebi que ele estava fazendo o mesmo que eu. Nos fitamos de novo e silenciosamente concordamos em ir embora. Caminhamos em direção ao banco, teríamos que passar por ali afinal. Virei o rosto a fim de prestar atenção no que acontecia ali.

–Eu acho que vou comprar um doce pra ela, pode ser falta de açúcar.- João disse, largando da mão de Léo.

–Pode ser.

–Compro um bombom ou um bem-casado?

–Ah...- Léo pareceu pensativo.

João pareceu se animar repentinamente e disparou na direção de outro garoto. Era ele. Eu parei e segurei o ombro de Miguel, obrigando ele parar também.

–Ei Felipe, eu preciso da sua ajuda.

–Oi João.- Felipe disse confuso mas assentiu e seguiu o outro.

–Essa é a minha amiga Natália, você pode ficar de olho nela enquanto eu e Léo compramos alguma coisa pra ela comer? É rapidinho.

Eu e Miguel nos entreolhamos desacreditados.

–É claro.- Felipe coçou a cabeça, parecendo receoso, mas se sentou ao lado da garota quando o casal entrelaçou os dedos e correu em direção ao Café.

Eu estava paralisada.

–Olá, eu...-Felipe coçou a cabeça.- Felipe.

–Oi Felipe.- Natália respondeu.

Os dois se encaram por segundos suficientes para que lá no fundinho um sentimento pudesse nascer. Eu suspirei satisfeita, quase sentindo a certeza de que iria funcionar, mesmo que Felipe tenha ficado sem a seta par. Eu iria acompanhá-los de pertinho por dias, só pra ter certeza.

E era isso. O amor nem sempre precisa de um empurrãozinho. Pelo menos não de um inteiro. Senti um dos braços de Miguel repousar no meu ombro, e voltamos a caminhar.

O dia estava quase acabando, e eu tinha passado por um apuro e tanto. Boa parte era culpa do Miguel, que resolveu se intrometer. Mas no fim, estava quase tudo certo.

–E aí?- Eu comecei.- Já pensou no que vai dizer ao chefe?

–Eu? Você vai pensar no que dizer ao chefe por nós.

–Porque eu?- Eu estava afetada.

–Eu estava tentando te ajudar.

–Mas você quase pôs tudo a perder.

–E você não ia colocar nada a perder e nada ia acontecer.

–Mas então me conte.- Resolvi mudar de assunto.- O que aconteceu?

–O que aconteceu o quê?- Ele parecia levemente irritado, mas mesmo assim interessado na pergunta.

–Sobre o incidente e o acesso negado à poções.

–Bel, esquece isso.

Caí na gargalhada.

–E não me chame de Bel.- Dei um soquinho de leve na altura do queixo de Miguel, que resmungou.

Descemos a rua e terminamos o expediente.


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Notas finais do capítulo

E aí? Mereço um reviewzinho?Até mais, logo teremos mais histórias malucas por aqui.



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