The Bastard Heir escrita por Soo Na Rae, Lady Ravena


Capítulo 7
Capítulo Extra - A Masmorra do Ogro


Notas iniciais do capítulo

Olá gente! Aqui vai um capítulo extra do castelo, sem relação com Hannelore e os selecionados. É apenas para você se divertirem enquanto esperam pela atualização. A Sofia anda com pouco tempo para escrever, pois está na semana de provas e trabalhos, por isso eu vou postar mais frequentemente, mas logo ela volta e resgata os capítulos perdidos! ^^



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Capítulo 06 – A Masmorra do Ogro

Dafne

Bastille – These Streets

Entregou o jornal ao chefe da guarda real, um homem carrancudo e ignorante. Ele não se incomodou em agradecer ou lhe mandar embora, por isso Dafne apenas virou as costas e continuou seguindo seu caminho. Morar no castelo significava ser uma parte dele, mas não necessariamente uma parte notável. Ela era a filha de uma criada comum. Logo, ela mesma era uma criada comum, ou ao menos era isso que pensavam todos os nobres e cavaleiros que a enviavam pelo castelo atrás de jornais, cartas ou pessoas. Estava cansada de ter de ser um pombo-correio, mas ao menos podia ganhar alguma coisa no final do dia. Alguns lhe davam moedas de cobre, Genova sempre entregava um vintém de prata. Hoje, porém, o dia começara chuvoso, com o castelo cheio e os olhos todos voltados a princesa Hannelore. Não que Dafne já não estivesse acostumada com isso, porém eram pessoas demais, com palavras demais. Pedidos demais.

– Garotinha. – ouviu, e virou, as costas eretas e os olhos voltados para cima. A pessoa que a chamara de garotinha tinha quase o dobro de seu tamanho, lindos olhos azuis e cabelos cacheados, caindo em cascatas até a cintura. Dominique. Mas Dafne eliminou o nome da mente. Não importava quem era, apenas iria servir e ganhar seu vintém.

– Sim? – perguntou, o mais educadamente possível, afinal sabia que Dominique era uma Médici, caçula de uma família muito rica da Itália.

– Você viu Edith em algum lugar? Ela roubou minha meia. – e acenou um pé de meia branca. Dafne costumava olhar para o chão o tempo todo, sendo apenas uma sombra, cega e muda. Muitas vezes surda, outras nem tanto. Mas já estava acostumada com as frases ridículas de Dominique, por isso balançou a cabeça negativamente e, quando a garota suspirou, lhe virou as costas e partiu, pois não havia mais serventia para ela e não ganharia seu vintém.

Acabou parando ao lado da porta da cozinha, onde as mulheres preparavam o café da manhã. Ganhou um pedaço de uma maçã que sua mãe cortava e um afago na cabeça. Era cedo e, embora o castelo estivesse cheio, as pessoas que o enchiam dormiam, e felizmente as pessoas dormem em silêncio. Assim, ela tinha como desfrutar da biblioteca enquanto ninguém acordava para lhe atrapalhar. Dominique era a única que conseguia despertar junto dos servos, um costume de criação que herdou de Aragão. Os reis espanhóis e o príncipe também deveriam estar acordados, porém logo partiriam, pois o rei precisava cuidar de seu reino.

O Torneio resultou em justas divertidas, mas também em um castelo vazio. Dafne teve um dia inteiro para explorar as intermináveis prateleiras de livros do terceiro andar e isso foi como um paraíso, se é que o paraíso seria tão empoeirado. Espirrou muito, e ainda sentia o nariz coçando, porém não se deixaria abalar por uma alergia ridícula. Caminhou a passos largos, deixado para trás escadas e criados, cavaleiros e sombras. O silêncio era seu companheiro, estava disposta a persegui-lo até que ele fugisse de vez.

Não fique fora da cama quando o dia escurecer. – cantarolou baixinho algo que sabia decorado desde bebê, toda criança de Overath sabia cantar. – Pois o monstro espreita a noite e só parte ao amanhecer. – abriu as portas duplas da biblioteca e entrou sorrateiramente, sem erguer ruído. – Ele gosta de criança travessa, gosta de no escuro brincar. Cuidado, cuidado. Ele vai te pegar.

A biblioteca era enorme, cheia de livros e conhecimento. Dafne amava se perder na leitura, porém tinha de ser sorrateira. Era a filha de uma criada e ninguém queria ratos correndo pelo castelo. Além disso, não era certo uma garota de sua idade e nascimento ser alfabetizada. Ninguém precisou lhe ensinar. Bastou um livro, perguntas e observar as pessoas lendo jornais. Às vezes perguntava sobre o que estavam lendo ou qual o título das matérias. Aos poucos juntou o A e o B, até ter o abc inteiro. Durou cinco meses. Hoje já conseguia ler rapidamente palavras enormes e tinha um vocabulário muito bonito e rico, algo que tinha de esconder dar outras pessoas, fingir que não sabia de nada daquilo. Pois caso suspeitassem, era adeus biblioteca para sempre. E Dafne não poderia suportar isso.

Escorregou o dedo pela lombada de Os Três Mosqueteiros, já havia lido três vezes aquele, um de seus favoritos. Puxou Romeu e Julieta, observando a capa dura e negra, com as letras douradas. Era um dos livros mais antigos e raros da biblioteca. Feito manualmente, da época em que não havia impressão e os jornais eram orais. Dafne gostaria de ser uma escriba, caso tivesse nascido alguns anos (muitos anos) antes. Talvez assim pudesse estar ao redor dos livros e ainda escrevê-los. Quem sabe ser uma escritora! Os olhos brilhavam enquanto imaginava, porém algo cortou seus sonhos acordados. Um ruído na porta da biblioteca. Vozes.

Sentiu a espinha se arrepiar. Tinha de sair dali imediatamente! Só podia ser Dominique, vindo visitar a biblioteca mais cedo que de costume. Isso era terrível! Seu santuário estava ameaçado. Dafne colocou o livro de volta no lugar, odiando-se por ter deixado a marca de seus dedos na lombada e na capa. Mas duvidava que Dominique fosse pegar justamente aquele livro, então correu pelos corredores, até estar próxima dos lados mais afastados, onde ninguém procurava os livros. Eram todos documentos antigos, cheios de palavras arcaicas e ramificações da família real que hoje não valiam nada.

–...eu preciso dormir! – ouviu a voz estridente de Cora.

– Mas você tem de ver isto. – Dominique puxou a garota até a janela. No final do corredor, Dafne se abaixou, até estar no chão, e esticou o pescoço, observando-as de longe.

– Isso? Um pássaro morto. – a menina deu um passo para trás. – Chame alguém para limpar isto. Não eu.

– Mas ele não estava morto antes. – Dominique piscou os olhos, atônita.

Dafne bufou. Não tinha como ser interrompida por algo mais banal e ridículo que aquilo. Gostaria que Dominique adquirisse uma forte gripe e precisasse ficar na cama por uma semana inteira. Ou duas. Esperou o momento certo para se afastar lentamente de costas e enfim correr para a saída da biblioteca, escondida pelas altas prateleiras. Havia apenas um ponto onde as meninas poderiam vê-la, e caso o fizessem, poderia dizer que estava lá pois a princesa pedira um livro para ler antes do café da manhã, hábito que Edith tem e já lhe rendeu boas desculpas. Porém não foi preciso se justificar, quando saiu, o corredor estava vazio e as paredes lhe trouxeram abrigo, enquanto corria pelas sombras. O Sol que nascia trazia luz pelas janelas, fracos feixes. O calor emanava os salões. Próxima a cozinha, olhou para trás, observando o corredor que se estendia solitário e silencioso. Sorriu.

O impacto a jogou para trás com força, fazendo Dafne usar os reflexos para apoiar-se de cotovelos na pedra dura e lascada. Mentiria se tivesse de dizer que não havia doído, pois havia. Sentiu as lágrimas no canto dos olhos, mas respirou fundo e fungou, virando um olhar mortal para quem a tinha derrubado. Encontrou o peito grande e os braços desengonçados de Bernadh. O garoto se ajoelhou e a ajudou a se levantar, mas recusou com um tapa ligeiro, enquanto arrumava os cabelos e o vestido esfarrapado.

– Olhe por onde anda. – resmungou, enquanto contornava Bernadh e se colocava em direção a cozinha. A culpa era sua por não estar olhar por onde corria, mas jamais diria isso em voz alta. Entretanto Bernadh segurou seu pulso, impossibilitando a fuga. No momento em que o fez, Dafne gritou. Havia machucado a mão justo naquele local. O sangue riscou os dedos grossos e longos de Bernadh, o garoto que parecia um touro robusto, mas era apenas um tolo servo. Quem ele servia? Alix. Dafne a detestava em todos os quesitos. Se é que havia qualquer quesito em Alix além de sua arrogância exagerada. Era uma filha de criada comum, como todos os outros, porém tinha Bernadh a seu serviço, um burro de carga, um escravo que lhe venerava. Era irritante vê-los juntos. – O que você quer?

– Estava te procurando. – o garoto respondeu, taciturno e frio, como era. Sua voz tinha aquela monotonia pacífica e frenética que Dafne adoraria ouvir lendo um conto de Edgar Allan Poe, porém quando piscou em um segundo, notou que era Bernadh, e não um personagem literário depressivo e interessante.

– Para? – ergueu uma sobrancelha. – Foi Alix quem o enviou para me procurar?

– Sim.

– Então diga a ela que poderia ter vindo pessoalmente fazê-lo. – soltou-se dele, rudemente. Bernadh não se intimidou. Ele nunca se intimidava. Era quase duas vezes mais alto, com grossos braços e pernas. Seria um cavaleiro muito forte, se conseguisse empunhar corretamente a espada e não fosse tão pesado quanto parecia. Entretanto algo tinha de admitir: ele era desajeitado. Estabanado. Completamente sem-jeito. Seus membros pareciam procurar as coisas para bater, como se ele precisasse esbarrar em algo.

– Alix está tomando banho. – ele respondeu, simples. – Mas precisamos de você.

– Claro que precisam. – revirou os olhos, dando-lhe as costas. – Vocês só me procuram quando estão em alguma encrenca, como se eu fosse a salvadora da pátria, uma heroína...

– Deusa. – Bernadh corrigiu.

Dafne o odiava. O odiava de verdade. Poderia empalá-lo agora mesmo, se possuísse esse poder. Ou abraçá-lo. Cerrou os punhos. Odiava, odiava, odiava ele completamente! Odiava o modo como ele se permitia ser comandado por Alix, e odiava o modo como ele esbarrava em tudo. Odiava como falava e como enfeitiçava. Odiava como a convencia e principalmente o odiava por fazer seu coração acelerar daquele jeito estranho e constrangedor.

– Agora sou uma deusa. – gritou, pouco se importando de estar perto da cozinha. – Diga logo para que vocês me querem. Não tenho o dia todo. Preciso consagrar minha mente longe de tolos bobocas como vocês.

– Vamos em uma aventura. – ele respondeu, sem se importar com o adjetivo pejorativo que Dafne lhe deu. Ela piscou, atônita.

– Aventura?

– No poço. Alix ouviu uma voz vindo dele e Genevieve sempre vai até ele de manhã. Achamos que tem alguém preso lá embaixo. – ele colocou as mãos grandes dentro dos bolsos. – É uma expedição.

– E para o que vocês precisam de mim? Não sou lá muito aventureira. Prefiro travar minhas aventuras nos... – mordeu a língua. Iria dizer “livros”, mas não podia. Nem mesmo Bernadh poderia saber de seu segredo. Seu pecado. Ora, uma menina que sabe ler. Que ridículo.

– Alix quer que você nos ajude porque é inteligente. – ele concluiu. Daquele jeito Bernadh conseguia até ser um pouco fofo. O modo como falava, o jeito como encolhia os ombros de frio e escondia as mãos dentro das calças amarradas com um fiapo qualquer de saco de batata que a mãe de Alix havia lhe feito. Dafne sabia que ambos tinham perdido os pais quando eram bebês. Ele sua mãe, durante o parto, e ela seu pai. Alguns meses depois, quando precisaram de soldados para alguma exploração do rei. “Um cortador de cebolas. Ele era só um cortador de cebolas. Não um espadachim”. Por essa coincidência de órfãos, Dafne simpatizava mais com Bernadh. Isso não a impedia de odiá-lo.

– Como sempre, não têm a capacidade de pensar e por isso precisam de mim. Por que não me convidam quando estão passeando pelo jardim, ou quando vão até o sótão? Só me procuram quando necessitam de algo. De algo que só eu posso oferecer. Sabedoria. Astúcia, sim. Coisa que falta muito em vocês.

– Nós a chamamos para vir conosco brincar de reis e rainhas, mas você recusou.

– É claro. Quem sou eu para brincar no chão com bobos como vocês? Brincar é coisa de idiota. Deveriam estar na cozinha, ajudando suas mães e pais, ao contrário de estar perdendo tempo e se divertindo.

– Não tenho mãe nem pai. – Bernadh deu de ombros – E se precisassem de nós na cozinha, chamariam. – ele virou as costas – Se não quiser ajudar, não precisa. Mas Alix não irá desistir tão fácil.

– Eu sei. Conheço muito bem a menina que te usa como um pombo correio.

Bernadh fechou a porta da cozinha suavemente. É claro que recusaria aquilo! Pular dentro do poço abandonado? Quem seria burro o suficiente para tal? Com certeza Alix e Bernadh. Mas se ela não fosse, quem tomaria conta deles? Quem poderia gritar por ajuda? Alix era teimosa, Bernadh era tolo. Suspirou. Que escolha tinha? Se eles se machucassem, depois teria de explicar aos outros que sabia de tudo e mesmo assim não tentou impedi-los. Esperou no corredor, do lado de fora da cozinha, sentindo o cheiro da comida que seria do rei e da princesa, das duquesas, baronesas e condessas, dos bem nascidos, ricos e nobres. Das pessoas injustas.

Enquanto devorava o cheiro com a saliva e as narinas, não ouviu quando a dupla saiu da cozinha, porém despertou do torpor assim que Alix exclamou animada. Odiava sua voz, odiava sua maneira de parecer alegre o tempo todo. E principalmente, odiava como ela se fingia de bondosa e ingênua. Ela não era nada daquilo. Explorava Bernadh como bem entendia, a usava para suas travessuras e “aventuras” para depois dividir a culpa e os castigos. Quantas vezes já havia ficado presa naquela torre abandonada só por ter ajudado Alix e Bernadh? Eles lhe deviam muitas horas de leitura perdida.

– Você mudou de idéia! - a garota de cabelos louro-escuros a envolveu com os braços, porém Dafne se desvencilhou com rapidez e perícia no feito. – Bernadh disse que você ajudaria, mas quase duvidei.

– Ele sempre acerta, não é mesmo? – resmungou consigo mesma, baixinho para que eles não ouvissem.

– Não temos tempo a perder! John logo irá cuidar do jardim, por isso precisamos correr para a casa de ferramentas e pegas uma corda longa o suficiente para descer o poço.

– Longa e resistente. – acrescentou Bernadh, até então silencioso e impenetrável. Dafne o observou com o canto dos olhos. Ele sempre parecia rígido ao lado de Alix, que era tão vívida e calorosa. “São o completo oposto um do outro, e mesmo assim se atraem”.

– Mas como vocês voltarão? – perguntou.

– Escalando. – Alix sorriu, como se fosse óbvio.

– Algum de vocês já tentou escalar uma vez na vida? – ergueu as sobrancelhas.

– Não, mas sempre tem a primeira vez. – Alix riu.

– Vocês me dão náuseas. Eu já tentei escalar – disse, lembrando-se de quando tentou alcançar um livro na última prateleira. Quase morreu afogada pelos livros, se é que era possível. – Não é tão simples quanto parece.

– Bernadh é forte, pode nos puxar primeiro. – ela respondeu, simples.

– Claro, ele faz tudo o que você manda. – revirou os olhos, falando baixinho novamente. Se tornara hábito falar consigo mesma daquele jeito.

– Então está decidido, temos de correr para chegar antes de John ao jardim. – Alix estava animada, de um jeito enjoativo. – Bernadh pode ficar de vigia no poço enquanto vamos buscar as cordas.

– Passo. Prefiro ficar de vigia. – respondeu.

– Tudo bem. – Alix assentiu – Bernadh, vamos então. Nos encontramos no poço.

Assim que eles partiram, Dafne se arrependeu amargamente. Correu para fora do castelo, pelas portas do estábulo. Partiu em direção ao bosque e o poço, onde todos diziam que era proibido ir. Normalmente animais selvagens ultrapassavam as cercas, por isso era tão perigoso, mas os mais velhos insistiam em dizer que povos hereges habitavam as sombras e estavam em busca de sangue para oferecer a seu Deus. Dafne não acreditava em nada daquilo, afinal nunca ouvira falar sobre ataques de tais hereges, quando o rei caçava, não encontrava nada além de javalis.

O jardim estava muito bonito, porém não se demorou nele, atravessou as árvores não frutíferas, a relva baixa tornando-se mais escura e densa a medida que se afastava do castelo. As copas das árvores também cresciam, deixando os raios solares bloqueados e a escuridão reinando lá embaixo. Era difícil se movimentar por lá, cheio de arbustos e galhos caídos, pedras e buracos, por isso pensou se estava tudo bem deixar um desajeitado como Bernadh andando com uma irresponsável como Alix, porém não se demorou no assunto, quando avistou o poço. Era verdade que lá havia certa melancolia, quase mágica. O poço tinha limo crescendo na pedra lisa, a corda do balde da época em que era usado estava cortada e nem sinal de água. Espiou lá dentro, apenas escuridão, não que fosse surpreendente. Sentou-se e encostou-se no poço, esperando. Não havia muito o que vigiar ali, provavelmente Alix já havia deduzido que ela se recusaria a ir buscar a corda e assim a isolaria do grupo. Alix era assim, agia furtivamente, sempre manipulando os outros como marionetes.

Ergueu a cabeça quando ruídos entre os arbustos cresceram e logo a exclamação de uma garota prendendo seu vestido a um arbusto. Bernadh a ajudou, segurando a corda longa e grossa que haviam escolhido. Nas mãos de Alix, ganchos. Provavelmente ela havia trazido apenas por trazer, sem ter uma real noção de para quê usar. Quando os viu, Dafne soube exatamente como escalariam.

– Precisamos de um galho. – decidiu, olhando mais uma vez para dentro do poço.

– Um galho? Para quê? Temos a corda e podemos usar os ganchos para mantê-la aqui em cima. – Alix respondeu. Porém Dafne já havia encontrado o galho ideal, resistente e sem ramificações.

– O gancho não aguentará tanto assim e a pedra do poço é lisa. – disse, de má vontade. – Vou usar o galho para descer. Quando chegar lá embaixo, Bernadh segura a corda e você desce, caso cair, posso segurá-la. Depois eu subo com o galho e o busco.

– Mas o galho não suportará seu peso! E mesmo que suporte, não pode agüentar você e Bernadh juntos. – Alix reclamou.

– Você tem alguma idéia melhor? – Dafne chutou algumas pedras e encontrou outro galho grosso que poderia usar como segundo apoio. – Vou fazer uma escada.

– É arriscado demais. – Alix insistiu.

– Agora é arriscado demais? Antes não era? Quem disse que sempre há uma primeira vez? – sorriu. – Bem-vinda ao aqui e agora.

Jogou as pernas para dentro do poço, sentindo o repentino frio na barriga. Caso escorregasse, cairia metros e metros, até se destroçar no chão. Com certeza morreria. Observou a pedra do poço e encontrou uma falha onde poderia fincar a ponta do galho. Assim que o fez, mudou de posição e procurou do outro lado um lugar onde pudesse fincar o galho. Com uma estaca no meio do poço, sentou-se nela. Sentiu algo na cintura e de repente um leve puxão. Pensou que cairia ali mesmo.

– Vou amarrar, assim posso te segurar caso cair. – Bernadh disse, dando dois nós na corda que amarrou a sua cintura. Dafne deu de ombros, embora estivesse grata. Não sentia mais tanto medo.

Delicadamente, moveu o segundo galho mais para baixo, prendendo-o assim como o primeiro. Mudou de posição, desceu para o segundo suporte e retirou o primeiro do lugar. Assim faria todo o percurso, colocando e retirando as estacas, incansavelmente. Ou melhor, demorada e exaustivamente. Olhou para baixo, será que era tão fundo? Em algum momento a escuridão a obrigaria a apalpar as paredes do poço, pois o Sol não conseguia iluminar tudo.

Precisava de concentração. Ouvia atentamente a respiração de ambos lá em cima, deveriam estar olhando para ela boquiabertos. Lera uma vez sobre sobrevivência em Desertos e como descer um poço seco e como obter água dele. As pernas começaram a doer, os músculos não estavam preparados para tanto esforço. Ainda havia muito para chegar e agora que a luz era escassa tinha de tomar mais cuidado, apalpando a pedra para encontrar os apoios e fincar os galhos. Uma vez quase caiu, quando o galho em que estava sentada escorregou em um dos lados. Entretanto se firmou com as pernas abertas e segurou com uma das mãos a segunda barra recém firmada, quase pendurada. Colocou o galho em qualquer lugar, desde que conseguisse se sentar novamente e por sorte ele não voltou a escorregar.

Quando já estava na completa escuridão, o pé escorregou e se afundou em areia fria e pegajosa, como se estivesse molhada. E estava. Olhou para cima, admirando a altura do poço. Havia conseguido, havia chegado até ali. Soltou a corda que a prendia e observou os galhos ainda fincados na pedra. Os deixaria ali, caso Alix caísse.

– Ei! Tragam uma vela e fósforo, é muito escuro aqui! – gritou, a voz ecoando. Demorou um pouco para a resposta.

– Está bem! – Alix colocou as pernas para dentro do poço e se agarrou a corda, descendo lentamente. – Não me solte, Bernadh! – gritou, embora o menino não fosse nem pensar naquilo. Dafne esperou, até que Alix estivesse com os pés perto o suficiente para ajudá-la a cair com segurança na areia. – Está úmida. – reclamou.

– O poço secou, mas a água ainda está infiltrada na terra. – explicou Dafne. – Bernadh!

– Não se preocupem, não irei descer. Vou vigiar o poço e caso não voltem até o escurecer, vou chamar ajuda. – ele respondeu e então desapareceu. Alix resmungou, irritada, porém Dafne achou que realmente era a coisa mais sensata a se fazer. Alguém que sabia o que fariam deveria ficar para buscar ajuda caso elas se metessem em apuros. Mas ainda era manhã. Não iriam tão fundo.

– Acenda a vela. - exigiu, e Alix obedeceu. A claridade da vela forçou Dafne a afastar os olhos, virando-se para o túnel que levava para um corredor de pedra. Provavelmente era por lá que a água do rio era levada até o poço. – O que vocês queriam procurar?

– Monstros. – Alix olhou ao redor, torcendo o nariz para o cheiro de água podre e o limo nas paredes.

– Monstros? – Dafne se segurou para não rir. – Genevieve deve vir aqui pois pode ser um local importante para ela, onde se sente bem. Talvez ela não queira intrusos.

Neste instante, um som ecoou pelo corredor, onde elas estavam. Era o mesmo som que metal se chocando com pedra. A vela na mão de Alix tremeluziu e dificultou Dafne a ver o que estava lá, além, porém a escuridão não permitiria que visse mais do que uma sombra grande correndo para a esquerda. Piscou. Olhou para Alix e para a corda que tinha em mãos.

– Vamos marcas o caminho com ela. Só iremos andar até onde a corda conseguir chegar, está certo? – falou. – Não apague a luz.

Colocou a corda no canto da parede, onde ninguém a veria caso não procurasse especificamente. Depois, começaram a andar, sempre marcando o corredor com a corda que estava em sua mão direita. Dafne não queria admitir que estava com medo, embora soubesse que monstros não existiam. Ao chegar no final do túnel, onde vira a sombra correr, virou na direção e marcou com a corda, pedindo a Alix para iluminar todas as paredes e só então continuaram. Os sapatos faziam sons de sucção contra a areia molhada e na pedra pareciam ásperos demais. Às vezes batia os braços e os ombros nas paredes, sem ter uma noção exata de onde estavam. O caminho descia, subia, diminuía e se alargava. Às vezes Alix tinha de andar a sua frente, às vezes podiam caminhar lado a lado. Quando a corda chegou ao fim, olhou o túnel, sem encontrar nada além da escuridão.

– Vamos voltar, se continuarmos daremos de cara com o rio.

Alix concordou e dessa vez foi ela a líder da caminhada, segurando a vela e seguindo a corda. Demorou bem mais para voltar, pois às vezes perdiam a corda ou olhavam para o lado errado e assim o pânico as tomava, até que finalmente encontravam a parede certa. Dafne pensou ter ouvido mais alguns barulhos, porém nada que fosse realmente notável. Talvez fossem as goteiras do túnel ou o som do rio corrente. De volta ao poço, lá em cima a luz penetrava mais fortemente pelas árvores, o que significava que já havia amanhecido totalmente e que logo chegaria a hora do almoço, teriam de voltar antes que suas mães notassem o desaparecimento.

Dafne pensou em chamar Bernadh para perguntar quanto tempo tinham, porém o sopro de vento frio balançou seus cabelos e quase apagou a vela. Vinha da direção de onde haviam visto a sombra e por onde haviam seguido. Alix reprimiu um gemido, encolhendo-se. Dafne não sabia se aquilo era bom ou não. Desde que chegaram o ar estava calmo e até quente, em comparação ao ar livre do bosque. Aquilo com certeza era a respiração de algo muito grande, ou uma corrente de vento que vinha de uma tempestade. Deu um passo atrás, hesitando consideravelmente em voltar.

M-me desculpe. – ouviu-se uma voz chorosa e fina, quase sussurrante, clamando por misericórdia. – E-e-eu não q-queria. Juro. Escorregou de minhas mãos!

Dafne sentiu a mão de Alix agarrar seu braço. A vela foi escondida por seu corpo e assim a luz diminuiu, forçando Dafne a espremer os olhos, procurando qualquer sinal de quem falava. O som de passos se tornou mais alto e a voz disse novamente. Agora visivelmente feminina.

Posso comer pão para o almoço e o jantar, eu juro. – estava próximo demais.

– Quem é você? – gritou. – Apareça agora!

Os passos cessaram, a voz desapareceu. Nada. Nem mesmo uma respiração além da dela e de Alix. A cabeça de Bernadh apareceu no alto do poço e ele perguntou se estava tudo bem. Respondeu que sim, embora tivesse sérias dúvidas. Alix ainda estava trêmula e a vela obedecia seus movimentos frenéticos. Agarrou a luz de sua mão e olhou firmemente dentro de seus olhos.

– É uma humana. Está assustada. Vou procurá-la.

– Não! E se for uma armadilha? – Alix gemeu, agora sim parecia prestes a chorar. Estava amedrontada. Ela não podia ficar mais tempo ali embaixo.

– Você tem de voltar. – disse, com confiança. – Bernadh! Jogue alguma corda. – O menino jogou a segunda e última corda, e Dafne empurrou Alix até lá. – Eu vou apenas olhar mais um pouco.

– Tome cuidado! – Alix pediu e começou a subir, lentamente, pernas bambas e braços fracos. Bernadh a segurou e esperou.

Dafne virou-se e olhou além do túnel. Só havia uma coisa a fazer. Colocou a corda no chão e começou a marcar o caminho, enquanto corria para o final do túnel, para a direita e então para o lugar de onde a sombra havia corrido. Encontrou algo brilhante, refletindo a luz da chama. Era uma bandeja de prata. Havia porcelana quebrada e cheiro de sopa. Pão e manteiga, junto com um jarro de água. Observou. Estava tudo muito fresco, comida recente. Aquela porcelana ricamente decorada e a bandeja de prata só podiam ser do castelo. Como chegaram ali?

– Não se preocupe, sou do bem. – disse – Por favor, apareça, quem quer que more aqui no poço. Sou do castelo.

Não é culpa dela. – a voz respondeu após um longo silêncio. – Eu deixei cair! Desculpe-me!

– Tudo bem. Temos muitas outras porcelanas no castelo, uma não fará falta. – disse, aproximando-se lentamente da direção da voz, com a vela em frente ao corpo. O pavio já estava muito curto e a vela na metade. Não conseguiria passar mais de uma hora lá embaixo.

– O que é isto? – a voz questionou. – Na sua mão. O que é?

– Uma vela. Ela nos permite ver no escuro. Nunca havia visto uma antes? – aproximou-se mais. A voz resmungou algo quase inaudível e fungou. – Você está bem? Caiu no poço?

– Não cai em nada. Eu moro aqui. – a voz respondeu com irritação ligeira, porém tão leve que Dafne ignorou. – Moro aqui onde não tem velas.

– Entendo. E Genevieve traz comida todos os dias para você, então. É por isso que ela sempre vem aqui de manhã. – Dafne piscou, descobrindo o mistério rapidamente. “Monstros. Eles achavam que eram monstros”. – Quantos anos tem? Qual seu nome?

– Não conheço Genevieve. Não sei quantos anos tenho pois não sei quanto tempo se passou desde que vim para cá. Mas quando vim, tinha três.

– Três anos? – Dafne quis rir – Ninguém sobrevive em um poço apenas com três anos. O poço está seco há quinze e mesmo assim ainda é úmido. Como pode ter passado o tempo aqui tendo três anos de idade? Deixe-me tocá-la, para saber qual sua altura.

A menina recuou, porém depois se aproximou da luz. Dafne distinguiu seus pés, descalços, e a barra do vestido, nos joelhos. Suas mãos eram encardidas e as unhas... negras. Havia machucados por todos os lados e hematomas, talvez ela não notasse, mas estava muito suja e mal-cheirosa. Quando ergueu a vela para ver seu rosto, a garota recuou, assustada.

– Isto machuca os olhos! – reclamou, e Dafne pediu desculpas. A garota pegou a mão de Dafne e a levou até sua cabeça. – Esta é minha altura. Consegue dizer minha idade?

A garota era alguns centímetros maior. Talvez cinco centímetros, algo considerável. Deveria ser alta como Bernadh, mas magrela, fina... Dafne sentiu sua pele áspera das mãos enquanto a garota lhe segurava.

– Provavelmente sete ou oito anos. Eu tenho oito, logo farei nove. Meu amigo é alto como você, mas tem apenas sete anos e meio. Qual seu nome? Meu nome é Dafne, sou filha de uma criada do castelo, Abigail.

– Prazer, Dafne – a garota curvou a cabeça, educadamente – Me chamam de Barbara. Ou Babeara, mas prefiro o primeiro. Sou filha de Mãe.

– Todos somos filhos de mães. – Dafne riu, porém Barbara não seguiu seu exemplo. – Não me diga que sua mãe nunca lhe contou seu nome.

– O nome dela é Mãe. Sempre a chamei assim. – Barbara piscou, confusa.

– Então sua mãe deve ser Genevieve, a líder das criadas. Ela é a mais importante. Mas porque sua mãe a colocou aqui?

Barbara pensou.

– É onde eu moro. Sua mãe não lhe deu uma casa?

– Sim, mas moro com ela. Não sozinha.

– Mãe não pode morar comigo pois ela tem sua própria casa. – Barbara respondeu, simples. – Mas ela cuida de mim. Traz comida e cobertores.

– Sei de um lugar onde poderia ter muita comida e cobertores. Se quiser, posso te levar lá.

– Mãe disse para nunca sair daqui. É perigoso lá fora. – Barbara recuou, saindo do alcance da luz. – Pessoas querem fazer mal a nós.

– Algumas. Mas eu não irei te machucar. Só quero ajudar. Meus amigos estão nos esperando. Venha, Barbara, irei te dar muitas bandejas e porcelanas para que sua mãe não brigue com você. Aposto que ela entenderá. Há espaço na casa dos criados, pode dormir conosco.

– Mas... Ela não vai me encontrar aqui, ficará preocupada. – Barbara suspirou – Não quero trazer problemas.

– Não trará. – Dafne prometeu. – Venha.

Barbara a seguiu, surpreendentemente. Quando pediu para Bernadh subi-la, o garoto não se recusou, mesmo sem saber quem era Barbara. Quando a menina saiu do poço, foi sua vez de subir. Ao contrário de quando usou as estacas, agora não precisava mais delas, por isso as deixou lá embaixo, enquanto Bernadh a puxava para a luz. Do lado de fora, Barbara contemplava o bosque e principalmente a luz do Sol.

– É mais claro que sua vela. – comentou, sorridente.

Só então Dafne percebeu o quanto Barbara estava suja e o quanto era bonita. Mesmo naquelas condições. Ela era um pouco mais alta que Bernadh, tinha olhos verdes como os seus, porém seu verde era mais escuro. Os cabelos castanhos caíam pelas costas, ultrapassando a cintura, ensebado e brilhoso de oleosidade. Sua pele estava bege, como a pele de um defunto, com camadas e mais camadas de sujeira e suor. Seu vestido estava puído e muito pequeno. As mangas caíam dos ombros, a barra tocava os joelhos, deixando suas canelas finas e machucadas a mostra. Seus pés eram duros, acostumados com o chão de pedra do poço. Seus lábios eram rachados e ressecados, o queixo tinha uma cicatriz e o nariz estava descascando. Sardas. Tantas sardas que ela quase não se parecia com Genevieve. Entretanto tinha as mesmas sobrancelhas e o rosto fino. Era muito bonita, mas estava suja e magra como um esqueleto.

– Céus! – Alix exclamou – Você está bem? Como caiu no poço? Se machucou?

– Não caí. E estou bem. – Barbara recuou, assustada com Alix. Dafne pediu para eles não sufocarem a nova garota, enquanto ela apreciava o bosque. Aos poucos, se aventurava entre as árvores, saltando pedras e rindo para borboletas, pássaros e esquilos. – São tão bonitinhos. Não sabia que existiam essas coisas.

– São animais. Normalmente. – Dafne informou.

– Pensei que só existissem coisas como nós. – ela comentou – Quantos animais existem?

– Depende. No bosque? Algumas centenas. No mundo? Milhares.

– Milhares? – Barbara piscou – E nenhum deles vive no poço?

– Talvez baratas e ratos. – deu de ombros.

Barbara agarrou uma formiga e a observou de perto, até que gritasse.

– Dói! Ela me mordeu!

– Claro, é uma formiga não domesticada. – riu. – Solte-a, ou ela te morderá mais.

Assim Barbara fez. Alix e Bernadh estavam apenas observando, mas resolveram se aventurar e criar amizade com a novata.

– Não era triste viver sozinha no poço? – Alix perguntou.

– Não sei. Eu sempre vivi lá. – Barbara deu de ombros.

– Mas agora está conosco. – Alix sorriu. – Nós iremos cuidar bem de você.

– Estou? Não. Só vim ver os amigos de Dafne. Mãe logo virá, e não quero que ela fique preocupada. Já vi muito de luz. – Barbara virou-se para Dafne – Obrigada, por me apresentar aos animais e por me mostrar uma vela tão grande no céu. – ela olhou para o Sol e sorriu – Mas preciso voltar. Não gosto de aqui fora. Não gosto do ar e da claridade.

– Tudo bem, Barbara – Dafne sorriu, considerando a preferência da garota. Ela era como ela. O poço era seu cantinho especial. Onde ninguém a incomodava. Assim como a biblioteca era especial para Dafne. – Voltaremos amanhã.

Barbara acenou.

Bernadh ajudou a garota a descer no poço.

– Pode ficar com a vela e o fósforo. Só poderá usar uma vez. E tem de riscá-lo e colocar o fogo neste fio. – mostrou Dafne. – Assim vai poder ter um pouco de luz quando quiser.

– Sim. – concordou Barbara e virou-se, desaparecendo no poço.

Quando Dafne se virou para ver Bernadh e Alix, ambos estavam se entreolhando com estranhamento. Ela revirou os olhos e começou a caminhar para fora do bosque. A última coisa que queria era segurar vela para eles.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! Dafne é uma menina com personalidade forte e teimosia exagerada.