Nosso Tempo é o Sempre escrita por Anjinha


Capítulo 3
E na parede do meu quarto, ainda está o seu retrato


Notas iniciais do capítulo

“E na parede do meu quarto
ainda está o seu retrato”
(Tim Maia)



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Voltar ao presente era sempre penoso para Niko, por mais irônico que fosse, já que ele sempre fora da opinião que o passado precisava ficar no passado, e que este nunca deve atrapalhar o presente ou o futuro. Mas era impossível fechar os olhos para todas as memórias daqueles dois anos de convivência com Félix. As lembranças eram seus pequenos tesouros enterrados no passado, e a compulsão de desenterrá-los e trazê-los à luz do presente ainda era poderosa demais para que sequer pensasse em lutar contra ela. Por isso ele permaneceu com os olhos fechados mais um pouco, como se assim pudesse manter aquelas recordações felizes próximas do coração.

Após um longo tempo, Niko abriu os olhos quando uma mão tocou seu ombro com delicadeza. Jayme e Jonathan haviam retornado do “lanche”. Sentiu dois pares de olhos preocupados sobre si. Sabia como devia estar sua aparência. Olhos e nariz muito vermelhos pelo choro intermitente, a expressão triste e ainda mais envelhecida. Nunca conseguiria explicar a eles o que significava você deixar parte da própria vida com alguém e sem aviso ter esse pedaço de alma levado embora. Era o tipo de coisa pertencente à lista de coisas sem explicação e intraduzíveis em meras palavras.

– Pai... você está bem?

Niko assentiu tentando sorrir. Não tinha a menor pretensão de conseguir convencer ninguém dessa vez.

– Sim. Estava só lembrando... dele. – fez menção de se levantar, sendo logo ajudado por Jayme que pegou gentilmente em seu braço. Jonathan apertou seu ombro com carinho, esfregando-o levemente. Niko sorriu-lhe agradecido.

– Você precisa de mais tempo, Niko? – foi a pergunta solícita de Jonathan.

– Não... – o olhar de Niko se dirigiu à lápide. Seus lábios foram tomados por um sorriso triste. – Acho que é hora de irmos embora. Eu quero só me despedir.

Em passos lentos se aproximou da lápide. Jayme e Jonathan não o acompanharam. Niko postou-se de pé diante do pedaço de mármore no gramado. Nas mãos, a rosa branca reinava sozinha com sua beleza de pétalas frescas e parcialmente desabrochadas. Niko abaixou-se para depositar a rosa em cima da lápide, abaixo das duas datas gravadas.

– Eu te amo, Félix. – disse em voz baixa. Novas lágrimas não eram uma surpresa, tampouco era a dor que se fazia presente. – Eu nunca vou poder te dizer adeus. Então vou só dizer... Até logo.

Niko deu as costas ao pedaço de pedra gravado com o nome dele na relva, e não olhou mais para trás no caminho até a saída, acompanhado de Jayme e Jonathan. Acima deles, o vento da manhã sacudia as copas frondosas das árvores, como se elas quisessem também acenar de volta uma despedida.


* * * * * *

Niko se rendera a um novo cochilo na volta para casa. Era como se seu corpo também estivesse pesado com a tristeza que trazia no coração. Pelo menos era uma forma de escapar da dor, muito embora ela também fosse uma forma de senti-lo próximo.

Haviam se despedido de Jonathan no estacionamento, e promessas de um encontro em breve foram trocadas. Existia um forte vínculo entre os três, e Niko sabia que nenhum deles desejava perder isso. Eles eram as pessoas mais próximas de Félix, e reunir-se, ainda que isso trouxesse a sua parcela de dor, também trazia junto um pouco da presença dele. Esses breves encontros sempre provocavam lágrimas e risos. Esse era o tributo que Félix deixara e que os mantinha conectados na mesma afeição e na mesma saudade.

Ao chegarem em casa, após ganhar um abraço solidário de sua nora, Niko agradeceu e pediu licença para refugiar-se em seu quarto. Fechando a porta atrás de si, ele lançou um olhar pelo cômodo. O quarto que fora cenário de tantos momentos inesquecíveis. As brigas foram quase inexistentes. Na idade em que se encontravam, e após um encontro tão tardio, não havia sentido em perder tempo com desentendimentos, quando o tempo parecia ser a coisa mais preciosa que poderiam almejar. Carinho, afeição, cumplicidade, paixão, sexo, confidências, conversas extensas e longos silêncios confortáveis... todos esses elementos tiveram seu espaço naqueles dois anos em que se tornaram praticamente inseparáveis.

Niko lançou um olhar para a cama caprichosamente feita. Raios de sol atravessavam o quarto pelos vãos da persiana parcialmente aberta e cruzavam a superfície da cama, formando pequenos traços luminosos de poeira dançante no ar, minúsculas estrelas em movimento que desafiavam a luz do dia.

Ainda era manhã. Niko passara a não gostar das manhãs. Ele sabia porque. Fora em uma manhã como essa em que se descobrira sozinho na cama de casal. Em negação, ele ainda tentara acordá-lo com beijos e carinhos, pois sabia o quanto sempre fora preguiçoso. Desde o asilo e durante todo o tempo em que dormiram juntos, Niko invariavelmente era o primeiro a acordar. Demorara um bom tempo para a falta de resposta lhe atingir com sua gama de verdade e crueldade. Ele se fora dormindo, com um sorriso ainda pairando nos lábios.

A partir do momento em que soube disso, tudo se misturou em sua memória, trazendo-lhe a estranha sensação de que estava flutuando dentro de uma bolha d’água. Lembrava-se de algumas coisas, de outras nem tanto. Lembrava-se que não chorara logo. O choque falou mais forte, e permitiu que conseguisse cuidar de coisas práticas, como chamar Jayme por exemplo. Um desfile de rostos preocupados e lágrimas o rodeava, mas não chegavam realmente até ele. As pessoas lhe dirigiam palavras consoladoras, o abraçavam chorando. Niko apenas aceitava essas demonstrações de carinho como se não estivessem sendo dispensadas a ele, e sim a outra pessoa, mas por algum motivo, pensavam que era ele quem deveria recebê-las.

Ele apenas sorria e agradecia repetidamente. O rosto mais preocupado naquele mar difuso de rostos era o de Jayme. Lembrava-se que até Fabrício viera, as lágrimas deslizando em seu rosto, o abraço demorado e apertado.

Alguns momentos pareciam mais ou menos cinzentos do que outros. Os paramédicos haviam informado que ele não resistira a um segundo AVC, mas que havia a absoluta certeza de que nada sofrera. O sorriso sereno em seu rosto parecia confirmar isso.

Quando finalmente as lágrimas vieram, pôde perceber o alívio nas expressões de todos, como se o fato de chorar fosse um bom sinal, um sinal que ainda não enlouquecera ou virara um mero vegetal sobre pernas. Lembrava-se que a expressão mais aliviada fora a de Jayme, que o abraçou por um longo tempo enquanto Niko permitia que a cachoeira até então represada estourasse em uma enxurrada infindável mas necessária.

Os olhos verdes se fecharam, mas estavam secos. Nenhuma cachoeira agora, apenas uma sensação de vazio e um cansaço da alma. Ele andou até a cama, descalçou os sapatos, e deitou-se de lado, com a face virada para o sol que vinha da janela. O calor beijou sua face agradavelmente. Niko fechou os olhos e deixou escapar um longo suspiro. Não havia sono, e ele estava cansado demais para mais lembranças, por isso permaneceu apenas descansando o corpo naquela posição, enquanto os raios de sol faziam sua lenta e determinada trilha sobre ele.


* * * * * *

O dia transcorreu lentamente até a noite descer seu manto estrelado sobre a casa dos Corona. Na mesa de jantar, embora sem apetite, Niko se esforçara para ingerir o mínimo de comida suficiente para não provocar ainda mais preocupação em Jayme. A conversa seguiu amena, com quase nenhuma participação de Niko. Após a sobremesa, ele pediu licença e voltou para o quarto. Seu filho e sua nora sabiam que tudo ainda era recente demais para poderem exigir dele mais do que isso, e intimamente, Niko agradecia pela consideração deles.

Já havia escovado os dentes e enquanto abria a gaveta da cômoda para escolher um pijama limpo, o olhar de Niko foi atraído para um porta-retratos que descansava em cima dela. Niko pegou-o nas mãos. Olhar para aquela foto sempre lhe provocava um sorriso. A foto fora tirada no aniversário de Félix de oitenta anos, e mostrava os dois, um encarando o outro, os perfis de seus rostos registrados pela câmera de Jayme no exato momento em que Niko se divertia com a expressão contrariada de Félix. Niko no meio de uma risada, e Félix com a típica expressão de que havia mesmo salgado a Santa Ceia. Tudo porque Niko fizera questão que ele usasse um chapéu de festa colorido. Afinal, todos na festa estavam usando, por que ele não, já que era o aniversariante? Não descansara até conseguir, e quando finalmente Félix cedera aos seus apelos, sua expressão não poderia ser mais impagável.

Um dos dias mais felizes de que podia se lembrar. Haviam tantos, mas aquele definitivamente entrava para a lista dos cinco mais. O momento eternizado na foto servira para adornar a cômoda do quarto do casal. Ainda que Félix nunca perdesse uma chance de reclamar da foto, ele nunca a retirara dali. Niko sabia que ele também guardava aquele momento com carinho. Mas como o próprio Niko já lhe dissera... Félix sempre seria Félix, e estranho seria se ele não fizesse desse momento levemente constrangedor uma eterna piada.

Uma lembrança levou a outra, e Niko fechou os olhos, mantendo o sorriso nos lábios.


– Niko... Por que você quer tanto assim ver uma foto minha jovem? Já falei que não tenho nenhuma... todas se perderam no passado. E mesmo que tivesse, não sei se lhe mostraria. Porque acredite, eu era lindo demais, de parar qualquer trânsito. Você não ia querer mais saber de mim se visse uma foto dessas...

– Félix... com ciúmes de você mesmo? – Niko não pôde deixar de rir - Mas eu te acho lindo demais agora. Sempre achei.

– Eu já sabia. Queria só que você confirmasse mais uma vez.

– Seu bobo. – Niko sacudiu levemente a cabeça. – É só curiosidade. Afinal, eu já te mostrei várias minhas.

– E eu adorei cada uma delas. Pude descobrir alguém ainda mais lindo que eu, naquela época. E olha que isso não é fácil, criatura.

– Tá bom, Félix. Você venceu, não peço mais. – Niko encerrou o assunto com um beijo leve nos lábios de Félix. – Só mais uma coisa... não faria diferença pra mim te ver como você era jovem. Eu amo você de qualquer jeito e em qualquer idade. Eu simplesmente te amo.

Félix não respondeu. Talvez não confiasse na própria voz. Sua resposta veio na forma de um simples beijo apaixonado. Mais do que o suficiente para encerrar a divertida discussão e reforçar a idéia de que compartilhavam o mesmo sentimento. Da mesma forma, ambos reconheciam que ele sempre estivera lá, adormecido, somente à espera da pessoa certa para acender-lhe a fagulha da vida.


Niko abriu os olhos. Fez um carinho na moldura do porta-retratos, aproximou a foto dos lábios e apenas tocou a imagem do Félix emburrado da foto com eles, em um leve beijo. Já ia devolvê-lo à cômoda quando algo em seu dedo chamou sua atenção. Ele examinou a borda do verso do porta-retratos, e passando o dedo ali novamente, pôde sentir a pontinha de um papel saindo por sua extremidade. Intrigado, tentou puxá-la, mas estava presa pelo encaixe, e ele precisou retirar o fundo do porta-retratos para descobrir o que ali se escondia. Quando o fez, algo retangular deslizou até o chão. Niko deixou o porta-retratos aberto em cima da cômoda e abaixou-se para recolher o objeto.

Era uma foto. Quando Niko olhou para ela, seu coração acelerou-se em resposta, e seus olhos imediatamente se encheram de lágrimas.





Um Félix jovem, aparentando trinta e poucos anos, vestido em um elegante terno e gravata, exibia uma pose altiva e um meio sorriso. Na lapela, uma pequena rosa branca acompanhada de um minúsculo botão se destacavam. Pela roupa formal, Niko podia deduzir que se tratava de um casamento. Talvez ele tivesse sido o padrinho. A beleza que Niko sempre soubera se esconder atrás das rugas e cabelos brancos, ali se mostrava em sua plena exuberância e jovialidade.

– Lindo... – ele murmurou com um sorriso. Foi quando bateu-lhe a emoção causada pelo entendimento de que aquela foto fora plantada ali para que Niko a descobrisse algum dia. Essa noção roubou seu ar por um instante, deixando suas mãos trêmulas, o que fez com que a foto escapasse de suas mãos e caísse no chão. Niko apressou-se a resgatá-la, mas dessa vez ela caíra com o verso para cima.

Havia algo escrito nela. Seus olhos arregalaram-se ao reconhecer a letra de Félix, caprichada mas também trêmula, por ter sido escrita com esforço com sua mão esquerda.


“Nos foram dadas duas pernas para andar,
as duas mãos para segurar,
dois ouvidos para ouvir,
dois olhos para ver,
mas por que só um coração?
Porque o outro foi dado a alguém para nos encontrar.”

Obrigado por ter me encontrado. Eu te amo.

Ass. Félix Khoury

P.S. Não ame mais a foto do que a mim, pelas contas do Rosário!

Niko deu uma risada entre lágrimas, antes de virar a foto de frente para fascinar-se de novo com a imagem daquele jovem elegante. As lágrimas toldavam sua visão e ele piscou algumas vezes para clareá-la. Seus dedos ainda trêmulos deslizaram pelas linhas do rosto sorridente e orgulhoso da foto, perfazendo seu contorno lentamente. Naquele momento eternizado, aquele era um rosto jovem, os cabelos eram pretos, e o AVC ainda estava distante em seu futuro... Mas havia algo que era inconfundível. Os olhos negros eram exatamente iguais aos do Félix que conhecera e amava. O mesmo brilho. Um reflexo sincero de sua alma e de seu amor.

– Félix... Seu bobo... – Já era impossível falar com os soluços travando sua garganta. Niko trouxe a foto junto ao peito, e dando livre vazão à tristeza, andou até a cama e deitou-se nela, exaurindo-a até a última lágrima.

Quando o sono o encontrou, ele ainda segurava firmemente junto ao peito a foto, mas um leve sorriso tocava os cantos de seus lábios.


* * * * * *


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Notas finais do capítulo

A poesia escrita no verso da foto é de autoria de Mário Quintana.

Próximo capítulo: Nunca te vi, sempre te amei