The Bastard Heir escrita por Soo Na Rae, Lady Ravena


Capítulo 6
Capítulo 06 - Um Cocheiro e o Filho do Conde


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura. Capítulo feito totalmente por mim, Meell Gomes.



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Aaron Belshoff

“Tudo, tudo tem sua lógica: o riso, a dor, a alegria e a tristeza; a vida, a morte e o próprio destino.” – Afonso Duarte de Barros

Daughter – Youth

Ela endireitou sua gravata, enquanto o Senhor Belshoff colocava um charuto na boca. Edeline lhe sorriu, tentando passar confiança, mas não era como se precisasse que alguém lhe desejasse sorte, por isso apenas desviou os olhos dela para encarar a mulher de meia idade com belas feições e um chapéu de moda pendendo para a direita.

– Seja um bom menino na Corte. – ela sorriu, embora sua voz estivesse carregada de orgulho, satisfação e... Vaidade? Afinal era seu filho primogênito quem havia sido selecionado pela própria princesa para disputar sua mão e o reino de Overath. – Olhe só este cabelo, onde está aquela criada inútil?

– Está bonito, mamãe. Ele usará a boina, lembre-se. – Edeline entregou o objeto, e a mulher pareceu satisfeita ao colocá-lo sobre a cabeça de Aaron, escondendo o cabelo rebelde e castanho como os dela. Seu sorriso se alargou ao notar como tinha feito um bom trabalho. Ele estava até mesmo cheirando bem. “Não aos livros empoeirados do sótão”.

Instintivamente, Aaron apalpou a capa dura do livro que estava em seu bolso, no paletó. Ainda bem que ele coubera, pois não conseguiria suportar uma viagem daquela distância sem uma distração. Uma criada se aproximou e informou que todos os baús do jovem senhor Belshoff já estavam no coche e só faltava ele para que pudessem partir. Aaron não estava particularmente animado para aquilo. A verdade era que pouco se importava com a competição. Seus pais decidiram aquilo para ele e provavelmente seria o mais bonito da competição (não que quisesse se achar belo, porém era o que todos diziam, inclusive as pessoas que não eram de sua família). A princesa poderia muito bem gostar de seu rosto e logo gostaria de sua astúcia, caso ela mesma tivesse alguma astúcia.

– Desmanche esse cenho franzido. – Callisto, a senhora Belshoff, disse com rigidez. Aaron obedeceu, como era de se esperar.

Não havia franzido o cenho por qualquer motivo bobo. Ele realmente se surpreendeu: estava pensando exatamente como eles. Quer dizer, como sua mãe. “Você é dono do mundo”, riu-se internamente, embora soubesse que caso fizesse, todos encarariam como animação para ir até o coração de Overath. Mentira. Talvez a viagem fosse mesmo boa para desintoxicar aquela presença vaidosa e orgulhosa que sua mãe lhe causara todos estes anos. Sua natureza era calma, não fulminante. Não queria se transformar em alguém como ela. “Não sou belo. Sou razoavelmente aceitável”. Era melhor começar agora, pois não queria se tornar um mendigo de elogios.

A porta da grande casa dos condes Belshoff de Tryer se abriu dando espaço ao jardim. As escravas estavam enfileiradas e curvaram sua cabeça quando passou, todas desejando uma boa viagem. A cor da pele delas era escura e brilhava contra o Sol. Suor. Aaron olhou pelo canto dos olhos quando sua mãe e seu pai saíram da casa. O imponente conde Christoff acenou em despedida, embora sua carranca matinal estivesse bem delineada. A senhora Belshoff sorriu e se despediu acenando o lenço branco, enquanto lágrimas falsas caíam de seus olhos. E Edeline... Talvez a única despedida realmente e verdadeiramente triste fosse a dela: braços caídos, ombros encurvados, um sorriso bobo de dentes desalinhados. O cabelo ainda estava trançado e ela sussurrou um inaudível “adeus”.

Aaron só esperava que no tempo que se separasse da família os pais não resolvessem casar sua pobre irmãzinha com um barão velho qualquer. “Um duque seria muito melhor”.

O coche era aconchegante. E estava sozinho. Sozinho. Algo raro desde o dia em que ficara sabendo que haveria uma Seleção para o novo Príncipe de Overath. Tirou o livro do bolso e jogou longe a boina, bagunçando os cabelos enquanto se aconchegava contra o estofado azul e vermelho. Macio. A luz que entrava da janela era boa para a leitura, não forte demais, nem fraca demais. Era um amanhecer esplêndido e tranqüilo do lado de fora, onde o bosque que cercava a casa dos Belshoff crescia. O cocheiro gritou para os cavalos, enquanto cantarolava alguma canção de taverna.

Talvez um pouco mais de brilho. Era disso que eu tanto ansiava. Não há fervor maior que este que te ilumina tanto e que mantém vivo por ti. Amor, sim, é este o sentimento que evapora meus sentidos e minha consciência. E você, minha adorada, é a aurora radiante que transforma minha noite de pesadelos em um amanhecer caloroso de prazeres que outro homem não poderia experimentar. Quão sortudo alguém pode ser? Se todos têm a mesma sorte que eu, então não temos mais que reclamar a Deus.

Fechou as pálpebras e pressionou as têmporas. Maldita dor de cabeça que viera justo agora. Sempre acordara cedo e sempre lera pela manhã, então qual o problema? Teria sido o café da manhã que não comeu? A culpa não era sua, pois sua mãe estivera tão agitada com os preparativos que ele não pôde comer. “Seja um garoto perfeito.”, era estranho ouvi-la chamando-o de garoto, mesmo após completar a maior idade e estar indo competir pela mão de uma princesa. Já tinha idade para ser um conde. Substituir seu pai com dignidade. Não que desejasse aquilo, ele só desejava que aquela maldita dor de cabeça fosse embora e que pudesse ler em paz.

– Senhor. – uma voz profundamente pobre de tons nobres disse. – Senhor.

– Sim? – abriu os olhos para olhar o cocheiro. O homem havia parado a coche e os cavalos bebiam água em um bebedouro comum de vilarejo. Espiou pela janela e conseguiu ver as pessoas andando pelas ruas, os sapateiros e os ferreiros. Piscou. Não deveriam estar indo para o castelo de Overath? – Por que paramos?

– Senhor, houve um problema. Uma das rodas atolou perto deste vilarejo, na estrada e precisei quebrar o disco inferior para arrastá-la até aqui. O senhor não notou?

Aaron piscou. Olhou para o céu e então para o livro que havia escorregado de suas mãos. Quanto tempo ficara como os olhos fechados e a mente dispersa? Francamente, seus devaneios estavam se tornando um problema. Assentiu para o homem e levantou-se, abrindo a porta do coche e saindo para a luz solar. Algumas pessoas desviaram o olhar para ele, porém Aaron não se importou. Aquele era um vilarejo pequeno, as pessoas não estavam acostumadas a ver um coche com as bandeiras reais e a insígnia do reino. “Devem pensar que sou importante. Pobres almas”. Ele mesmo pensava que não era mais que uma marionete de seus pais e mesmo assim aceitava o emprego. “Posso viver minhas outras vidas nas páginas de um livro”.

– O senhor parece pálido e cansado. Quer entrar em uma taverna para comer algo, senhor?

– Me chame de Aaron, por favor. – disse. Detestava quando as pessoas “comuns” iniciavam e terminavam todas as frases com “senhor”. Ele era humano como todos os outros, então não era correto ser tratado como um soberano, enquanto muitos eram jogados na rua e chamados de nomes horríveis e detestáveis. – E eu realmente adoraria comer algo.

– Conheço um lugar com uma ótima sopa. – o homem comentou – Por favor, me chame de Brad, se – ele engasgou – Digo, Aaron.

– Claro. Mostre-me.

O homem assentiu, desceu do coche e começou a caminhar tranquilamente. Não deveria temer que alguém roubasse os cavalos ou o coche, afinal aquele era um vilarejo pequeno demais para alguém ir longe. Todos se conheciam, todos confiavam em seus vizinhos. Era o tipo de lugar onde a vida era monótona e sem surpresas, onde um grupo de aventureiros seria considerado irresponsável e onde aventuras não eram bem-vindas. De um ponto de vista real, era um lugar bom para viver. Ninguém lhe incomodaria enquanto estivesse lendo. Por outro lado, seria difícil encontrar algum escritor de aventura ali, um de seus gêneros favoritos. Embora gostasse de sentir o coração palpitar enquanto lia, Aaron não gostava da adrenalina real, aquela que fazia seu sangue ferver e os membros congelarem. Balançou a cabeça. Estava se perdendo em pensamentos triviais novamente.

– Aqui está, senhor. Digo, Aaron.

– Obrigado, Brad. – ele olhou o lugar. Era bom, para um vilarejo pequeno. Uma placa dizia “Taverna do Anão”, um nome muito sugestivo. Quando entrou, notou que realmente deveria ser bom, pois estava cheio. Era manhã, as pessoas normalmente freqüentavam as tavernas de noite. Encontrou um banco de frente para o balcão, onde uma moça de rosto simples e roupas encardidas atendia os clientes com entusiasmo.

– Obrigada pela preferência, aqui está seu vinho. A cerveja já está sendo fervida. Por favor, economizem a nossa manteiga. Jovem senhor, vejo que tens roupas muito caras. Que honra alguém de tal nascimento vir até o Anão. – Aaron só notou que a moça estava falando com ele quando ela piscou, ansiosa.

– Eu que agradeço a hospitalidade. – ele deu de ombros, sentando-se – Poderia me servir um pouco de sopa?

– Sopa? Desculpe, mas só servimos a sopa durante o jantar. – ela sorriu – Mas tenho vinho quente. – Ela notou como os ombros de Aaron caíram e acrescentou – Posso incluir mel, se quiser. Por conta da casa.

– Não precisa ser tão gentil. – ele respondeu, porém notou que nunca havia experimentado vinho fervido com mel. O máximo fora os banquetes que seu pai dera, onde bebericou um pouco do vinho envelhecido da vinícola dos fundos. – Mas posso aceitar um copo pequeno.

Ela sorriu e se afastou, trazendo rapidamente o copo com o tamanho do dedo menor de Aaron, cheio de um líquido escuro e o brilho profundo do mel se dissolvendo. Fumaça subia pelas laterais e Aaron apreciou o cheiro. Inclinou-se sobre o balcão e notou que gotas de água escorriam do copo. “Deve ter sido lavado com água quente para permanecer aquecido por tempo suficiente para o cliente beber tudo sem esfriar”. Admirou a engenhosidade da tática de colocar primeiro o mel, formando uma camada protetora no fundo do copo, onde o mel derretido se dissolvia lentamente, deixando cada gole ainda mais doce que o anterior.

– Senhor? – a moça disse, constrangida – O que está fazendo?

Aaron piscou, notando que estava encarando o copo com fervorosa curiosidade. Afastou-se rapidamente, as bochechas ruborizando. Deu de ombros, e ela foi atender algum outro cliente. Aaron queria ter trazido o livro, seria ótimo beber o vinho lendo as declarações doentias e febris de um viúvo prematuro. “Estava no final do livro, e a dor de cabeça me pegou”. Piscou. O vinho iria piorar a dor de cabeça! Mas já estava na metade do copo. Suspirou. Os prazeres da carne lhe convidavam, e ele engoliu o resto do mel, sentindo a língua áspera e os dentes adocicados. Lembrou-se, de repente, de um dos livros que lera na semana passada. Um beijo suave, doce como mel. Talvez fosse o beijo de um demônio, ou de uma sereia. Mas mais me parecia um anjo, abençoando-me.

Como seria beijar uma boca doce? Meditou naquilo, até que a moça voltasse e retirasse o copo de lá. Seu sorriso surgiu.

– Senhor, são três cobres.

– Claro. – respondeu automaticamente, retirando do bolso uma moeda de prata. Era tudo o que tinha. – Pode trocar?

A moça piscou, atônita.

– Creio que não temos troco suficiente.

– Então fique com ela. Pela gentileza. – deu-lhe as costas. – Qualquer dia nos veremos, Adelaide.

Não esperava resposta, afinal aquele era o final dramático de um romance antigo que quase ninguém conseguia ler até o final, por ser muito triste. Porém a moça sorriu e acenou.

– Um dia, meu Thoren.

O coração de Aaron hesitou uma batida, enquanto sua espinha congelava. Ela havia lido Rajadas de Primavera. Sorriu para si mesmo, sem olhar para trás, enquanto abandonava a taverna. Se apaixonara por ela, disso tinha certeza. Aaron já havia perdido as contas de por quantas moças havia se apaixonado no último ano. Não eram amores verdadeiros, era mais uma ilusão calorosa e boa, que o invadia hora a hora, enquanto o mundo girava e ele permanecia quieto em seu canto silencioso. Gostava desses amores passageiros, por mais inofensivos e intocados que fossem. Ele normalmente se esquecia das moças em algumas semanas, e elas também deveriam se esquecer dele. Mas essa era a justiça de Deus.

– Boa sopa, não? – Brad o cumprimentou, quando retornou para junto do coche.

– Não havia sopa, mas o vinho é ótimo. – assentiu, subindo e agarrando o livro. Era um ótimo momento para ler, agora que o vinho fazia efeito e a dor de cabeça não o invadia. Brad terminou de consertar a coche e partiram antes do Sol estar completamente exposto. Era um dia nublado, infelizmente, algo que só se tornara claro quando já estavam na estrada.

º º º

“Enquanto não se desmancha, o defunto ainda é um homem, sujeito às ridículas etiquetas dos homens e, até que a terra o receba e o possua, por essas etiquetas é ele governado” – Raquel de Queiroz

Bastille – Daniel in The Den

Terrível, era terrível! O livro acabara na metade da viagem e já escurecia. Brad assobiava mais uma de suas canções desafinadas e os ouvidos de Aaron choravam, enquanto observava o Sol se pôr tediosamente, escondido pelas nuvens. Nem mesmo o céu era uma aquarela bonita de laranja, amarelo e rosa, como descrevia os livros. Era uma escuridão agonizante, onde as nuvens escondiam também as estrelas e a Lua. Talvez fosse um mal presságio, talvez um aviso de Deus: era melhor não continuar. Estava na Bíblia que o céu era o quadro de anúncios de Senhor, ou algo assim.

– Está frio. – comentou Brad – Melhor parar em alguma estalagem e passar a noite. O castelo não está tão longe. Se não fosse as nuvens, seria possível ver a cachoeira entre aquelas montanhas. – o homem apontou. – O senhor não se incomodaria, certo? É mais seguro passar a noite em uma estalagem.

Aaron concordou, embora não estivesse entusiasmado em atrasar ainda mais sua viagem até o coração de Overath. Demoraria tanto para conquistar o coração de Hannelore e finalmente ter tempo para viver suas vidas literárias? Quão difícil seria conquistar uma garota? Sua mãe e Edeline sempre gostaram dele, não podia ser tão diferente delas, certo? Nos livros era sempre simples e fácil, era só agir naturalmente e elogiar o cabelo dela, pronto. Resmungou algo consigo mesmo que ele não ouviu direito. “Devo ser o único ser humano que ralha consigo mesmo e se ignora como um filho rebelde”. Tal pensamento foi tão absurdo que desistiu de se entreter consigo mesmo.

– Precisa de ajuda? – perguntou o dono da estalagem onde Brad havia parado o coche. O cocheiro recusou e levou um dos baús até o quarto de Aaron. O estalajadeiro era velho, com os cabelos brancos caindo nas costas. Parecia estrangeiro, embora a pele fosse branca, igual a dele. Notou como seus olhos eram afiados, felinos. “Um meio-gato?”. – O que está olhando, rapaz?

– Seus olhos. – disse Aaron, e logo ruborizou. Devia estar sendo deselegante, não queria ser mal educado com o estalajadeiro, entretanto o mesmo sorriu, fazendo seus olhos pequenos se fecharem.

– São estranhos? – riu – Pode ser para você. Mas todos têm eles, de onde vim. A Ásia.

Um asiático. Aaron piscou, atônito. Era raro um estrangeiro, principalmente com uma estalagem no meio da estrada. O homem concordou com Brad de deixá-los passar uma noite, incluindo a refeição, por dez moedas de prata. Por sorte, Brad tinha dinheiro para bancar a estadia e logo estavam acomodados no quarto.

– Talvez o senhor prefira dormir sozinho. – sugeriu Brad, cortês.

– Por que diz isto? – Aaron piscou, atônito. Será que o cocheiro o detestava? Talvez ele tenha agido um pouco arrogante demais. Era difícil deixar de agir como um conde, quando se era filho de tal. Porém o homem negou com a cabeça rapidamente.

– Não sou eu, senhor. Mas talvez seja mais confortável para você, afinal...

– Afinal sou filho do conde Belshoff? – ergueu a cabeça. – O que é isso? Sou um pirralho mimado, agora? Pode passar a noite comigo, Brad. Afinal é terrível dormir em um lugar desconhecido sem amigos.

Brad piscou. “Amigos”. Aaron notou como ele ficou honrado em ser chamado de amigo, por isso sorriu consigo mesmo. Deitou-se na cama dura, sobre os lençóis ásperos e o travesseiro baixo. Era horrível ler deitado assim, porém conseguiu. Enquanto relia seu romance, Aaron pensou em como seria no castelo, quando tivesse de passar as noites lá, ou quando precisasse socializar com os demais homens. Eram todos nobres, porém nada queria dizer que não seriam tolos com muito dinheiro e pouco juízo.

Apagou as velas alguns minutos depois, quando a leitura se tornou entediante. Brad já roncava, porém não se incomodou com isso. Virou-se na cama e colocou um braço por baixo da cabeça. Era estranho encolher-se ali, como uma criança assustada. Não estava realmente surpreso com aquele desconforto. Era comum que personagens que tinham de dormir em lugares novos sentissem aquela sensação. Mas novamente, viver era diferente de idealizar. E novamente ele preferia a vida literária. Fechou os olhos, sem conseguir ver o quarto ao redor, pois a escuridão era total, enquanto a lua estava escondida pelas nuvens.

O sonho começou escuro, como o próprio quarto. Era tudo penumbra, e então uma luz o acariciou a cabeça. Mas não era uma luz calorosa, não era como o Sol ou a chama de um candelabro. Era algo frio, irritante. Uma luz fria. Olhou os próprios braços, curtos, e ao redor o breu. Quando as pessoas surgiram, cercando-o, notou que eram todos adultos e todos gigantes. Ou seria ele baixo demais? Então entendeu: sou uma criança. A primeira pedra o atingiu no joelho, forçando-o a cair com o mesmo no chão. Em seguida alguém chutou a terra em frente ao seu rosto, jogando-a em seu rosto e em seus olhos. Curvou-se, chorando, enquanto a visão ardia. Sentiu as costelas explodirem dentro da pele, enquanto o chutavam. Engasgou-se com o sabor de sangue, ao morder a parte inteira da bochecha. Agarraram seus cabelos e o puxaram com a garganta protuberante, a lâmina brilhava, pronta para abri-la.

– Uma criança abençoada. – diziam as vozes melodiosas, num ritual. – Uma criança pura.

A canção cresceu e por todos os lados a escuridão se tornou uma floresta e a lâmina se tornou um punhal. Os homens eram selvagens e a fogueira que ardia friamente tinha um fogo azul fantasmagórico.

– O sangue purificado! – gritou quem quer que estivesse segurando-o pelos cabelos.

De algum modo, Aaron entendeu que a criança era ele, o sangue era seu e a fogueira seria usada para consumir os seus restos mortais, assim que os selvagens abrissem sua jugular e extraíssem o sangue. Tentou se levantar, porém um joelho apareceu atacando sua coluna e o fazendo cair de joelhos novamente. As vozes falavam em línguas estranhas, línguas antigas, mágicas. Cheias de maldições e mortes. Conseguia sentir aquilo, era assustador. Não só assustador, ele estava em pânico. O suor escorria pelo canto da testa, enquanto esperava sua hora. Seria Deus tão injusto para que morresse jovem em um ritual selvagem? Não podia ser aquele seu fim. Seus pais não cometeram pecado algum, pelo que sabia, para ter de pagar com a vida.

– Uma criança dos assassinos!

– O inocente! – gritou uma mulher, a insanidade havia se apoderado de sua voz que um dia fora bonita. – Sacrifiquem o inocente!

– O pecador! – concordaram as demais vozes. – O fruto do pecado! O filho de Adão! Matem-no.

A lâmina pressionou sua pele. Aaron conseguia ouvir os batimentos dentro do ouvido, de alguma forma. Não queria morrer. Tinha medo de não ser digno dos céus, de Deus não estar satisfeito com sua vida na Terra. Queria fazer mais coisas, ajudar mais pessoas. Ser uma pessoa melhor. Mas quando o filete quente escorreu para dentro do colarinho, notou que era tarde demais.

Pai, por favor, me perdoe pela vida insignificante que vivi.

– Senhor? Senhor Belshoff? O senhor está bem?

A voz de Brad o tirou de seus sonhos de um passado distante. Piscou. Estava suando frio, a cama estava molhada e a voz engasgada. Notou que estava agarrando a própria garganta. Sentiu o local onde a cicatriz havia se transformado em um sinal do milagre. Suspirou. Era verdade, Deus o salvara aquele dia. Mordeu os lábios e levantou-se. O corpo parecia pesado, como se a alma não estivesse acostumada com ele. Como se de repente viera do seu corpo de criança para aquele grande e desajeitado. Brad o ajudou a se sentar, porém recusou-o quando se ofereceu para vesti-lo.

– Não é preciso, estou apenas cansado.

Brad não pareceu convencido, mas o deixou sozinho.

Precisava descansar, embora tivesse acabado de acordar. Não estava em condições para... Piscou. Que horas eram? Olhou a janela, onde o Sol estava brilhando fortemente. Já era dia. Muito depois das dez da manhã. Respirou fundo, abaixando-se para colocar as botas. No lado de fora, encontrou o estalajadeiro servindo água para Brad, que comia pão com manteiga. Aproximou-se e começou a comer, ingerindo tudo o que conseguia. Esquecera-se que fora dormir sem jantar na noite passada. Por mais de uma vez sua cabeça caiu e os pensamentos lhe roubaram do mundo real. Estava quase esquecendo seu livro no quarto, quando lembrou-se dele e voltou correndo. Seu único entretenimento! Como o estava tratando mal.

Aaron não se lembra do resto da viagem, pois dormiu. Pesada e cegamente, dormiu até que Brad lhe cutucasse o ombro e anunciasse que estavam no castelo. Os criados já haviam levado seus baús, o cavalo já havia sido levado até os estábulos e Brad queria despachá-lo logo no destino para ir finalmente descansar na casa dos criados. Levantou-se, coçando os olhos. Sentia a capa dura do livro contra a boca do estômago, agora vazio. As forças da natureza lhe diziam que era hora de usar as latrinas, porém se ergueu com dignidade, caminhando até os degraus de pedra do castelo de Overath, onde a família real estaria. Surdo. Cego. E talvez mudo.

– Senhor? – ouviu, porém a voz lhe pareceu um sussurro. Não conseguia ver realmente quem lhe chamava, se é que falava com ele. Estava tudo tão distante, tão longínquo. – O senhor está bem? Quer que chame o meistre? Por favor, Genevieve, procure por...

– Não é preciso – respondeu demoradamente, com pausas longas. – Estou bem. A viagem me deixou enjoado, apenas. – mentiu. Uma mentira boa. A moça piscou. Tinha lindos olhos verdes, e os cabelos se enrolavam nos ombros. – Senhora.

– Genova, me chame de Genova, querido. Não me parece apenas enjoado. – ela colocou a mão sobre sua testa – Está queimando de febre! Por favor, Genevieve, acompanhe este senhor até seu quarto. Seu nome é...?

– Aaron Belshoff, filho do conde Christoff Belshoff. Fui aprovado para a seleção de...

– Hannelore, eu sei, eu sei, querido. Por favor, Genevieve. – a criada chamada Genevieve obedeceu pacientemente, indicando o caminho.

Quando viu as escadas que teria de subir, Aaron quase pediu para usar um dos divãs do Salão inferior, porém quando Genevieve começou a subir, só pôde segui-la. Seu quarto estava no segundo andar, era um dos quartos de hospedes que havia em abundância. Todas as portas ostentavam placas que informavam os donos. Como seu nome começava com A, era uma das primeiras portas. Para ser mais exato, a primeira no lado direito do corredor. Genevieve o ajudou a chegar até a cama, tirando suas botas e afrouxando sua gravata. Só então Aaron notou o quanto estava apertada. Lembrou-se de como mamãe costumava apertar demais o nó e lembrou-se também de algo que havia lido há muito tempo: os sonhos vêm mais facilmente quando dormimos de bruços, pois a respiração se torna mais limitada e a falta de oxigenação no cérebro leva sonhos. Normalmente pesadelos. E ele dormia com as roupas do corpo na noite passada. Suspirou. Só notou que abraçava o livro quando Genevieve tentou pegá-lo delicadamente e colocá-lo na escrivaninha ao lado da cama.

– O senhor pode me chamar quando precisar, tocar este sino. O fio está ligado a um sino ao lado da casa dos criados. Alguém virá.

– Obrigado, Genevieve. Me chame de Aaron. – a voz desapareceu, suavemente, enquanto a tontura o forçava a fechar os olhos. Algo lhe estava fazendo mal. Aquele castelo... Aquele ar pesado. Tudo parecia errado. Não deveria estar ali. Os céus avisaram, Deus avisou. Não era bom. Não era nada...

– Onde está o rapaz? – o homem com colar de meistre adentrou o quarto com rapidez, parando ao lado da cama, sem que Genevieve precisasse dizer que o rapaz era ele. O homem tinha cabelos ralos, barba branca e desfiada. Seus olhos ostentavam experiência e rugas. – Parece exausto. O que aconteceu? Correu até aqui atrás do coche?

Genevieve não riu da piada, e nem o velho.

– Parece que está resfriado. – a criada comentou.

– Bobagem. Ele está tudo, menos resfriado. Olhe esses olhos. Parecem cansados de estar fechados. E ao mesmo tempo se recusam a se manter abertos. Rapaz, andou tendo sonhos escuros?

Como você sabe? Tentou dizer, porém nada saiu além de um ruído profundo e gutural.

– Muito bem. Posso cuidar da febre. Mas sua exaustão mental será por sua conta. Que tal parar de pensar um pouco? Estará melhor logo, logo.

Aaron quis rir. Parar de pensar? Que tipo de idiota aquele homem era? Como alguém era capaz de deixar de pensar, além de ser um louco? O pensamento era natural ao ser humano, era impossível parar de pensar, a não ser que estivesse morto ou desmaiado, e mesmo assim os sonhos lhe vinham. Não queria sonhar. Também não queria ser um louco. Só queria... Ler? Tinha sérias dúvidas agora.

– Não é bom para alguém de sua idade usar tanta energia e dormir tão pouco. Aposto que não pregou os olhos nas últimas cinco noites.

O tempo que sua mãe levou para prepará-lo para vir até o castelo. Sim. A culpa era dela. E ao mesmo tempo não era. Aaron sentia-se mal por culpá-la. Ela só estava preocupada, apenas isso, e ele não era uma criança. A culpa maior era sua, pois havia usado o tempo que tinha livre para ler, ao invés de dormir. Mas dormir era um desperdício de tempo. Afinal não estaria lendo, nem adquirindo conhecimento. E dormir era tão entediante, era tão... Tão...

Queria dormir. Queria desesperadamente dormir por uma eternidade apenas.

Mas não era tão fácil, não tão... Tão...

º º º

“A melancolia é um regresso à vida primitiva de solidão e mudez, verdadeiro estado paradisíaco” – Paula Nei

Owl City – Fireflies

Abriu os olhos, atônito. Havia dormido. O quarto estava escuro, tão escuro quanto poderia estar com as persianas fechadas e a porta entreaberta. As lamparinas foram substituídas por perfumes e copos de chá. Tomou um pouco, tentando despertar mais. Sentia-se muito melhor agora, porém o chá estava frio e aguado. Bocejou. Notoriamente, estava muito bem. Muito, muito bem. Agitou as mãos em frente ao corpo, e jogou as cobertas para o lado, enquanto calçava as botas de uma só vez e levantava-se. Era tão bom estar bem. Riu-se de sua animação. Porém continuava sozinho e o quarto continuava escuro, por isso bateu o joelho contra o pé da cama.

Exclamou de dor.

– Senhor? O senhor está... – a moça entrou rapidamente no quarto, segurando uma bandeja com biscoitos. Ela estancou, olhando-o. Aaron não entendeu, até notar que estava vestido apenas com os calções. E que precisava ir ao banheiro urgentemente. Ela empalideceu e colocou a bandeja sobre a mesa de canto – Caso precisar é só chamar, senhor. – e escapuliu.

Aaron riu da cena, caminhando até a bandeja e apanhando um biscoito. Doce, o chocolate ainda estava mole. Adorável. Olhou para os próprios pés, dentro das botas. Deveria estar ridículo usando aquilo com os calções. Então seus olhos pousaram sobre o hematoma nas costelas.

Hematoma.

Roxo, esverdeado, meio amarelado. Algo horrível de se ver. Piscou, náuseas lhe atacaram, e tentou apalpar o local. Dor. Uma dor agonizante. Encolheu-se, como uma criança, instintivamente. Estava realmente machucado. Mas como? Quando foi que... A respiração trancou-se nas narinas, a garganta se fechou, sentindo o arrepio do filete de sangue escorrendo pelo peito. Tocou a garganta. Nada.

Então como? Fora um sonho. Uma lembrança infeliz. Como aquela marca surgira?

Só poderia estar amaldiçoado.

A porta abriu-se, revelando-se ainda mais assustadora. Instintivamente, Aaron recuou, até ver o velho que havia tratado de sua febre. Suspirou, aliviado. E de repente notou o quão tolo deveria parecer, assustado como um cão vagabundo em dia de tempestade. O meistre caminhou calmamente até ele e observou a mancha roxa, esverdeada e meio amarelada. Quando tocou-a, Aaron emitiu um ruído animalesco, parecido com o ronronar de um leão.

– Parece recente. Meteu-se em alguma briga, filho?

– Não, senhor. Eu apenas... – não queria falar sobre o sonho. “Como se um sonho fosse capaz de me ferir”. Parecia ridículo, porém os olhos e as rugas do homem lhe traziam calma e confiança. Ele parecia mais esperto do que realmente alguém de sua idade poderia ser (algo surpreendente). – Tive um sonho.

– Um sonho? – ele coçou a barba. – Conte-me seu sonho.

– Ele é uma lembrança. Uma lembrança ruim de minha infância. Estava caçando um javali junto de meu pai e meu... Meu irmão. Quando me perdi, meu cavalo quebrou uma das patas e eu... Não lembro-me muito bem. Mas fui encontrado por selvagens, e eles queriam me usar em seus rituais de heresia.

– Entendo. – o meistre parou de coçar a barba e uniu as mãos no colo. – Sente-se leve? Talvez abençoado?

– Me sinto estranhamente bem.

– Entendo. – ele se levantou – Avaliei seu corpo e conclui que bebeu ao menos uma taça de vinho. Estava embriagado. E o álcool parece reagir mal ao seu organismo. Talvez sejas sensível à bebida. Teve alucinações e entrou em alguma briga de taverna. Conseguiu seu hematoma e algumas pancadas na cabeça, e acabou assim. Foi isso o que aconteceu. Não precisa se preocupar, não estás amaldiçoado, criança.

– Você está gozando de mim? - Aaron ergueu uma sobrancelha – Digo a verdade. Tenho este sonho há anos, e sempre que acordo, de algum modo, tenho essas recaídas, como se minha alma estivesse sendo sugada do corpo. Mas é a primeira vez que ganho um hematoma, principalmente um verdadeiro. E além disso, este lugar... Este perfume de... Morte.

– Perfume de morte? – o velho riu.

– Sim. Como lírios em putrefação. – Aaron notou que ele estava rindo – Pare. Por favor. Ao menos me escute. Tenho certeza de que não estava delirando. Bebi um pouco, sim, mas não o suficiente para ter alucinações. Pergunte a Brad. Tudo aconteceu depois do sonho.

– Quem é Brad? – o meistre pareceu curioso.

– O cocheiro que me trouxe.

– Pensei que havia vindo junto dos demais cavalheiros, quatro em cada coche, se não me engano. Duvido que tenha tido tempo para conhecer o cocheiro.

– Eu juro. Eu e Brad. Até mesmo dormimos em uma estalagem na noite passada.

– Você chegou há dois dias ao castelo. Na noite passada tivemos de alimentá-lo através de sopas, enquanto não acordava.

– Mas... Eu juro! Eu... – a voz desapareceu. Será que realmente havia conhecido Brad? Será que realmente havia sonhado? Olhou para a cabeceira. O livro ainda estava lá. Tentou se lembrar do homem que havia divido o quarto com ele, porém seu rosto se tornou um borrão na memória. Não se lembrava de sua voz. Mas...

– Por favor, descanse mais. – o velho disse.

– Há alguma biblioteca? Algum lugar onde possa ler? – perguntou, desesperado.

– Pode usar a biblioteca do terceiro andar...

– Obrigado! – virou-se as costas, caminhando para fora do quarto. O corredor estava no começo e viu as escadas facilmente. Subiu. As portas duplas da biblioteca estavam de frente para as escadas, o que foi fácil de ver. Adentrou, quase correndo.

Livros, algum livro, qualquer livro. Tinha de sair de sua realidade, tinha de viver outra vida.

Só notou que havia outra pessoa ali, quando seus caminhos se cruzaram e ela bateu a cabeça contra seu peito. Abaixou os olhos, notando que era uma garota. A menina segurava alguns livros grossos nas mãos pequenas e delicadas. Sua pele era muito branca e os cabelos castanhos cobriam a cintura. Escondiam olhos azuis.

– Perdão.

– Tudo bem. – ela deu de ombros, porém não havia tempo para aquilo. Aaron tirou um dos livros de sua mão e abriu-o na primeira página, começando a devorar as palavras. – Você está... Está bem?

– Muito. – sorriu, roboticamente (embora ele não saiba o que significa “roboticamente”). – Só preciso viver em outro lugar.

– Entendo. – ela observou por alguns segundos. – Mas por que uma vida no livro?

– É mais prazerosa. Mais segura. Não irei me perder no livro. Ou melhor, irei. – ele não ergueu os olhos – Não obtenho prazer na vida real. Posso viver minhas outras vidas nas páginas de um livro.

– É uma pena. Pois só vivemos uma vez.

Sentiu a coluna se enrijecer. Ergueu os olhos, para ela. E então arrepiou-se.

Não era ela. Não era o livro. Mas aquela melodia... O assobio no fundo da biblioteca. Era igual a canção de Brad. Cuidado, cuidado, com o bosque amaldiçoado. Almas perigosas habitam por lá. Corra o mais rápido, pois eles virão te pegar. Quando no bosque for brincar.

– O senhor está vestindo calções e botas. – ela comentou. – Pensei que fosse a única a fazer isso.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado. Não queria ter feito um conto de suspense, mas foi o que saiu! Próximo capítulo é da Sofia com mais dois selecionados! E o meu próximo (08) será um extra do castelo, uma pequena aventura com os personagens que já conhecemos e alguns novos. Só para constar, a vitoriosa da enquete foi Dominique. Logo ela ganhará um capítulo extra.
Quem já é #TEAMAaron? Admito que sou.
Beijos da Meell :3