Nosso Tempo é o Sempre escrita por Anjinha


Capítulo 4
Quero dançar com você, dançar com você


Notas iniciais do capítulo

“Quero dançar com você,
dançar com você”
(Amado – Vanessa da Mata)



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Niko não sabia se estava sonhando ou não, mas se estivesse, teria que ser o sonho mais real de toda a história dos sonhos. Poderia dizer isso só pelo som dos próprios passos que ecoavam pelo piso do extenso corredor do asilo que se tornara tão familiar para ele, apesar de sua curta permanência no mesmo. Uma penumbra envolvia tudo, mas os resquícios de luz que vinham do final do corredor eram suficientes para que seguisse seu caminho sem erro. As portas dos quartos passaram por ele, de um lado e de outro. Ao passar diante do quarto doze, parou de andar por um momento. Olhou para o número do quarto na porta. Teve um breve impulso de abri-la, mas não o fez. Seguiu em frente. Algo lhe dizia que não era ali que deveria entrar.

O corredor terminava nas portas que conduziam ao amplo salão usado para as aulas de dança da casa de repouso. À medida que se aproximava das portas duplas fechadas, mais luz e som vinham de detrás delas. Parecia ser um baile. Niko parou em frente à porta e hesitou um pouco antes de girar uma das maçanetas, mas acabou girando, abrindo-a.

O som da música cresceu, enchendo seus ouvidos. O salão de dança no qual assistira tantas aulas parecia irreconhecível. Luzes e cores davam nova vida à noite que acenava pelas janelas, como um convite irresistível. Sem pensar mais ele entrou. Tratava-se mesmo de uma festa, e para todos os lugares que olhou, viu homens e mulheres bem vestidos, com ternos e gravata e longos vestidos brilhantes. Mesas ornadas com toalhas vermelhas e louças finas enchiam o salão. No meio dele, alguns poucos casais dançavam ao som da voz de uma cantora que se desmanchava em melodias antigas e melancólicas sobre um palco no fundo do recinto. Atrás dela, uma banda de cinco componentes a acompanhava em suas notas tristes.

Niko quase deu meia-volta, sentindo-se um intruso no meio de tantas pessoas elegantes, mas seus pés o levaram até o meio do salão em passos incertos. Ainda estava inseguro sobre o porque de se encontrar naquele lugar.

Enquanto andava pelo salão sentiu olhares sobre si, mas não eram olhares de estranheza. Estranho sim era pensar que havia algo familiar em alguns daqueles rostos tão jovens e cheios de vida. Uma mulher sorridente e miúda, em um vestido preto, passou por ele dando um breve aceno. Um homem distinto e elegante, vestido em um fraque preto, cruzou seu caminho e quando o viu, sorriu-lhe simpático, para em seguida seguir adiante. Talvez aquilo fosse mesmo um sonho muito estranho, porque não conseguia se lembrar de conhecer realmente aquelas pessoas, muito embora elas lhe parecessem algo familiares. Desistindo de uma explicação, ele andou até o meio do salão, agora mais deserto, pois a cantora e a banda estavam fazendo uma pausa no repertório.

Foi quando sentiu.

Uma presença intensa, pungente e extremamente familiar. O peso quase palpável de um olhar. Essa sensação repentina enviou um arrepio por sua espinha, paralisando-o no lugar. Seu primeiro impulso foi voltar-se. Ele sempre se voltava, e sempre acabava decepcionado e triste por não encontrar o que esperava. Por isso não o fez imediatamente. Fechou os olhos e apertou-os com força, até não resistir mais e render-se. Virou-se.

Seus olhos se encheram de lágrimas por conseguir, afinal, voltar-se a tempo.

Elegantemente vestido em um terno preto, um Félix jovem e altivo olhava sorrindo para ele.

Por um momento que durou uma eternidade, tudo o mais perdeu o foco e as cores. Niko trouxe uma mão ao peito em um gesto inconsciente, talvez para testar se o próprio coração estava resistindo bravamente ao que seus olhos viam. Enquanto Niko procurava se lembrar de como respirar novamente, seu olhar não se desviava daquela figura imponente que se aproximava em passos despreocupados, meio gingados, os cabelos pretos e lisos esmeradamente penteados para o lado, os olhos negros inconfundíveis, a face de traços joviais, o largo sorriso na face...

Niko não ousava sequer piscar, tão forte era o medo de desfazer aquela ilusão. Apenas se deixou ficar ali, capturado pelos olhos negros já próximos, rendido ao som do próprio coração reverberando em sua garganta dolorosamente embargada.

Félix ficou de frente para um Niko emudecido, mantendo o sorriso, até que este se transformasse em uma risada divertida.

– Niko... Eu sabia... Olha aí, tá vendo só? Eu sabia que não devia ter te mostrado a minha foto. Agora você perdeu até a fala diante de tanta beleza e elegância numa só criatura!

Niko entreabriu os lábios e até chegou a movê-los debilmente, mas nenhum som saiu. O assombro ainda era muito para conseguir se expressar. Antes que pudesse sequer tentar, Félix levou uma mão à lapela do próprio terno, colhendo ali a rosa branca que a enfeitava. A mudez e a inércia ainda dominavam Niko quando dedos longos e carinhosos colocaram a rosa atrás de sua orelha direita. Félix o encarou, avaliando o resultado do novo acessório em Niko. Assentiu satisfeito.

– Voilá! Criatura mais linda que eu... só você, Niko. – ele elogiou, deslizando os dedos pela linha de seu queixo até repousarem sobre seus lábios entreabertos. Niko suspirou, refreando o impulso de olhar para trás para ver se o elogio fora dirigido a outra pessoa, pois qualquer beleza da juventude há muito se perdera para ele. Ele era apenas um velho cansado e triste, e agora ainda, incapaz de fazer com que os lábios murmurassem algo minimamente inteligível. Como se lesse seu pensamento, Félix fez com que Niko se virasse para uma das paredes do salão de dança onde um espelho enchia toda sua extensão.

Ao olhar o próprio reflexo, Niko não pôde evitar que seu queixo caísse de espanto ao se ver tão jovem quanto Félix, talvez até mais. O branco dos cachos de seu cabelo dera lugar ao dourado do loiro. As rugas desapareceram. O corpo que vestia um smoking preto era mais uma vez forte e robusto. Somente os olhos verdes destoavam de todo o resto. Ali dançavam lágrimas antigas e novas, e puro choque os mantinha arregalados.

Félix abraçou-o por trás, envolvendo sua cintura com as mãos e encostando a face na sua, enquanto acompanhava o olhar dele para o reflexo de ambos.

– Lindo. – repetiu Félix agora em seu ouvido na forma de um sussurro. – Meu lindo, meu amor...

Niko fechou os olhos com um suspiro, mantendo-os assim, como se a emoção causada pelo que via no espelho fosse intensa demais para apreendê-la em um simples olhar. Mãos em seus ombros o fizeram delicadamente virar-se de volta. Quando abriu os olhos, viu-se novamente face a face com o rosto sorridente de Félix.

– Viu? Estamos os dois arrasando, os mais lindos desse baile. – Félix beliscou levemente o queixo de Niko em uma leve carícia. – Só está faltando uma coisinha pra ficar perfeito. Sabe o que?

Niko não conseguiu fazer mais do que sacudir levemente a cabeça em resposta, ainda hipnotizado pela face sorridente diante de si.

– Cadê aquele meu sorriso?

Sorrir parecia algo que precisaria aprender a fazer de novo. Respirar também. Como uma resposta inversa, lágrimas silenciosas já deslizavam por seu rosto. Niko sentiu algumas delas pingando de seu queixo. Seus lábios moveram-se como se não tivesse mais controle sobre eles.

– Félix... – conseguiu finalmente ensaiar um balbuciar trêmulo - Eu tinha tanto pra te dizer... Eu... E-eu...- As lágrimas não o deixavam formular as palavras adequadas. Elas pareciam inalcançáveis, como se precisasse aprender uma nova língua para pronunciá-las. Como expressar para ele o turbilhão que fervilhava em seu íntimo? Como transformar em meras palavras tanta coisa se movendo em sua alma agora? Tudo que mais desejava era poder encontrar um fio de voz que fosse para lhe dizer que após sua partida, jamais se sentira tão incompleto, tão arrasado, tão inconsolável, tão dolorosamente partido... Tão...

Nenhuma palavra seria suficiente. Nem que buscasse todas as línguas do mundo acharia uma maneira de traduzir para ele tudo que sentia. Seu peito se transformara em uma montanha russa de emoções conflitantes e avassaladoras. Antes que pudesse se desesperar por completo pela própria inabilidade de dizer ao amor da sua vida o quanto sua ausência partia sua alma, sentiu dois dedos gentis em seus lábios, calando-o, um meio sorriso semelhante ao da foto escondida pairando nos lábios.

– Eu sei. - ele disse simplesmente, e isso resumia tudo. - Eu sei... Eu sei... – enquanto repetia, Félix distribuía pequenos beijos em seus olhos fechados, em suas faces, de um lado e de outro, em seguida na ponta de seu nariz, outro no queixo... O destino final daqueles lábios consoladores foi seu ouvido, onde tratou de repetir em um sussurro confortador. – Eu sei.

Cada sussurro de Félix reunia o poder de progressivamente acalmá-lo e extinguir suas lágrimas, até que elas cessassem por completo, deixando no lugar a doce nostalgia de sentir novamente seu gosto quando os lábios afinal se uniram em um singelo e terno beijo. Os corpos se colaram, e Niko mergulhou sem mais reservas na deliciosa sensação do corpo dele junto ao seu, da sua respiração morna, das mãos em seus cabelos, em sua nuca, nas costas... todos bálsamos para a saudade devastadora que ainda o consumia. O beijo durou o tempo de uma saudade, ou a saudade de toda uma vida.

O beijo ainda não terminara quando o som de aplausos soou em volta deles. Relutantes, deixaram que os lábios se afastassem para poderem se encarar. Niko lançou um olhar confuso para a multidão de pessoas que os rodeava, batendo palmas, a aprovação evidente nos rostos sorridentes. Após alguns momentos, os aplausos amainaram e a multidão começou a se dispersar. Niko reconheceu a jovem de vestido preto que acenara para ele e o homem que lhe sorrira. Olhando agora, havia ainda mais rostos familiares. Niko voltou o olhar intrigado para Félix, que com os braços enlaçando sua cintura, o olhava com um meio sorriso, como se já soubesse o que ele queria perguntar.

– Félix... Quem são essas pessoas? É tão estranho, sinto como se os conhecesse...

– Talvez... Quem sabe? – Félix respondeu vagamente, algo enigmático. Antes que Niko conseguisse identificar o porque da sombra que tocou seus olhos, Félix fixou o olhar em outra direção. Seus lábios assumiram um sorriso irônico e desafiador.

– A criatura se acha só porque tem cabelo de novo... Ele que não apronte comigo ou dou um jeito de raspar essa cabeça peluda pra fazer uma bela peruca! Esse Aristóteles... – Félix comentou em tom ácido, olhando diretamente para um homem de cabelos castanhos e lisos que sorria para os dois. Niko seguiu seu olhar, mais confuso ainda. Tudo adquirira um ar tão surreal que sua mente atordoada dava voltas e voltas sem conseguir apreender o sentido daquilo tudo.

A única coisa que parecia fazer sentido eram os braços de Félix ao seu redor e sua expressão novamente terna, quando ele tocou seu queixo com a ponta dos dedos, fazendo com que se olhassem. A mão direita de Félix, firme mas carinhosa, envolveu a face de Niko em um carinho morno. Félix sorriu. Aquele sorriso largo que continha o poder de afastar todas as perguntas que lutavam para sair de seus lábios.

Para Niko, subitamente, nada mais importava. O mundo inteiro se resumia em estar mais uma vez na proteção de seu abraço. Preso no olhar e nos braços de Félix, envolvido por seu perfume, com seu hálito tocando sua pele, respirar era quase doloroso, tão intensa era a fascinação que sentia por aquele estranho que era tudo menos um estranho... Aquele Félix jovem que nunca conhecera era também o Félix que amara desde o primeiro olhar. O mesmo que tomara posse de sua alma.

Mas os dedos de Niko talvez não soubessem nada disso, pois se dirigiram ao rosto de Félix para explorar suas linhas, suavemente, desenhando trilhas invisíveis pela pele lisa, passeando pelo contorno dos lábios, maxilar, queixo... O quão estranho era sentir falta do canto da boca levemente torto? Niko deixou que os dedos se perdessem também nas mechas lisas e negras de seu cabelo. Tão sedosas... Mas igualmente fazia falta a maciez dos fios brancos como neve dos quais tanto prazer extraíra em penteá-los. Saudosas, as mãos de Niko eram insaciáveis na expedição que levavam pela face daquele Félix, que paciente, apenas deixou-se render aos carinhos, em silêncio.

– Eu sou eu mesmo, Niko. – ele comentou de repente. Niko piscou algumas vezes, como se ainda tentasse se convencer disso. Em seguida, começou a sorrir, uma mão ainda acariciando os cabelos negros, a outra repousada sobre os lábios de Félix.

– E como você, não há. – Niko completou com naturalidade. – Aquela foto... não lhe faz justiça. Você sempre foi muito mais lindo pra mim.

Félix abaixou o olhar brevemente, quase como se estivesse embaraçado com o elogio, mas em se tratando dele, Niko sabia que era encenação, e riu, sendo logo acompanhado pela risada dele. Quando o riso esmoreceu, eles se olharam, sérios. Niko sentiu as lágrimas ameaçando voltar.

– Eu ainda não acredito que você está aqui.

E era verdade. Niko não acreditava, e exatamente por isso, não conseguia parar de tocá-lo. A ânsia e a saudade eram muitas. A sofreguidão de sua alma sem ele, ainda maior. Nada parecia ser suficiente para aplacar esse desalento.

Félix buscou uma mão de Niko e levou-a ao próprio peito, repousando-a bem sobre o coração.

– Está acelerado. – Niko observou, com um sorriso nostálgico.

– Sabe o que isso significa?

Félix não precisou continuar. Logo os lábios ansiosos se buscaram mais uma vez, dando a certeza que o primeiro beijo daquela noite não havia sido suficiente para aplacar tanta saudade, e que o tempo sem se tocarem já era demasiado longo para poderem suportar. O abraço de corpo inteiro se estreitou sem limites, enquanto os beijos se tornavam mais sôfregos e apaixonados. Quando a necessidade de ar falou mais alto que a paixão, se afastaram um pouco, ofegantes, os olhares lânguidos, entregues ao mesmo sentimento.

Niko deixou escapar a pergunta que estivera rodeando sua mente há algum tempo, até então abafada pelo turbilhão de emoções que o assaltara.

– Félix... por que estamos aqui?

Um pouco do sorriso de Félix se esvaiu com essa pergunta, como se não desejasse respondê-la. Antes que o fizesse, os acordes de uma canção começaram a ser entoados pela banda, que voltara do intervalo. As luzes do salão diminuíram de intensidade, com os focos de luz direcionando-se ao palco, onde a cantora aguardava sua deixa em frente ao microfone. Logo, vários casais compareceram ao salão e começaram a dançar ao redor dos dois, enquanto eles permaneciam abraçados, se encarando, parados no mesmo lugar.

– Não é óbvio, Niko? – Félix finalmente respondeu - Para dançarmos, é claro. – Ele se afastou um pouco para ensaiar um convite, estendendo-lhe a mão. – Quero muito dançar com você, senhor Nicolas Corona. Me concede?

Niko olhou para a mão direita de Félix que se estendia para ele. Ela era firme, e foi com sua mão também firme que a segurou, resoluto, aceitando o convite. Ao som da melodia romântica, eles juntaram os corpos e começaram uma dança lenta, os pés se movendo em perfeita sintonia, as mãos e braços repousados em volta e por sobre o outro, os rostos colados, os olhos fechados... Até o bater dos corações combinava no mesmo ritmo, ou assim lhes parecia.

– Não sabia que você dançava tão bem... - Niko comentou de olhos fechados.

– Eu sou um ótimo dançarino, Niko. É só mais uma das minhas inúmeras qualidades.

Niko riu, e mesmo o som da própria risada tornava aquele momento ainda mais perfeito. Deliciado, ele se deixou levar pela sensação dos braços de Félix ao seu redor, descansando o queixo em seu ombro com um suspiro satisfeito.

– Essa música consegue ser mais velha do que eu, Niko. – foi o comentário inesperado de Félix.

– Eu sei. – Niko respondeu sem abrir os olhos. - Mas é linda, não é?

O sorriso irônico de Félix tornou-se rapidamente terno.

– É linda sim. – ele admitiu, vencido.

Enquanto a voz doce da cantora soava por todo o salão, eles não falaram mais nada. Puro e brando enlevo os cobriu. Complacente, o tempo os esqueceu. Alheios a tudo, dançando abraçados, eles deixaram que o mundo em volta simplesmente desaparecesse.



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Notas finais do capítulo

Próximo capítulo: O amor vence tudo