A Divisão Entre Mundos escrita por PeressIgor


Capítulo 3
Capítulo 3 - Uma Memória Bloqueada




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Capítulo 3 – Uma memória bloqueada

Nunca fui muito de visitar fazendas. Nasci e fui criado em um ambiente urbanizado. Poucas foram as vezes que eu realmente saí para explorar o mundo ao redor de mim. Uma parte de mim se arrepende disso. Lembro-me de uma vez que fui na fazenda de um parente distante. Eu deveria ter uns 8 anos, talvez. Enfim, foi em um feriado. Eu não queria ir, queria ficar em casa, brincando, onde eu era confortável, porém fui obrigado a ir. A viagem foi longa, tanto que até dormi por parte dela. Chegando lá, eu não conhecia ninguém.

A fazenda era de um primo distante do meu pai. Sobre meu pai, ele foi um homem muito bom, sempre ajudava os outros, sempre colocava a família em primeiro lugar, sempre tentava dar o melhor para nós. Enfim, não há muito o que dizer sobre ele, apenas que todo o bem que ele fez foi enterrado com ele quando foi levado de nós, alguns anos depois. Eu explicarei isso depois.

O primo do meu pai se chamava Stuart, era um cara que tinha seu próprio bar em uma cidade próxima, tinha cinco filhos e uma grande fazenda. Por mais que o lugar fosse bonito, eu simplesmente não conseguia me sentir bem lá. Era como se fosse um mundo completamente diferente. Passei o dia reclamando, ao invés de tentar me enturmar com os filhos de Stuart.

O lugar era muito bonito. Era próximo de um lago, então a vista era fantástica. O aroma de lá era diferente, era um cheiro de... bom... natureza, vida, de um ambiente puro, de um lugar onde você podia simplesmente relaxar. Pensei nisso mais para frente e até hoje não entendo o porquê de eu não me sentia tão bem lá. Bom, chega de falar da minha infância por enquanto, vamos voltar ao ponto.

O ambiente continuava coberto em sua maioria pela espessa névoa, e aparentemente, a fazenda continuava vazia. Foi quando eu notei que havia alguém dentro da casa. Havia uma sala do lado da entrada da casa. Havia um senhor lá, devia ter seus 50, 60 anos. Estava sentado em uma poltrona, vestindo um colete de caçador, daqueles camuflados, com um rifle de caça apoiado no braço da poltrona, que por sinal me lembrava um pouco do rifle do caçador...

– Senhor? – Chamei sua atenção.

– Não. – Ele respondeu.

– Não o quê? – Indaguei.

– Não, você não está maluco.

– E quando foi quando eu perguntei se estava maluco?

– E quem disse que precisou perguntar?

– Quem é você? O que é este lugar?

– Primeiro, quem é você? – Perguntou. – E segundo, essa é a minha propriedade, meu lar, onde eu cresci. O que você está fazendo aqui, meu jovem?

– Eu não sei, gostaria que alguém me explicasse. – Respondi.

– E eu pareço ter uma bola de cristal para saber?

Não sabia quem aquele homem era, mesmo sua aparência sendo familiar. Estava começando a me irritar.

– Como você chegou aqui? – Perguntou a mim, enquanto se ajeitava na poltrona.

– Não sei.

– Como não sabe?! – Indagou. – Do nada você acordou e estava na minha propriedade?

– Foi mais ou menos assim, sei que parece estranho, mas não tenho ideia do que está acontecendo.

– Muito menos eu, filho...

– Existe algum lugar onde eu possa encontrar alguém para me ajudar?

– Há uma cidadezinha norte daqui, talvez uns 3 quilômetros de distância. Só seguir reto pela direção norte. Eu lavaria uma arma se fosse você, por precaução.

Notei nesse momento que não estava com o revólver que havia encontrado no hotel em que acordei, não entendi o porquê.

– Obrigado pela informação. Por acaso o senhor vive sozinho aqui?

– Sim, nem sempre foi assim, mas uma hora ou outra tudo muda.

– Por acaso você viu uma garota vestida de preto carregando uma cesta de flores?

– Meu jovem, um conselho: pare de usar drogas.

Até pensei em insistir, mas já havia perdido a paciência. Segui norte. Foi uma caminhada que parecia não acabar. Era possível só ver névoa, árvores e mais névoa. Depois de andar bastante, avistei alguns edifícios altos de longe. Eu havia chegado na cidade da qual o velho havia falado. As ruas eram estreitas, as casas simples e os edifícios não tão altos. Aparentemente, e para variar, estava abandonada. A cidade parecia um labirinto, os quarteirões eram muito parecidos e as casas também.

De longe, foi possível ver que havia alguém na distante esquina. Era uma figura escura, difícil de identificar, até porque minha visão não é das melhores. A misteriosa figura começou a andar e virou à esquina. Parecia ser uma mulher vestida de preto, talvez fosse aquela garota que eu tinha visto antes de chegar na fazenda. Tentei segui-la, mas acabei me perdendo mais ainda, até que, depois de andar alguns quarteirões, eu vi que ela entrou em um lugar que parecia ser um salão de festas.

Quando entrei, senti que o lugar era familiar, até mesmo seus detalhes. Uma memória veio à tona. Eu devia ter uns 15 anos, talvez. Nunca fui muito de ir em festas, mas daquela vez, eu estava com vontade de sair, vontade de me enturmar. Nessa época, eu estava começando a ficar amigo de Leon (lembra dele?). Ele me apresentou a algumas pessoas, uma delas me convidou para sua festa de 15 anos.

Era uma noite de sexta. A festa começou às 20h. Cheguei cedo. Sim, eu sei, não é muito legal “abrir” uma festa, mas até que eu estava ansioso nesse dia. Fiquei um tempo sozinho, tomando refrigerante, morrendo de ansiedade, normal. Quando o pessoal começou a chegar, comecei a me enturmar com eles. Conheci umas pessoas legais. Eu percebi que muitas pessoas iam com frequência até um canto meio isolado carregando um copo vazio e depois voltavam com ele cheio. Depois de um tempo começavam a falar meio “mole”. Acho que você já entendeu.

Por mais que muita gente sugerisse, eu não bebi, nem uma única gota. Eu não fui o único, mas fui um dos poucos. Nessa época eu tinha consciência de que eu não precisava daquilo, que mesmo que bebesse só um pouco, poderia me fazer mal. Pena que eu não levei esse pensamento comigo pelos anos seguintes...

Os caras com que eu estava conversando já estavam bêbados. Vi que havia uma garota conversando com outras. No momento que a vi, fiquei, digamos, “encantado”. Ela era a mais quieta das garotas daquele grupo. Ela era uma das poucas que não haviam bebido. Fiquei olhando para ela por um tempo considerável, e vi que ela olhava para mim às vezes. Os caras pertos de mim e as amigas dela notaram e começaram a falar.

Não vou mentir, estava com vergonha, e ela também, mas eu estava cheio de deixar minha vergonha me prejudicar. Após um certo incentivo, começamos a conversar. A hora simplesmente voou. Nós conversamos sobre muitas coisas, descobri muito sobre ela e ela sobre mim. Nenhum de nós queria ir embora. Depois da festa, continuamos a conversar e passamos a gostar mais um do outro com o tempo. Nós tivemos um relacionamento sério, que durou até que bastante. Antes de tudo, aquela tinha sido a melhor época da minha vida. Diante de tantas lembranças tristes, eis uma feliz.

Minha reminiscência foi interrompida por uma voz feminina. Era a garota das flores.

– Enfim nos encontramos. – Ela disse.

– Quem é você?

– Realmente importa quem eu sou?

– Sim, importa. – Respondi sem muita paciência. – Não sei se você sabe, mas eu não tenho ideia do que está acontecendo aqui, então, mais uma vez, eu lhe pergunto: quem é você?

– Você diz não ter ideia do que está acontecendo, diz que não sabe o que é esse lugar, mas na verdade, você sabe sim, apenas não lembra.

– Mas... de que merda você está falando?

– Você pode nunca ter vindo aqui, mas esse é o lugar onde a fonte da sua vida surgiu. Naquela fazenda, para ser mais específico.

– Ah... o quê?

– Sua mente bloqueou essa memória, assim como muitas outras. Olha fundo para dentro de suas recordações, aí você se lembrará. Eu tenho que ir agora, mas saiba que nós encontraremos novamente. Tenho que te entregar algo antes de ir.

Ela me deu um envelope que parecia ser antigo, porém estava lacrado.

– Espere, aonde você vai?

– Vou estar por aí, não se preocupe. –Respondeu enquanto passava pela porta do salão.

– Você ainda não me disse seu nome!

Ela já havia desaparecido quando eu disse isso. Resolvi então abrir o envelope, que era bem leve por sinal. Dentro dele havia uma foto antiga. Ao olhar para a foto, eu senti como se minha mente tivesse simplesmente liberado algo que estava trancado para mim. Foi quando eu sentei e comecei a lembrar. Lembra do que eu falei sobre meu pai antes? Que ele era um bom homem e blá blá blá? Bom, isso era o que todos pensavam dele, até certo ponto...

Pelo que me contaram, ele cresceu em uma fazenda que ficava perto de uma pequena cidade, bem isolada. Com o tempo, ele se mudou para a minha cidade, começou a trabalhar com negócios e empresas, foi subindo no mercado de trabalho, conheceu minha mãe, se tornou bem-sucedido, se casou com ela e uns tempos depois eu nasci. Até aí tudo bem. Ele era bem legal comigo, com minha mãe, com todos. Ajudava-me bastante com qualquer problema que tivesse.

Quando eu tinha uns 11 anos, meu pai começou a agir um pouco estranho. Ele dizia que “os negócios estavam indo mal”. Ele começou a nos ignorar, começou a chegar tarde em casa. Eu ouvia ele gritando no telefone de madrugada. Ele ficava de mal humor toda hora. Eu não entendia nada na época, via meu pai como a maior inspiração possível. Ele começou a sair muito, às vezes saía de noite e só voltava de manhã, e ninguém sabia o que ele fazia enquanto estava fora.

Em uma determinada noite, ele estava muito para baixo. Eu estava prestes a ir dormir, quando ele entrou no meu quarto.

– Filho, preciso te falar algo. – Disse em um tom depressivo.

– O que foi, pai?

– Muitas vezes na vida, você pensará que está tudo bem, que tudo está indo de acordo com o planejado, que nada pode dar errado. Saiba que isso são seus sentidos tentando te enganar. Muitas pessoas não são o dizem ser ou o que parecem. Isso é bem comum. Não deixe eles te enganarem. Seja sempre você mesmo, seja sempre honesto, entendeu?

– Sim, pai. O que tá acontecendo?

– Não se preocupe. Lembre-se sempre que eu te amo, eu que tudo que eu fiz, eu fiz por sua mãe e você. Talvez você ouça coisas ruins sobre mim, mas lembre-se do que eu acabei de te dizer. Eu tenho que ir agora.

– Você vai demorar?

– Não sei, espero que não. Adeus, filho...

Acordei no meio da madrugada. A luz da sala estava acesa e eu ouvia pessoas discutindo. Fui espiar para ver o que estava acontecendo. Minha mãe estava conversando com dois policias. Ela estava em lágrimas. O ar estava frio. Não podia ser coisa boa. Quando ela me viu, ficou pior ainda, pois não sabia como me dar a notícia.

O que aconteceu foi o seguinte: meu pai havia ido até um bar no centro da cidade. Alguns homens suspeitos entraram no bar e começaram a discutir com meu pai. De repente, eles começaram a brigar. A situação ficou tão feia que terminou em um tiroteio entre meu pai e os homens. Ele conseguiu matar três deles e deixar dois feridos antes que sua vida acabasse.

Você pode estar com dúvida agora. “Mas seu pai não era um bom homem? Uma pessoa que só fazia o bem? Por que mataram ele? ” Bom, nós também pensávamos assim, até que resolveram investigar fundo no caso, já que meu pai era um “empresário” de sucesso. Outra coisa que chamava atenção sobre ele era que ninguém sabia exatamente com o que ele trabalhava e como ele enriquecia. O que eles descobriram? Vou te contar.

Aparentemente, ele sempre foi um bom negociador. Chegou na cidade quase sem um tostão e começou a se envolver com o crime organizado, não como comparsa, mas sim no setor “administrativo”. Durante todos esses anos, ele conseguiu esconder isso de todos. Enquanto estava perto de nós, era um ótimo pai, sempre uma boa pessoa, porém longe de nós ele administrava todos os tipos de negócios relacionados com o crime organizado e atividades ilegais.

Ele era uma pessoa respeitada na nossa família e na outra família dele também. Ninguém acreditou nisso quando foi divulgado, mas com o tempo, provas foram aparecendo. Evidências mostravam seu envolvimento em golpes, conspirações e até em alguns assassinatos. Eu sempre quis que meu nome ficasse conhecido, mas não do jeito que ficou, pois a cidade inteira ficou sabendo que Harry Travitz enganou à todos, e eu carregava seu sobrenome.

Esse acontecimento me assombrou por vários meses. As pessoas começaram a esquecer. Eu tentei esquecer também, nunca funcionou 100% na minha adolescência, o que leva à questão: como eu poderia ter esquecido tudo isso? Como eu poderia ter esquecido minhas amizades? Como poderia ter esquecido um grande pedaço da minha vida? Como poderia não saber como cheguei naquela fazenda?

Eu parei naquele momento. A foto que estava no envelope era uma foto da minha família, quando eu tinha uns cinco anos. Fiquei talvez meia-hora sentado no chão do salão, sem conseguir me lembrar de mais nada. Talvez mais memórias viessem com o tempo. Do nada, senti uma forte dor entre minhas costelas direitas. Tudo começou a escurecer e comecei a ouvir vozes.

– Ele está se mexendo! Está se debatendo muito!

– Segurem-no!

Tudo escureceu. Quando tudo voltar a ficar claro, vi que estava deitado em uma cama e haviam pessoas ao meu redor. Eram Jack, Jester e Lysa.

– Jack, é você? – Perguntei.

– Sim, agora relaxe, não se esforce muito, ainda está ferido.

Olhei para meu tronco e lembrei da facada que havia levado daquele soldado do caçador. O ferimento havia voltado, e a dor também.

– Jack, o que aconteceu? – Perguntei a ele.

– Você sobreviveu, meu amigo, sua hora não chegou ainda.


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