Save You escrita por Mrs Neko


Capítulo 6
Capítulo 6 - Projeção Espiritual


Notas iniciais do capítulo

Aqueles que entendem mais de teorias espíritas, ou tem leituras sobre projeções espirituais e outras visões que surpreendem a lógica e os sentidos, por favor me perdoem. Definitivamente, preciso ler e aprender muito mais sobre a imagem do "campo de trigo".

Não sei muito bem de onde saiu essa coisa doida que você está prestes a ler. Simplesmente estava lá de boa, na oficina de desenho da faculdade, quando essa ideia maluca brotou na minha cabeça doentia. Então, por favor considere este capítulo como um "intermezzo" na linha da história, ou um capítulo extra.



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Ele acordou sentindo-se tranquilo e leve como uma pluma.



Espantou-se momentaneamente ao não ver sua minúscula casa, os frascos com as experiências, as pedras embrulhadas em jornal, nem a nojenta onda vermelha. Começou, lentamente, a se levantar, com a hesitação de uma ressaca. Testava, estranhava os próprios movimentos; desconhecia o próprio corpo.



Até que um latido ofegante bem conhecido despertou-o por completo, num sobressalto gostoso. O amável cachorrinho orelhudo, de pêlos avermelhados, corria alegremente ao seu encontro, tão depressa quanto lhe permitiam as patas curtinhas.



– Redbeard! Redbeard! Vem aqui, menino!



E ele desfrutou a sensação reconfortante do afeto do animalzinho que pulou em seu colo, e lhe lambia o rosto em festinhas contentes. Com a consciência refeita e o coração amparado, ergueu-se novamente, e observou a paisagem aberta à sua volta.



Encontrava-se num caminho de terra, que cortava um imenso trigal, que ondulava serenamente ao vento, até muito além de onde a vista alcançava. Ao longe, era possível ver, com alguma dificuldade, o início de uma longa fila, milhares e milhares incontáveis de pessoas, subiam o caminho que cortava o trigal, desde uma longa e serena praia, em cuja longínqua ponta os andarilhos da fila, meros pontinhos pretos indistinguíveis, misturavam-se às pedras das ruínas centenárias de algum antigo quebra-mar, imerso em areia quase branca e ondas da cor de turquesa.



Hipnotizado pelo som maravilhosamente sereno e poderoso do oceano, ele desceu a encosta suave que encerrava o caminho de terra, rumo à praia que lembrava as visões oníricas de sua infância, cercadas de contos fantásticos de piratas e tesouros.



Logo sua caminhada foi interrompida por uma voz doce, e ele intrigou-se sobre como, num lugar onde não se lembrava de ter ido parar, um desconhecido saberia seu nome.



– Sherlock! Sherlock, não entre na água!



A voz que chamara sua atenção vinha de um rapaz que saiu da fila, e coxeava, quase correndo, ao seu encontro, com bastante dificuldade.



À medida que ele se aproximava, era possível distinguir os detalhes de seu perfil baixo, relativamente comum e inesperadamente agradável. Os cabelos cortados à escovinha, numa exótica mistura de tons loiros, como se mesclas da areia e do trigo aderissem às madeixas de ondas suaves. A pele dourada, riscada de olheiras profundas e marcas de cansaço, violentamente queimada pelo sol do deserto. A boca fina e os olhos enormes, sábios e gentis, num tom escuro que, à medida que se ofereciam à proximidade do observador, deixavam ver um rico tom de azul profundo.



Apesar de ignorar a origem da estranha intuição inconsciente que fustigava seu íntimo, sabia muito bem que, sob a farda suja e puída, a pele bronzeada estava coberta de cicatrizes. Sua preocupação em ver os movimentos desconfortáveis e dolorosos, e o passo manco do loiro, agravou-se à beira da agonia, ao reparar no buraco de bala que se alargava numa grande mancha escarlate na camisa da farda, à altura do ombro esquerdo do rapaz que o chamou.



Não sabia a origem daquela sensação opressiva em seu peito, assim como ignorava o motivo de saber o nome dele.



– Mas, John, por que não posso entrar no mar? E temos que tratar logo desses ferimentos!



– Está tudo bem, nós chamamos um ao outro de volta. Eu não vou voltar para a fila, portanto não vou para a ceifa. E você não vai para o mar de lágrimas, por isso não vai se afogar.



Os lindos lábios carnudos se curvaram num sorriso frio e sem humor.



– "Mar de lágrimas"?! Ah, faça-me o favor, John! De onde você tira essas baboseiras românticas? Já que você me conhece tão bem, sabe que sou incapaz de chorar.



– Não é nenhuma baboseira, é do seu sofrimento que estou falando, Sherlock. São as suas lágrimas, e as de Greg e Mycroft. Eles estão sofrendo, preocupados com você. Estão chorando por você, neste exato momento. Escondidos e "a seco"... - os lábios finos do médico se alargaram num sorriso gentil e triste. - A reação do organismo, com os choques nervosos que isso causa, geralmente é bem pior que o efeito de qualquer chilique, sabia?... Foi com eles que você aprendeu a ser assim com suas emoções?



Ele poderia, perfeitamente, fingir a pose de inexpressiva e fleumática superioridade com que aprendera a encarar a vida. Seria tão fácil. Afinal, além de um detetive brilhante, era um exímio ator. Mas, mesmo sem conhecer o comum, e irresistivelmente bondoso e compreensivo capitão John Watson, sabia que nunca seria capaz de mentir sob o foco daqueles doces e paternais olhos azuis escuros.



– Não é nada disso, eu só... eu... eu...



O tom da voz de barítono perdeu a costumeira profundidade, quebrada por constrangimento, tristeza e hesitação.



– Shhhh, tudo bem... Está tudo bem, Sherlock. - os braços, inesperadamente fortes para aquele corpo franzino, o envolveram num aperto morno e aconchegante. Apesar de pequeno e meigo, ele o segurava com a firmeza de uma âncora num oceano revolto por furacões. - Está tudo bem... Estou aqui, bem perto, se precisar.



– E por que eu precisaria de você?



Seus braços pareciam frios, pesados e doloridos àquele movimento, mas tinha que soltá-lo. Não podia deixar-se cair, outra vez, sob a vulnerabilidade, os defeitos químicos e dolorosos dos sentimentos, erros humanos. Não merecia a proteção, carinho e confiança que aquele ingênuo e adorável herói de guerra lhe oferecia. E, se aquele homem amável e bondoso entrasse em sua vida, ele também seria uma vítima do Jogo de horrores com que se distraía para fingir que ainda vivia sob algum bom propósito. Nunca se perdoaria se ele acabasse ferido, despedaçado, à deriva, como seu pai, no mar de sangue. Por sua culpa.



O riso baixo, rouco e inesperadamente agradável do soldado interrompeu seus devaneios amargos.



– Seu crianção. Já que você se recusa a entender, eu vou explicar. Nós dissemos os nomes um do outro; e os nomes tem um grande poder. Acabamos de chamar um ao outro de volta do que as pessoas costumam chamar de "Morte". Queira ou não, precisamos um do outro...



De novo, aquele breve e reconfortante abraço. Ele cheirava a sangue, dor e pólvora, mas seu toque era leve e cuidadoso. E o pequeno e delicioso corpo esguio se encaixava perfeitamente em seu peito.



– ...E vamos nos conhecer em breve.



– Como pode saber do que ainda não aconteceu? Isso não faz sentido!



– Teimoso! Sabia que nem tudo na vida se resolve com lógica?



– Esta é uma lição que eu gostaria de ter aprendido mais cedo, capitão Watson.



Aquela voz! Não podia ser verdade. Seus sentidos começavam a traí-lo. Primeiro, o tato perdera o calor de John, desvanecido numa onda etérea parecida com areia. Depois, a visão mostrava aquela pessoa, exatamente igual à pintura da memória.



Livres dos usuais produtos, os mesmos cabelos mesclados entre ruivo e grisalho caíam em ondas suaves; emolduravam o rosto amplo e anguloso, que parecia pintado por um mestre. Um rosto que quase refletia o próprio, ou o de Mycroft. Os olhos que costumavam ser severos, felinos, pálidos e argutos, entre o verde, o cinzento e o azul. O nariz aristocrático e pontudo, as maçãs do rosto altas, e a boca de poeta. A voz tranquila e eloquente, quase vitoriana, uma serena expressão de poder, oriunda das profundezas do passado. E, ao contrário daquele fatídico dia horrível, o corpo alto e imponente era a perfeita imagem da saúde e elegância, impecável num terno cinza-chumbo, de corte ajustado, sem a costumeira companhia da bengala de madeira maciça entalhada.



– Que cara é essa, Sherlock? Cresceu e não conhece mais o próprio pai?



– Você não está vivo! Eu ouvi... eu vi... você morrer!



Arthur Holmes abriu um riso rouco e sem humor, exótico e charmoso como o sorriso sardônico herdado pelos filhos.



– E se você veio parar aqui por conta própria, apesar da intervenção do bom soldado Watson, talvez não falte muito para que seu corpo se separe da alma.



– Não venha me dizer que também acredita nessas coisas de misticismo, e visões espirituais, igual o coitado do John! - o rapaz moreno tentou esconder o assombro com a afronta.



– Bom Deus, eu devo ter sido realmente um homem horrível, para ter filhos assim tão teimosos! - o aristocrata suspirou, enquanto ajeitava, sem necessidade, a gravata azul. - Então, vou responder com fatos, do jeito que você gosta. Depois de ajudar aquele moço, Lestrade, com um ou dois casos, vocês foram para algum lugar perto do rio, onde havia acontecido mais um crime. Lá, encontram uma pessoa que teve a infelicidade de morrer de um jeito pior e mais doloroso que eu. Esse infortúnio, que tiraria o sono e a saúde física e mental de qualquer pessoa, teve efeitos desastrosos no meu pobre filho, que se lembrou de mim, da pior maneira possível, a ponto de acreditar que precisava de uma overdose.



Arthur aproximou-se do rapaz, enternecido em notar que, apesar da diferença de um palmo ou dois, ainda era mais alto que o filho. Não devia se deliciar com um encontro naquelas circunstâncias, mas estava surpreso em ver como ele havia crescido e se tornado um homem belíssimo. E talvez depois de tentar colocar um pouco de lógica na situação, seu rebento, mais teimoso que um gato de mau humor, poderia concordar com seus conselhos. No desejo de confortá-lo, estendeu a mão para fazer um afago nos cachos negros. Quando o garoto deu um passo para trás, afastando-se dele com os olhos claros dobrados de tamanho e nublados de mágoa, o patriarca disfarçou a decepção com uma pergunta suave.



– Por que você fez isso, meu filho?



– Não consegui te esquecer, e para piorar tudo, não importa para onde eu vá, não consigo fugir de você... - bufou o mais jovem - Pelo amor de Deus! Você é pior que o Mycroft!



– Não é sua culpa, Sherlock.



Arthur aproveitou a completa ausência de reação de seu menino atônito e abraçou-o. Como lamentava não ter feito isso, há tantos anos, com ambos os seus filhos! Ele fora presenteado com uma esposa maravilhosa, que o amava, e filhos inteligentes, leais e corajosos, que o viam como um herói.



Desejou, por vezes incontáveis, sem sentido e obviamente sem sucesso, voltar no tempo e se dedicar mais à sua família, seu tesouro. Desejou que sua morte violenta não causasse tamanha ferida nas pessoas que amava. Apesar da ânsia por um desejo irrealizável, ele ainda podia reparar ao menos um pouco do mal que causara na vida do próprio filho, com as palavras que subiam de seu coração comovido. As palavras que, há tantos anos, ele precisava dizer.



– Não foi sua culpa. Você sabe, muito bem, o quanto nós somos talentosos em fazer inimigos... Aquele foi apenas o resultado de uma operação malsucedida. Claro que nunca vou me orgulhar do que fiz, mas quando tudo acabou, fiquei feliz por ter protegido você, Violet e Mycroft. Mesmo que tenha sido pela primeira e última vez, fiquei feliz porque, apesar de morto, pude garantir, por algum tempo, a segurança da minha esposa e dos meus filhos, das pessoas que mais amei. Nada do que aconteceu foi sua culpa, Sherlock. O fato de você estar ali, comigo, foi só uma fatalidade.



– Mas por que... - a voz do garoto se quebrava em angústia e dúvida.



– Porque existem momentos, fixados no tempo, em que todas as vidas acabam; em que todos os corações se partem. Lembre-se das palavras do seu amigo: nem tudo se resolve só com lógica. - Arthur riu do espanto nos úmidos olhos verde-acinzentados, que se arregalaram quando a sentença não acabou com as palavras de Mycroft. - Não quero que meus filhos cometam o mesmo erro que eu. Agora volte, e diga a Violet e ao seu irmão que eu os amo muito.



– Eu, nada! - Sherlock, indignado, soltou-se, rompendo o abraço. - Não sou seu moleque de recados.



– Oh, pelo amor de Deus! - exclamou Arthur, entre risos, desta vez uma gargalhada gostosa e espontânea. - Definitivamente, eu fui um pai horrível! E já que você não vai se lembrar de nada do que aconteceu aqui, provavelmente, continuarei sendo um verdadeiro carrasco. Paciência... Ainda preciso evoluir muito, aprender muito, para conseguir me comunicar com eles. Então, eu mesmo direi. Mas com duas condições.



– Quais?



O pai admirou a energia vívida na voz e na expressão renovada do filho. Era bom ver que, mesmo sob o passar dos anos, os Holmes não perdiam o gosto pelo bom diálogo e pelos desafios.



– Volte logo. Mycroft e seu amigo estão preocupados com você; sem contar que, quanto mais tempo ficar aqui, menores são as chances de recobrar sua "consciência"... E, quando a hora chegar, diga o mesmo para o John.


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Notas finais do capítulo

1. Isto é super importante, e quase que esqueço de dizer: Conan Doyle não deixou, nos livros e contos, muitas informações sobre a família de Sherlock Holmes, ou sobre a sua vida privada, antes de conhecer o dr. Watson. Em um dos contos, "Os Seis Napoleões", se não me engano, ele conta que sua avó era francesa, e conhecemos muito bem, em "Os Planos do Submarino Bruce-Partington" e "O Caso do Intérprete Grego", as aparições elegantes do Mycroft. Mas isto é tudo. Então, para bater com as linhas do tempo das histórias da Eowin Symbelmine, como expliquei no capítulo 1, atribuí esses nomes falsos pros pais dos irmãos Holmes.

2. Yay!! Uma aparição do John, esse loirinho fofo e protetor, padroeiro dos detetives consultores, denguinho do meu coração!

3. Peço perdão novamente, se a ação deste capítulo ficou muito OOC.

Talvez isto seja justificável pelo fato de estarem numa situação espiritual, misteriosa, de questões não resolvidas e tensão emocional, uma experiência que escapa ao alcance lógico da dedução, o tipo de situação em que o Sherlock se sente super desconfortável e sempre diz que não acredita.

Se bem que eu simplesmente precisava escrever isto em algum momento da trama, para explicar o trauma dos meninos. Precisava desesperadamente tirar isso de dentro de mim. Então por favor, comente e me diga o que achou!



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