The Bastard Heir escrita por Soo Na Rae, Lady Ravena


Capítulo 15
Capítulo 13 - O Lirismo dos Bêbados


Notas iniciais do capítulo

Boa leitura a todos!



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Capítulo 13

Dominique di Medici & Nikolaus Heidelberg

“A fantasia é a lanterna-mágica da nossa alma” – Marquês de Maricá

Bastille – Flaws

Olhou para fora da porta, onde o oceano se agitava. As ondas se superavam, arrebentando contra o rochedo logo abaixo. Era impossível ver qualquer coisa pelo horizonte além do mar, do céu e do Sol. Brilhava intensamente, embora não emitisse muito calor. Os céus estavam quase brancos, com pequenos traços de nuvens riscando-o. A praia estava a quilômetros dali, e a única ponte que ligava ao farol já estaria submersa naquele momento. Estaria sozinha pelo decorrer das horas, até o amanhecer. Talvez fosse um equívoco ter ido para lá justo no Pôr-do-Sol, porém isso não se passava pela cabeça de Dominique, ela não estava em condições de pensar no agora. Ouvia o ronco do estômago, sentia o vazio dentro de si, aquele buraco entre as costelas, onde a fome se instalava. Sorriu. Era divertido sentir a fome, ouvi-la reclamar. Sentir o tremor na boca do estômago.

Os cabelos voavam para trás dos ombros, cascatas negras de cachos até o final das costas, flutuando sem peso. Fechava as pálpebras e cheirava a maresia, o sal se grudava a seus braços e pernas, enquanto o corpo oscilava pelo vão do farol, onde, em frente, havia o oceano azul e infinito. Muitas pessoas se jogavam dali, pois queriam conhecer o mar mais de perto.

A arrebentação dos rochedos espirrava alguns borrifos para seus pés. Eles flutuavam logo acima do precipício, balançando contra o vento. Sentia a brisa quente entrar em suas roupas, deixando o vestido úmido e amarrotado. As mangas longas caíam pelos ombros, o tom de azul claro e tecido fino não combinavam com aquele clima de chuva que chovia para cima. Era como se o mar chorasse para os céus, cansado de ser chorado pelas nuvens. Curvava-se para frente, com o corpo quase totalmente para fora, onde os últimos raios de Sol podiam alcançá-la.

Dominique gostava de ir para lá, era um lugar que a lembrava de Aragão, onde crescera. O mar e o cheiro, como se estivesse em um navio com Catarina, viajando para todos os lados do mundo, desde à Itália, até a Inglaterra e então de volta para Aragão. As viagens constantes não lhe davam tempo de arrumar um lar, mas isso transformou as pessoas ao seu redor em seu lar. Estar com Catarina era estar em casa. E sentia-se bem quando ela estava bem. Não pensava muito em sua própria vida, afinal tudo o que fazia era em benefício de Catarina. Estudava para acompanhá-la, vestia-se para se exibir bem ao seu lado, respondia as cartas de seu noivo. Não se arrependia de ter se dedicado tanto por Catarina. Mas viver sua própria vida agora parecia estranho, incerto. Tomar as próprias decisões, estar sozinha em um novo lugar. Fora difícil se acostumar em Ludlow. Mas tinha amigas, tinha Hannelore, sua princesa. Talvez fosse melhor dedicar tudo a Hannelore, em vez de se preocupar com os problemas seus.

Levantou-se até a ponta dos pés, se agarrando com os dedos às grades do farol. Esticou o peito para a frente, para o vácuo. E então o peso desapareceu, e o cabelo foi jogado contra seu rosto. Sentiu o vestido flutuando, os pés se aproximando da beirada, enquanto, aos poucos a força se ia, dando lugar ao calor e a leveza.

E então vacilou.

Caiu, sentindo as pernas colidirem com outras pernas, braços apertando fortemente sua barriga, como se quisesse expulsar a fome a força. Sentiu o coração acelerado que batia contra suas costas e a respiração ofegante sobre sua cabeça. Virou o rosto para cima, para vê-lo, enquanto ele próprio suspirava aliviado, vermelho e suado. Deixou que ele se acalmasse, ainda em seu emaranhado de pernas e braços. Quando, finalmente, ele silenciou, o segundo silêncio veio sobre suas cabeças e os comprimiu contra o chão, até que fosse soltada com violência. Ele se levantou em um só salto e limpou a poeira das roupas. Sua expressão mudou de calma para irritação. Embora fosse difícil distinguir ambos.

– Que raios está pensando ao se atirar de um farol? – sua voz era um trovão, cortando os pensamentos mais suaves e delicados de Dominique. Ergueu uma sobrancelha, sentando-se sobre os joelhos e colocando as mãos unidas no colo. Ele parecia sério, mas era impossível realmente encará-lo seriamente após vê-lo caído no chão. – Você está viajando ainda?

– Estava voando. – respondeu, altiva. Subitamente, Dominique ergueu o queixo e encarou-o, como se desafiasse-o a superar sua astúcia. E ele comprimiu os lábios, fechando as pálpebras fortemente e contando até cinco. Talvez fosse uma brincadeira que ela não sabia jogar, talvez pedisse para ele ensinar. – Mas você me fez cair.

– Eu te salvei. – o rapaz corrigiu, cruzando os braços, em sua pose de “dono da verdade”. Dominique não gostava de quando as pessoas se portavam daquele modo, elas pareciam Fernando, o Rei de Aragão, sempre entediante e sem humor. Pessoas assim eram chatas. – Deveria ao menos agradecer.

– Você não me salvou, eu te salvei. Você iria voar, mas não saberia bater as asas. – piscou, simples. E num só ato, ele virou as costas e partiu pisando passos duros em direção às escadas do farol. Com o canto dos olhos Dominique viu o Sol desaparecer atrás do oceano e a urgência explodiu no peito. – Espere, Laus, tenho medo de escuro.

Como Nikolaus continuou andando, sem se importar com aquilo, Dominique sentiu o coração congelar, enquanto a luz desaparecia junto do astro-rei. Saltou de joelhos no chão, erguendo a mão num impulso descontrolado e agarrando-o pelo pulso, em seguida sem deixá-lo ir, puxando para dentro do farol, para onde não deveria sair. Nikolaus usou força, revidou tentando se desvencilhar, e ele era forte. Deus, como era forte! Sentiu os lábios ardendo onde os dentes se fincavam, até que finalmente conseguiu passar uma perna por entre os pés de Nikolaus e lhe passou um golpe rápido e certeiro, levando-o ao chão. Sua segunda queda fora melhor que a primeira, pois estava de frente para vê-lo. Ambos no chão, o garoto enfiou a cabeça entre os joelhos e começou a bufar em sincronia com as ondas.

No silêncio, Dominique notou o modo como ele movia os pés. Parecia tocar uma música dentro de sua cabeça, talvez algo que ouviu durante o Torneio. Quando finalmente terminou de notar, seus olhos encontraram um saco branco de tecido grosso meio-escondido debaixo de seu casaco. Piscou os olhos, incrédula. Jogou-se de joelhos no chão e aproximou os braços dele, furtivamente, mãos esticadas para a bolsa. Ele ergueu o rosto e as sobrancelhas, uma ruga de interrogação se formando em sua testa.

– Perto demais. – disse Nikolaus.

– Você trouxe comida.

– Para mim – ele corrigiu, enquanto se levantava.

Dominique não o deixaria ir. Não enquanto não soubesse que comida ele tinha ali. Poderia ser tudo, menos torta. Odiava tortas. Nikolaus olhou-a de cima a baixo e suspirou, talvez desistindo de enfrentar alguém tão teimoso e irritante. Colocou a mão dentro do saco e tirou de lá uma maçã não muito vermelha, queijo e pão. O estômago de Dominique reclamou. O som chegou aos ouvidos de Nikolaus e ele soube que não adiantaria dar a ela apenas uma parte do pão e do queijo. Voltou a se sentar, tirou os alimentos do saco, junto com um recipiente menor que uma garrafa convencional, mas o cheiro era de vinho. Nikolaus colocou o vidro de lado, enquanto arrumava o chão.

– Você roubou. – acusou-o, embora não pudesse falar muito, pois vivia furtivamente pela cozinha do castelo.

– Não, eu pedi. É diferente. – ele estreitou seus olhos – Angelique?

– É muita gentileza da sua parte, mas não sou anjo. Penso que é um equívoco pensar isto, pois eu sou uma humana que sabe que é humana. E você?

– Eu? – Nikolaus entregou-lhe o pão com queijo. – Acho que sou um humano que pensa que é livre.

– Isto todos pensam. É natural dos humanos. – Dominique deu de ombros – Mas meu nome é Dom-nique.

– Dominique, agora lembrei – Nikolaus concordo com um meneio de cabeça e deu uma grande mordida em sua parte de pão. – O que uma jovem donzela como você faria em um farol abandonado?

– O que eu não faria? – Dominique mordiscou o pão sem pressa, com as costas eretas e uma leveza nobre. Parecia estar tomando chá com o rei. Ela estudava o rosto do rapaz com autêntica atenção, como se esperasse que ele realmente respondesse. Quando viu que ele nada faria, apenas acrescentou: - Provavelmente não tem copos.

– Não – ele desviou os olhos do pão para ela -, teremos de beber juntos, eu temo.

– Não temas. – a mão fina e delicada subiu até seu rosto e apalpou-o pelo tempo de uma palpitação. – Eu estou aqui, está tudo bem.

– Obrigado, eu acho. – Nikolaus terminou com o pão em uma só mordida e bebeu um longo gole de seu vinho. Quando terminou e voltou a olhar para o horizonte, onde as ondas já subiam o nível máximo e a luz da Lua refletia a luz do mar, tinha os olhos mais descontraídos, a respiração demorada e um leve rubor crescendo no peito. – Queria um lugar seguro para pensar. Mas o farol não foi a melhor alternativa. Ele já tem dono, suponho.

– Verdade? Pois não vejo dono algum. O farol pertence às ondas, pois elas vêm e fecham a entrada pela noite, e a abrem pela manhã. – Nikolaus não compreendeu as palavras da garota, mas não demonstrou. – Eu suponho que o mar não tenha problemas com a sua vinda. Afinal você entrou e ele fechou a porta.

– Talvez tenha razão. – concordou, bebendo mais um gole de vinho, sentindo o efeito subir a cabeça. Era suave, gostoso. Sentir-se leve, os nós dos músculos se desfazendo. Deitou de costas no chão, com os braços cruzados debaixo da cabeça, servindo-lhe de travesseiro. Fechou as pálpebras, fechou o mundo.

Escutou o som da garrafa, e então o som de alguém bebericando com suavidade, sem exagerar. E então tosses e soluços engasgados. Abriu um dos olhos, para ver a dama de sua companhia avermelhada e com o punho fechado sobre o peito. Ela pigarreou, limpando a garganta, e endireitou as costas, movendo-se com gestos curtos. Recompôs a compostura. Não saberia dizer se estava em um farol empoeirado com uma garota louca, ou em uma Copa ricamente decorada, com a Corte e a Família Real. Mas lhe agradava pensar mais na primeira opção. Parecia mais aconchegante.

– Este vinho é terrível.

– O consegui com alguns ratinhos. – respondeu, lembrando-se das crianças da cozinha. – Aposto que não era o melhor da safra. Paguei um vintém por ele, malditos burgueses. – e então soltou uma risada irônica.

– Ah, não se preocupe, eu adorei. – Dominique ruborizou violentamente – Sério, o gosto é peculiar, mas tem uma textura... Boa.

– Não precisa mentir, eu só estou brincando. – abriu novamente a pálpebra, porém agora de surpresa. Não imaginava que a garota fosse mentir, ela sempre era tão sincera e direta, sem um pingo de timidez. Agora, entretanto, encolhia os ombros, com o nariz vermelho e os lábios entreabertos. Parecia uma senhora comum envergonhada. – O que houve?

– Minha cabeça... – ela soluçou e então cobriu a boca com ambas as mãos. Nikolaus riu.

– Você é uma criatura complexa. – disse, sem pensar. – Quando bebe, torna-se prudente. Que tipo de mulher és?

– Sou uma menina, ainda tenho honra. – disse, elegantemente.

– Quer dizer que ainda é virgem?

– Isto é inapropriado para falar a uma dama! – Dominique cruzou os braços sobre os seios, tornando sua figura ainda mais engraçada e estranhamente adorável. – Me respeite.

– Oh, é claro que respeito, jamais ofenderia uma virgem, moça pura, de família e ideais. – piscou, sentando-se. O rosto da garota se inchou, enquanto ela comprimia ar dentro das bochechas, ficando vermelha. Encarava-o, com certa raiva. Nikolaus apenas alcançou a garrafa e bebeu. Estava bem mais vazia que antes.

– Você me parecia um rapaz gentil.

– Sei ser gentil. – entregou-lhe a garrafa nas mãos, com naturalidade de quem se conhece há anos. Isto, é claro, por efeito do vinho.

– Seria adorável se demonstrasse. – ela piscou, ironicamente. Viu-se pego contra a parede.

– Suspeito que minha dama está me ofendendo.

– Suspeitas aceitas. – ela concordou. – Mas não findadas.

Nikolaus demorou-se com os olhos fechados e o cérebro desligado o suficiente para ter certeza de que estava realmente bêbado. Era o que queria, afinal, um local onde pudesse beber, fechar os olhos de dormir até a manhã. Onde ninguém o perturbasse. Com a maré alta, o oceano o trancafiava ali em cima, no farol. Era o local ideal, em sua opinião. Só não imaginou que mais alguém estaria ali.

– Você não parece tão louca. – disse, após o silêncio.

– Correção: eu pareço louca. Só não satisfaço sua visão de loucura. – ela piscou – Na verdade sou muito louca. A loucura sempre fez parte de meu sangue, e não tenho vergonha de dizer isto. Mas é sempre bom mostrar primeiro seu lado pior, para que todos saibam o quê esperar de você e no fim reste apenas quem realmente pode te aguentar. Então você pode agir normalmente que não irão se impressionar. Acostumar as pessoas ao extremo as faz achar o comum... Comum demais. – ela terminou a teoria com um ar de meiguice, como se a língua enrolasse na garganta. Estava bêbada também.

– É inteligente, embora estranho. Você costuma afastar mais pessoas, do que aproximar.

– Mas as que ficam valem mais que as que partem. – ela sorriu, verdadeiramente, um sorriso de mulher que Nikolaus achava um charme em qualquer dama, apenas por abrir os lábios e expressar sua serena diversão. – Mas às vezes tenho de fingir que sou louca, apenas para os outros não suspeitarem de mim. Com o tempo, todo mundo pensa que você é apenas uma criança que cresceu fisicamente mas esqueceu de crescer psicologicamente. Eu gostaria que fosse assim. O mundo é tão complexo que na maior parte do tempo eu realmente o ignoro.

– Como eu disse, você é um caso de paradoxo: quanto mais bêbada, mais sóbria.

– Nunca ofenda uma dama, sua mãe não lhe ensinou? – ela riu, descontraidamente, com os cachos escorregando pelos ombros, junto com as mangas do vestido que de repente era muito grande para seu corpo estreito e magricela.

– Perdão, senhorita. Quanto mais bêbada, menos louca.

– Aceitável. – ela brindou erguendo a garrafa e bebericando o resto do vinho. – Acredita que nunca bebi? Quer dizer, meu irmão morreu bêbado em uma briga de bar e pensei que caso tomasse iria me tornar violenta. Mas estou tão leve, como se o universo fosse tão bom e as pessoas tão bondosas. Até sinto vontade de estragar um pouco toda esta perfeição, é anti-natural.

– Esta palavra existe?

– Deveria existir. Se não existe, agora existe. – ela moveu os lábios silenciosamente – Que estranho. O som da palavra “existe”. Repita dez vezes.

– Existe. Existe. Existe. Existe... – Nikolaus cambaleou nas palavras. – Impossível! – soltou uma gargalhada gutural.

– Exato! – Dominique riu. Nikolaus notou como ela tinha seios pequenos, o tecido do vestido se dobrava sobre eles. Seus ombros também tremiam levemente quando ria. A cena era de uma moça contraindo-se cada vez mais, se tornando uma bola de pele branca e vestido de tecido grosso, um rapaz com olhos grandes e hálito de vinho, uma Lua alta, a noite fria e o farol. Aparentemente abandonado.

Neste contexto, você diria que a moça e o rapaz estariam se escondendo, e você não está errado. Eles estão se escondendo, mas não exatamente de alguém. Diante da cena, provavelmente, as pessoas dirão que são um casal apaixonado, perdidamente loucos e que planejam passar a noite toda nos braços um do outro. Mas estão completamente erradas. As pessoas jamais diriam isso se soubessem que a moça é Dominique e o rapaz Nikolaus, nem que estão bêbados e que, estranhamente, ambos não se tornaram loucos pela bebida, mas sim prudentes e descontraídos.

– Você disse que seu irmão morreu em uma briga de bar... – comentou, enquanto tamborilava os dedos pelo chão.

– Sim. O mais velho, um que poucos conhecem. Foi antes de eu nascer, E ele tinha alguns meses. Na verdade, foi um acidente. Quem estava bêbado era meu tio e ele estava segurando meu irmão. Então... Aconteceu coisas desastrosas. – ela balançou a cabeça, afastando a lembrança – Meu irmão mais velho nasceu algum tempo depois, depois o Papa, Maria e... – suspirou – Isso não tem importância. Nos separamos quando eu era pequena, fomos expulsos da Itália. – disse com naturalidade, como se aquilo não fosse um empecilho – Fui criada em diversos castelos pela Península Ibérica. Os Aragão sempre me trataram como seus filhos. Catarina era minha melhor amiga. Dividíamos bolos, livros e uma vez um garoto.

– Você e sua amiga dividiram um garoto? – os olhos de Nikolaus sorriram por ele.

– Ah, sim – ela riu leve – Catarina foi prometida a ele, o príncipe de Gales, e sabia que se casaria com Arthur. Mas ela o odiava. O achava entediante, mesquinho... Então pediu para que respondesse as cartas que ele mandava. E respondi.

– Então se apaixonou por ele e teve de guardar este segredo de sua amiga. – Nikolaus completou.

– Não, não. Não me apaixonei por Arthur, mas sentia certo ciúmes dele. Talvez afeto. Como se ele fosse meu melhor amigo e se Catarina se aproximasse dele, iriam me excluir.

– E eles casaram e estão a um mar de distância daqui.

– Sim... – Dominique sorriu – Tinha esperança de vê-los daqui, mas o farol não é tão alto.

– Talvez na torre do castelo você consiga. – sugeriu, embora não ironicamente.

– Já pensei, mas não quero ir até lá apenas para ver o mar infindável. É estranho que quando pensamos, o mar e o mundo são coisas relativamente pequenas, o mar é apenas o mar diante do oceano. Mas quando pensamos em dois países separados por um mar inteiro, e olhamos para ele... É impossível vê-lo do começo ao fim, mesmo dentro de um navio. O mar é muito grande, mas o seu tamanho depende de com o quê comparamos.

– Tudo depende de com o quê comparamos. – Nikolaus concordou – A noite é escura em relação ao dia, mas ainda possui a luz da Lua se em comparação a um quarto isolado e fechado.

– Por isso ninguém pode dizer que sou louca. Pois a loucura é muito relativa. Você sabe que a relatividade é uma espécie de loucura exata? A relatividade é relativa e ao mesmo tempo precisa, como... Um número incontável! Por isso é uma loucura.

– Coisas impossíveis são loucura?

– Depende do que é loucura para você.

– Loucura para mim... – Nikolaus pensou. – Seria acordar pela manhã e ver o Sol escuro.

– Então sua definição para loucura é muito limitada. – ela suspirou – A loucura pode ser definida como tudo, dentro de nada, ou como nada dentro de tudo.

– Isso é impossível.

– Talvez sim, talvez não. Isso é loucura. – ela sorriu – A relatividade relativa relativamente relativada.

– Relativada?

– Esta palavra existe a partir de agora. – Dominique piscou os olhos, nobre. Suas costas estavam ainda eretas e ela ainda parecia sofisticada demais para um farol abandonado. Mas tinha a cabeça pendendo contra o queixo, sonolentamente abrindo e fechando as pálpebras.

– E com o que você ocupa seu cérebro, além de inventar palavras novas?

– Se são inventadas, já são novas. – ela corrigiu, precisamente – Pode não parecer, mas entendo muito de gramática. Culpe Catarina. Ela era louca por linguagem.

– Catarina me parece muito interessante.

Dominique estreitou os olhos, movendo os ombros levemente para dentro. Abraçava os joelhos, e as costas deixaram a forma esticada para se traduzir em uma vírgula, pequena, encolhida. Ela enchia as bochechas de ar, até as veias finas se destacaram vermelhas e mordia os lábios, levemente. A imagem parecia a de uma pessoa que estava pensativa, talvez ponderando a existência de Deus ou a probabilidade de um raio cair no mesmo ponto duas vezes na mesma tempestade. Quando a luz do farol relampejou por sobre o rosto de Dominique, pôde ver seus olhos em um tom profundo de cinza-fumaça.

– O que foi? – questionou, um pouco lento, pelo álcool.

– Não gosto quando falam de Catarina.

– Você falou dela umas milhares de vezes.

– Mas não é a mesma coisa – Dominique ergueu o rosto e cruzou os braços – Odeio quando falam dela e de seus talentos, ou de como ela é bonita. Ela é a minha melhor amiga.

– Isto é inveja ou ciúmes?

– Um misto de ambos – as palavras foram tão sinceras que Nikolaus sentiu vontade de rir, mas não o fez, contentando-se com um sorriso de lado. – Mas mais de ciúmes. Catarina sempre teve toda a atenção do mundo, é injusto que tenha mais.

– Isto é inveja, não ciúmes.

– É ciúmes! – Dominique reclamou, agora parecendo uma criança teimosa – Ela tem padres, tutores, amigos, prometidos... Tem pais e irmãos. Agora um marido. E futuramente filhos. Mas eu nunca tive ninguém além dela.

– Certo, e onde o ciúmes se encaixa?

– Você é cego ou surdo? – ela bufou – Não é óbvio o que estou dizendo? Todos que olham para mim, estão na verdade olhando para a sombra de uma princesa inglesa e espanhola. Mas quando consigo encontrar pessoas que olhem para mim, elas de repente se viram para Catarina e me esquecem.

– Você terá de ser mais específica, pois ainda não entendi.

– Ora, francamente. Onde não entendeu que tenho ciúmes de você?

Nikolaus piscou, atônito. Aquilo não era uma cortesia à qual estivesse acostumado. Francamente, ninguém apreciava a sua companhia, principalmente bêbado. Quando o silêncio já se tornava pesado, desatou numa gargalhada, tão alta que as almas adormecidas no castelo poderiam ouvir, caso estivessem despertas. O rosto de Dominique se tornou uma carranca feia e irritada, mas era impossível vê-la como uma dama ofendida. Só conseguia rir, e rir mais. Talvez pelo álcool, talvez pelo constrangimento que não queria transparecer. Ou mesmo porque ela era tão boba. Esticou o braço e tocou seus cabelos cacheados, sentindo-os finos. Ao contrário do que imaginara, ela não tinha madeixas duras ou pesadas, era sedoso e flexível, movendo-se levemente pelos ombros quando ela virava a cabeça.

– Não se preocupe, não irei mais me interessar por sua amiga. – disse, ainda sorrindo. Moveu-se para longe, porém ainda sentia a textura do cabelo, o suave perfume de hortelã. Dominique o encarava com certa fixação perturbadora. Então, lentamente, retraiu-se e as bochechas ruborizaram com violência. Nikolaus viu. E desatou em uma gargalhada.


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Notas finais do capítulo

Espero que tenham gostado! :3 Beijos da Meell.