The Sages escrita por Maya


Capítulo 5
05 - Humana


Notas iniciais do capítulo

Oi pessoal! Peço mais uma vez desculpas pela demora, são duas fics pra atualizar, então... Enfim, gostaria de agradecer muitíssimo mesmo à Dama Invisível pela recomendação. Não esperava por isso, pelo menos não tão cedo. Muito obrigada, é uma honra!
Agradecendo também à todos que têm comentado e ajudando a história a ir pra frente. Fiquem com o número 5!



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Sophie não demora muito para terminar o jantar. Quando nos chama, Dustin vai imediatamente para a sala de jantar e eu o sigo. Estou nervosa com o quanto ele está empolgado com a refeição.

Paco e Liz passam correndo por nós, ainda animados com suas brincadeiras. Eu me sento e Paco senta ao meu lado, de frente para Liz. Dustin se senta na cadeira de cabeceira.

Olho para ele. Liz interrompe sua conversa com Paco e olha também. Sophie, que já trazia os pratos, faz o mesmo.

– Que foi, gente? Sei que sou bonito, mas...

– Dustin – o interrompo –, essa é a cadeira do nosso pai.

– Ah! – Ele se levanta todo afobado e se senta ao lado do meu outro lado, me deixando entre ele e o Sábio do Fogo. – Sinto muito, garotas.

Liz não diz nada e volta a falar com Paco como se nada tivesse acontecido. Sophie simplesmente coloca os pratos. Eu murmuro um “tudo bem” e sinto todos os meus músculos se retesando quando Sophie se senta ao lado de Liz e dá início à refeição. Enquanto Dustin está animado com o jantar “em família”, eu estou muito nervosa, esperando que algo de errado aconteça a qualquer momento.

O antigo Aqua Boy dá sua primeira garfada e faz uma expressão de satisfação. Espero que não elogie a comida de boca cheia... Olho para Paco e vejo que ele come contente e rapidamente. Percebo o olhar de Sophie e começo a comer também.

– Ah, eu esqueci as bebidas – diz Sophie.

– Pode deixar, eu pego.

Me levanto com mais pressa do que deveria. Sophie ergue uma sobrancelha, estranhando, mas volta a comer. Os outros não parecem perceber, ou pelo menos não dão importância.

Pego uma jarra de suco na cozinha e encho cinco copos, colocando-os numa bandeja. Na volta, me detenho na porta. Daqui dá para ver meus quatro irmãos jantando: os espirituais e as humanas. Meu lugar entre os garotos permanece vago, esperando minha volta. Já vou me sentar lá quando paro de novo. Um dúvida cruel de onde sentar aparece em minha cabeça, como se isso fosse decidir o que eu valorizo mais. Nenhuma das duas opções me deixaria totalmente contente.

– Terra para Hailey, responda – Paco fala. – Tá tudo bem? Bateu a cabeça? Paralisou? Levou uma picada? Perdeu o sinal?

Acho melhor levar logo a bandeja para ver se ele cala a boca. Paco ainda dá mais dois palpites antes de ficar quieto e tomar seu suco.

O jantar continua em silêncio por algum tempo. Quando todos já estão terminando suas refeições, Dustin deixa seus talheres no prato, limpa a boca com um guardanapo e inicia uma nova conversa.

– Então, Sophie. Você pratica alguma atividade em seu tempo livre?

Paro de comer também e me viro para ele. Que tipo de pergunta é essa?

– Bem, eu faço esgrima – responde minha irmã. – Comecei há um ano só por diversão. Não levo muito a sério.

– Legal! Quer dizer que se alguém colocar uma espada na sua mão você saberá o que fazer, né?

– Se for um florete... – Um leve sorriso aparece no rosto de Sophie e ela também interrompe sua refeição. – Se for um florete, sim. Tenho certa habilidade.

– Mas por que você quer saber disso? – Pergunto a Dustin.

– Nada. É só uma curiosidade banal. Mas é bom saber que alguém pode defender a família caso algo aconteça.

Ele fala para ela, mas olha para mim. E posso sentir que se refere a mim. O que está tramando?

– Só estou dizendo que essa é uma pergunta estranha para se fazer num jantar – continuo.

– E que vantagem eu teria em seguir as formalidades? Há tanta coisa para saber sobre tantas pessoas... Por que eu desperdiçaria isso trocando essas perguntas por um simples “O jantar estava ótimo, senhorita”? – Ele logo olhou para Sophie, atrapalhado. – Mas o jantar estava ótimo, senhorita.

– Obrigada. E não vejo nenhum problema em perguntar. Relaxe, Hailey.

Eu nem tiro os olhos de Dustin. Ignoro Sophie pela primeira vez em minha vida atual.

– Então, será que você tem outra curiosidade banal para satisfazer? Sobre mim ou sobre Liz, talvez?

O sorriso que Dustin abre é quase tão maroto quanto o de Paco.

– O que foi, Miller? É impressão minha ou estou vendo uma demonstração de ciúmes aqui?

Sei que ele está brincando. Sei que todo mundo entende que ele está brincando. Mas ninguém ri além de Paco – que também é a única pessoa que não entende o motivo de mais ninguém rir.

Vejo com o canto do olho aquele olhar indecifrável que tanto me perturba de Sophie. Viro a cabeça e vejo Liz meio encolhida em sua cadeira, olhando da mais velha para mim e vice-versa. Os olhos de Sophie, que decido finalmente encarar, transmitem uma decepção que não precisa ser explicada. Uma estranha brincadeira de Dustin e pronto: deu por confirmado o palpite que sustenta desde minha separação de Chase, desde que Dustin ganhou mais espaço no meu dia a dia. Detesto isso, mas não tanto quanto detesto a atitude do Sábio da Água.

Ele deveria estar arrependido. Arrependido por ter instalado um clima pesado nesse fim de jantar, arrependido por ter me deixado sem graça sob o olhar de Sophie. Porém tudo o que vejo em seu rosto quando me viro novamente para ele é o sorriso de alguém que atingiu seu objetivo.

. . .

Mais tarde, eu e Dustin cumprimos nossa promessa e levamos Paco para sua casa. Ele e Dustin se despedem de minhas irmãs e agradecem pelo jantar. Andamos os três lado a lado, Paco entre eu e o outro Sábio. Me recuso a entrar na conversa dos dois. Estou nervosa demais para sequer olhar para Dustin.

Já estamos andando há alguns minutos, com Paco nos guiando, quando não consigo mais me conter. Interrompo a conversa entre os garotos e disparo:

– Por que você fez aquilo?

Os dois olham para mim. O pequeno desvia o olhar e acelera um pouco, como se quisesse sair do caminho caso algo aconteça. Boa ideia.

Dustin, porém, não recua.

– Eu estava com uma dúvida, Hailey. Queria saber qual era o impacto que Chase ainda tinha na sua vida e na de sua família, e sabia que você não me diria a verdade se te perguntasse. Então fiz isso. Não tinha nenhuma garantia de que fosse conseguir chegar no ponto que queria, mas por sorte consegui.

Sorte? Você tem alguma noção do que fez? Sophie já não estava nada feliz com nossa relação, e agora ela está infeliz de verdade com isso. Sua brincadeira idiota sanou a dúvida que ela tinha há dias. Ela acha que temos alguma coisa e odeia que eu já tenha algo com outra cara tendo me separado de Chase há tão pouco tempo!

– Está vendo? Era exatamente isso o que eu queria ver! – Ele para e se vira para mim. Acabo fazendo a mesma coisa. Mais distante, Paco se vira para nós e nos observa, calado e preocupado. – Hailey, de que adianta você terminar com Chase e continuar pensando nele, deixando que ele influencie em sua vida? De que adianta se você continua o amando?

– Você não sabe como eu me sinto! – Só percebo que estou gritando e começando a chorar quando a frase salta da minha boca. E não tento conter nenhum dos dois. – Você não sabe nada e não tem o menor direito de entrar na minha casa e fingir que sabe! Não tem o direito de bagunçar a minha vida!

– Acorda, Luz! Essa não é sua vida! Sua vida de verdade está te esperando na nossa casa de verdade, onde você assumirá sua forma de verdade. O que estamos vivendo aqui é apenas uma ilusão criada para abrigar esses corpos. Aceite isso!

Balanço a cabeça. Estou chorando de verdade agora.

– Não é uma ilusão quando se tem sentimentos, Dustin. Nossa missão aqui já passou da fase da insensibilidade. Pensei que você também tivesse percebido isso.

Não espero sua resposta. Simplesmente acelero e puxo Paco pela mão. Dustin não nos segue; toma seu próprio rumo para a casa da tia rabugenta.

Eu e Paco caminhamos em silêncio, que só é quebrado vez ou outra por seus murmúrios indicando a direita ou a esquerda, quando ele fala algo de verdade:

– Não fique brava com o Água, Luz.

– Não queria ficar. Mas ele causou isso, você viu.

– Olha, eu não sei do que vocês estavam falando, mas pelo que entendi, Dustin está certo. Se você continuar amando e pensando nesse tal Chase, de nada adiantará ter terminado com ele. Os monstros continuarão indo atrás do cara e você ainda vai sofrer se o pior acontecer.

– E o que vocês querem que eu faça? Que eu simplesmente esqueça os anos que passei com ele? Que simplesmente esqueça tudo o que sinto por ele? Eu não consigo fazer isso, Paco. Não dá pra mim.

– Você vai ter que tentar se quiser que Chase fique vivo. Se não, tudo bem. Continue pensando nele. Aposto que muitas outras pessoas vão pensar também quando forem em seu velório.

É a coisa mais racional que já escutei de uma criança. Durante todo o resto do trajeto, não consegui pensar em nada a altura que pudesse respondê-lo.

. . .

Depois de deixar um já sonolento Paco em casa, volto para minha própria casa em passos apressados e a mente voando. Bato a porta quando entro e mal escuto o discurso. Apenas pego uma caixa de fósforos no armário da cozinha e corro para meu quarto.

Acabo batendo a porta dele também antes de trancá-la. Abro a gaveta do meu criado-mudo e tiro minha foto com Chase de lá. Retiro-a do porta-retratos.

Olhar para essa foto agora é como trazer a tona todas as lembranças desses últimos dois anos. Traz a tona nossos aniversários, nossas declarações, nossas brigas, todos os momentos que passamos juntos. E com isso vem a dor causada pelo fim disso tudo, e dessa vez ela está mais real do que nunca.

Respiro fundo. Não posso chorar. Não dessa vez.

Coloco a foto na cama e risco um fósforo. Depois, jogo a caixa num canto qualquer, pego a foto com a mão livre e boto fogo em uma de suas pontas. A chama vai consumindo Chase, seus braços, seu peito, seu rosto. E me deixa por último.

– Eu vou te esquecer, Chase – digo a mim mesma. Acho que falar em voz alta ajuda em alguma coisa. – Vou deletar tudo, e em mim não sobrará nenhum resquício de amor por você. – Fecho os olhos e penso que seria bom dizer algo em que odeio nele. Penso e digo: – Eu te odeio por ser tão atraente. Por L.C, você não podia ser um baixinho, gordinho e dentuço? Seria tão mais fácil te dar o fora quando nos conhecemos...

Dou a risada mais silenciosa e chorosa de todas. Enquanto olho para as cinzas sobre o chão do meu quarto, percebo que essa foi a coisa menos egoísta que já fiz por nós dois.

. . .

Fico acordada até mais tarde e acabo me esquecendo de apagar a luz. Não consigo dormir. Estou deitada na minha cama há horas, tentando chamar o sono; já ouvi músicas lentas e tristes, já reli várias páginas de um livro, já cantei para mim mesma uma canção de ninar que minha mãe adotiva costumava cantar, e nada. O sono não quer se encontrar comigo hoje.

No meio da madrugada, alguém bate a porta. A destranco e vejo Liz do outro lado.

– Liz? O que foi?

– Não consigo dormir.

– Você não costuma entrar no quarto da Sophie quando isso acontece?

– Eu ia, mas vi que você não apagou a luz e pensei que também não estivesse dormindo – responde ela, com a carinha de anjo mais angelical que conheço. – Posso entrar?

Abro um sorriso e puxo minha irmãzinha para dentro.

Liz – na verdade é Elizabeth, mas ela odeia que a chame assim porque diz que é nome de velha – é seis anos mais nova do que eu, então eu pude vê-la crescer. Vi ela passando por todas as fases, saindo do berço para dormir numa cama, aprendendo a usar o banheiro sozinha, trocando as fraldas por calcinhas, dando os primeiros passos. Lembro até hoje de sua primeira palavra, dita durante um show de fogos de artifício num quatro de julho: “luz”. Liz é a pessoa mais carinhosa, fofa e sensível que já conheci, e olhe que eu já vivi bastante.

Como fazíamos quando ela era menor, sentamos na minha cama e ela deita cabecinha no meu colo. Ela fecha os olhos para relaxar enquanto eu aliso distraidamente seus cabelos loiros.

– Sophie ficou muito brava com você hoje – ela diz. – Não concordo com ela. Qual o problema de você ficar com Dustin? Ele é legal.

– Eu e Dustin não temos nada, Liz.

– Então você ainda pode voltar com Chase?

– Sem chances.

Ela abre aqueles grandes olhos castanhos e me encara.

– Por quê?

Liz é o tipo de criança que nunca passa da fase do “por quê?” qualquer coisa. Sua curiosidade é insaciável.

– Não vai dar certo, Liz. Nós todos vamos ter que conviver com isso.

– Mas por que não vai dar certo? Você amava tanto ele antes daquele acidente na sua escola, e ele te ligou tantas vezes depois que saíram do hospital...

Fico até aliviada por ela ter dito “amava”. É assim que deve ficar. No passado.

– Porque não vai. Nós dois... Muita coisa aconteceu – murmuro. – Isso é assunto de gente grande. Você não quer entender.

– Não quero mesmo. – Liz volta a fechar os olhos. – Vocês, adultos, são complicados demais.

Eu rio, beijo seu rosto e a aproximo mais de mim. Gostaria que noites assim pudessem se repetir várias vezes, mesmo quando ela crescer. Mas eu não vou ver nem o seu próximo aniversário.

Engulo o choro.

– Hailey?

– O que foi?

– Você nunca teve curiosidade pra saber quem são seus pais biológicos?

Me assusto. É a primeira vez que me perguntam algo assim, pelo menos nessa vida.

– Nunca. Minha família são vocês. Eu não seria a mesma pessoa se tivesse crescido em outra casa.

– Hm... Hailey?

– Sim?

– Que bom que a mamãe e o papai te adotaram. Essa casa também não seria a mesma sem você.

Fico feliz por ela já ter dormido quando começo a chorar.

. . .

No dia seguinte, à tarde, vou a casa de Dustin.

O bairro dele é vizinho ao de Paco, e sua casa é simples, normal para uma família de classe média. Dou três batidas na porta de madeira e quem me atende é uma mulher – eu diria que tem uns cinquenta anos – de cabelos escuros, pele pálida e olhos cansados me atende.

– O que foi?

Com tanta arrogância na voz, dá para perceber que essa é a tal Kora.

– Eu gostaria de falar com Dustin. Ele está?

Ela suspira.

– Garoto! – Grita para dentro da casa. – Tem outra visita pra você!

Outra visita?

Kora vai embora sem nem olhar pra minha cara. Logo Dustin aparece, segurando um saco grande de salgadinhos e duas latas de refrigerante.

– Hailey?

– Ah, oi. Eu vim falar com você, mas parece que já está com algum amigo aí. Desculpe, não queria interromper um encontro de garotos... – Noto que ele vai alargando o sorriso cada vez mais enquanto falo. – O que é?

Então ele ri e inclina a cabeça para o interior da casa.

– Ei Paco, será que a Hailey é próxima o bastante para entrar no nosso encontro de garotos?

– Tanto faz! – Paco grita lá de dentro. – Só traz logo esse lanche, eu quero ver o filme!

Meu rosto queima de vergonha.

– Acho que isso é um sim.

Dustin faz um gesto com a cabeça para que eu o siga e eu entro na casa. O garoto fecha a porta com um chute e me conduz até a sala de estar, onde Paco está sentado no sofá diante da TV. A tela desta está pausada numa cena de um filme que eu não conheço. Na mesa de centro encontram-se um saco de salgadinhos vazio – com migalhas espalhadas em volta –, diversas latas de refrigerante vazias e amassadas e alguns pacotinhos de chocolate transformados em bolinhas.

– Não é muita besteira para um garoto de oito anos comer? – Pergunto.

– Ei, nós somos garotos. Garotos se empanturram e depois arrotam – retruca Paco. – É a lei natural dos humanos.

– Parece a lei natural dos porcos pra mim – eu digo com nojo.

– Viu? Essa é exatamente a cara que garotas humanas devem fazer ao escutar um garoto dizendo uma besteira dessas. Muito bem, Luz. – O Fogo bate palmas. – Entrou direitinho na personagem.

Reviro os olhos e tento ignorá-lo.

– Dustin, posso falar em particular com você?

– Claro. – Ele joga o lanche para Paco. – Guarde pra mim. Eu já volto.

Juntos, subimos as escadas e entramos no primeiro quarto à direita.

O quarto de Dustin é revestido com um papel de parede de estrelas negras espalhadas num fundo azul escuro. Sua cama fica encostada à parede ao lado da porta, e do lado oposta fica uma cômoda onde ele deve guardar suas roupas. Tem uma prancha de surfe pendurada na parede, brilhando como se tivesse sido lustrada há pouco tempo, e abaixo dela ficam vasos com flores postiças. No fundo do quarto estão caixas de papelão fechadas.

– Bote pra fora, Miller – diz Dustin. Ele já está sentando em sua cama.

Me sento ao seu lado e fico de frente para ele.

– Eu queria pedir desculpas por ontem. Eu fiquei com raiva e explodi, mas você estava certo. Eu ainda amava Chase.

– Não se desculpe. Eu fui um otário quando fiz aquilo. Mas... Amava? O que aconteceu de ontem pra hoje?

– Eu prometi a mim mesma que esqueceria Chase de uma vez por todas – conto. – Queimei sua foto para simbolizar isso. Eu não sentirei mais nada por ele a partir de agora.

Dustin suspira.

– Isso é bom. Mas será que resolve tudo?

– Como assim?

Ele se levanta, desconfortável, e começa a andar de um lado para o outro enquanto brinca com as mãos.

– Mackenzie veio aqui ontem à noite. Falou sobre você.

Me levanto também, nervosa.

– O que ela disse?

– Ela comentou sobre seu caso com Chase. Disse que eu tinha razão e que você devia mesmo se empenhar mais em esquecê-lo. Parabéns, então. Mas... Ela mencionou algo que a gente não tinha prestado muita atenção.

– O que ela disse, Dustin?

– Bem... A base da Segunda Regra é que os monstros atacam aqueles que amamos para nos atingir. Mas a questão é que, se pensarmos dessa forma, isso não se restringe apenas a relacionamentos amorosos. E Chase não é o único humano que você ama aqui.

Meu coração começa a bater mais rápido. Sei onde ele quer chegar, porém não quero ouvi-lo dizer isso.

– Dustin...

– Olha, eu vou usar as palavras da chefa pra explicar isso. Vamos lá... Século XIX. Você assumiu o corpo de uma garota que foi acolhida por uma família italiana. Aquele seu corpo era bacana, brincalhão e ainda responsável. Mas perto dos seus pais adotivos era uma rebelde, uma teimosa, a ovelha negra da família. Fez de tudo para se isolar deles. E o que você disse para explicar isso?

– “Eles não se importarão com a minha partida se me odiarem”.

– Exatamente. Vocês e todos nós fizemos isso por todos esses séculos e tem dado certo, as pessoas que nos acolhem não sofrem e não são atacadas. Fizemos os monstros pensarem que não nos importamos com eles durante muito tempo. Agora, como é sua relação com sua família atual?

Abaixo a cabeça.

– Eu as amo e elas me amam – murmuro.

– Acho que não preciso dizer mais nada.

– Mas isso é loucura! A L.C nunca tinha falado disso antes.

– Não é loucura, Hailey. É a coisa mais óbvia de todas e nós nunca nos demos conta disso. Pense bem, fazemos isso desde o século XX, quando...

– Água – o interrompo. – Prometemos que nunca mais falaríamos do século XX, lembra?

– Só estou dando exemplos.

– Já entendi o que você quer dizer. – Balanço a cabeça. – Isso expande muito mais o sentido da Segunda Regra...

Dustin assente e também abaixa a cabeça.

– E isso quer dizer que meus... Que Clarisse e Lester morreram porque eu quebrei duas Regras ao mesmo tempo. – Ele solta uma risadinha. – Pelo menos isso significa que tia Kora está salva, hein?

– Você não precisa brincar com tudo.

– Eu sei. Mas fica mais fácil assim.

Volto a me sentar – caio, na verdade – na cama.

– Eu não vou conseguir esquecer Liz e Sophie. Isso já é demais.

– Você não precisa. – Dustin chega mais perto de mim. – Não sei quanto aos outros, mas eu vou te ajudar a protegê-las. Já passei pela experiência de perder humanos queridos e não quero que você passe pelo mesmo.

Ficamos em silêncio, nos encarando e sorrindo um para o outro, e pela primeira vez vejo Dustin como um verdadeiro amigo. Como a chave para restaurar a afeição fraternal entre mim e o Sábio da Água.

Sou muito grata por isso.

– Cara, você vai ficar aí conversando o dia inteiro ou vai ver o filme? – Pergunta Paco, invadindo o quarto. – Eu estou ficando muito ansioso e você não me quer muito ansioso.

– Então desça lá e pegue bebida pra Hailey. – Dustin pisca para mim. – Já estamos descendo.

– Sério? – Paco também se volta para mim. – Luz, você estava indo muito bem até agora, mas garotas humanas normalmente não assistem a filmes de ação. Volte outro dia para ver um filme meloso com a Kora.

– Algumas garotas gostam de filmes de garotos. Estou nesse século a mais tempo que você, Fogo. – Pisco para o pequeno. – Mas eu não sei como vocês podem ficar tão entusiasmados com um filme de ação quando nós vivemos muito mais do que isso todos os séculos. Eu estou mais a fim de criticar e rir da cara dos atores.

– Nós vamos criticar e rir da cara dos atores. Achou mesmo que estávamos animados para ver uma mentira que não pode ser nem comparada a nossa realidade? – Paco ri. Demais. – Esse corpo é engraçado, Luz. Eu gosto dele. Mas podemos ir logo?

Rindo, eu e Dustin enxotamos Paco do quarto. Trocamos mais um sorriso e descemos as escadas com ele.

Numa tarde repleta de salgadinhos de milho, latas de refrigerante, risadas à toa e piadas sobre os efeitos especiais do filme, eu sinto pela primeira vez em muito tempo que estou na companhia de meus irmãos de verdade. De irmãos que eu posso amar e dos quais eu certamente não precisarei me despedir.

E mesmo que esses irmãos sejam espirituais, eu me sinto muito mais humana com esse sentimento.


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Notas finais do capítulo

Até o próximo :)