Vermelho - Terra de Gelo e Sangue escrita por Benjamin Theodore Young


Capítulo 1
Kulaks, Vermelho e Vida Breve




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Interior da Rússia, 1922.

- Socorro!

Os invernos estavam cada vez mais sombrios, os ventos já não eram mais de frio, mas sim de um presságio ou alguma partida prematura, a morte assolava a Rússia, nos anos que precederam a revolução, veio a guerra civil e agora a fome.

- Socorro! Tinha no pedido de socorro de Valentyn um tom agourento cheio de medos, não era bom! Havia dito a si mesmo que o seu fim viria a qualquer custo, era um desertor afinal. Apesar do fim da guerra que lhe corrompera todos os seus sentidos sóbrios e humanidade, o rapaz de dezesseis anos ainda tentava pela sua sobrevivência, andou por semanas as escondidas e à deriva, entre montes, vales estéreis, neve e frio. A fome que fora acometido algumas vezes passava-lhe incólume quando se lembrava de suas matanças, acordava onde quer que estivesse dormindo aos berros e em prantos.

Havia por fim escolhido viver de verdade, e não apenas tentar, foi quando avistou no breu e no vasto campo de neve refletido pela luz da lua uma casa com um pequeno facho de luz, dirigiu-se até ela e caiu no rodapé da porta de entrada sem mais forças, apenas balbuciava – Socorro! Neste instante passeava pela porta o cachorro da habitação, era uma casa de camponeses, mas não camponeses empobrecidos pela guerra e pela fome russa, eram os Kulaks, àqueles definidos pelo exército vermelho como camponeses ricos e traidores da ideologia coletiva. O cachorro então farejou a brecha na porta, e deu duas latidas, como se anunciasse a presença de alguém, nesta hora Lavínia e Maksimilian estavam sentados diante a lareira, quando olharam um para o outro, espantados e temerosos pelo o que poderia ser.

- Socorro! Permitido pelo silencio funéreo que se fazia naquela noite, Maksimilian então pode ouvir os sussurros de socorro pedido por Valentyn, dirigiu-se até a porta abrindo-a depressa e ao mesmo tempo repreendido pela irmã temerosa.

- Não abra meu irmão, pode ser uma armadilha!

- Não há necessidades de armadilhas para pegar-nos irmã, uma pesada na porta já seria o suficiente!

Maksimilian então avistou o jovem debilitado, que tremia feito bezerro recém-nascido, quando tomado de um ímpeto próprio colocou o jovem entre seus braços e o levou para o sofá da sala, e somente ali, deitado no sofá percebeu então o perigo que corria.

- Ó céus, é um soldado, um soldado do exército vermelho irmão! Veio nos matar! Lavínia carregava uma face lívida e angustiante ao ver um jovem soldado em sua casa.

- Aquieta-te irmã, é apenas um rapaz!

- É um homem! E soldado. Enfatizou a irmã aos nervos.

- Por enquanto ele nada nos pode fazer! Aquieta-te, e amanha então saberemos.

Lavínia recolheu-se atônita para os seus aposentos, e com alguma dificuldade conseguira dormir, enquanto que o irmão Maksimilian decidiu que dormiria na poltrona da sala de frente com Valentyn.

. . .

Na manhã que se fizera Lavínia já estava a algum tempo sentada à mesa do café da manha posta, nervosa, e a espera do jovem soldado despertar, enquanto seu irmão o fitava de frente. Neste instante Valentyn abriu os olhos marejados de sujeira e tentou procurar algo em seus bolsos para limpa-los, quando fora surpreendido pela benevolência de Maksimilian levando-lhe lenços umedecidos, e em seguida disse-lhe – Obrigado!

- O que fazes aqui soldado? Qual é o seu nome?! Maksimilian era também jovem, não tanto quando Valentyn, mas jovem. Havia a alguns anos perdido os pais em um acidente de trem, e ficara para ele a carga dos cuidados da fazenda e da irmã.

- Meu nome é Valentyn! Disparou o jovem que demonstrava receio em responder.

- Veio para nos matar soldado? Perguntou Maksimilian de forma seca e sucinta.

- Longe disso meu senhor! Não estou aqui para matar ninguém, a não ser a minha própria fome, a minha ângustia, o meu ser que me consome! Sou desertor senhor, sou fugitivo, e agora perseguido por aqueles de quem um dia foi aliado.

- E porque desertas?

- Deserto da vida meu senhor, da morte, sou demasiado jovem e já matei muitos. Mas isso agora me persegue como os que já persegui. Valentyn declarava ali toda a sua sinceridade que fora acolhida por Maksimilian e relevada por Lavínia.

- Matemos a fome então, há um prato de comida para si na mesa. Pode-se levantar?!

Valentyn então estendeu sua mão esquerda para Maksimilian, como quem lhe pedisse apoio para a caminhada, os pés estavam cheios de bolhas devido às caminhadas longas e os coturnos de couro úmidos e apertados. Ambos comeram enquanto a irmã mais nova somente observava, desde pequena, quando estava na presença de estranhos, nunca, impreterivelmente, nunca falava. Foi quando Valentyn entre uma colherade de sopa e uma mordida de pão, avistou do outro lado da sala um piano velho e empoeirado, e começou aos poucos a se familiarizar com a casa de fazenda, era abastada, era típica daqueles que ele um dia perseguiu.

- Por ventura creio que já percebeu o que somos soldado! Disse Maksimilian, acompanhando os olhares de Valentyn. – Não há bedniaks, serednniasks e kulaks soldado! Somos todos russos e iguais, lutamos pelo mesmo ideal.

- Eu não luto por nada meu senhor, lutei por um tempo, mas me fiz lutar. Sou de família nobre, ou era até o dia em que fomos caçados pelos bolcheviques e presenciei meus pais e meus irmãos mais novos serem executados, isso tudo porque tínhamos um piano na sala, naquele momento corri o máximo que pude e me embrenhei entre aqueles que me acolheram, e só olhei para o seu piano por causa disso. Lembrei-me que em outrora eu já toquei. – Podes tocar se o quiser! Disse-lhe.

Valentyn então se distanciou da mesa deixando o café para depois, emocionara-se com o convite e colocou-se em direção ao piano, sentou-se e começou com alguma dificuldade a tocar as teclas, quando por fim recordou as notas e começou a tocar Tristesse, Chopin. Lavínia derramou uma lágrima singela e levantou-se para olhar de perto, enquanto Maksimilian o admirava profundamente, entre suas expressões faciais ao tocar o piano e a intimidade apaixonante com qual tocava, e lembrou-se, Tristesse era a melodia que mais mãe gostava.

. . .

Havia se passado algumas semanas entre eles, e a intimidade aos poucos fora se instalando cada vez mais. Lavínia que sempre se opusera ao jovem desde o primeiro instante começava comedidamente aceitar a presença do rapaz. Enquanto que Maksimilian há tanto tempo já afastado de alguma presença masculina ia cada vez mais se deleitando com o vinculo que estava ali se criando. Os dois se davam bem de maneira sincera e recíproca, ambos eram jovens, e ambos haviam passado por traumas que os ligavam instintivamente. Eles, sem que percebessem a sutileza do que viviam estavam irremediavelmente se apaixonando, pela presença física, emocional e latente sentimento. Algumas outras semanas passaram-se tranquilas sobre os vales de Woldemar, a terra onde eles habitavam, era de difícil acesso e a cidadezinha mais próxima ficava a dois dias de distancia, estavam de certa forma a ermo. E os seus sentimentos eufóricos de um para com o outro estava cada vez mais nocivo, não sabiam os jovens o que lhes acometiam, só sentiam que cada vez mais era necessário a presença de cada um em suas vidas. Não havia eles, até ali trocado sequer um abraço ou um toque malicioso e intencional, sequer então passavam pelos seus pensamentos a possibilidade de um beijo, aquele beijo inflamado de amor viril, pois Valentyn e Maksimilian assimilavam a necessidade física da presença de cada um em seus dias, mas não assimilavam do amor de homem para com homem que gritava em seus corpos. Queriam entender, todavia não o conseguiam.

Lavínia era esperta, como lhe dizia a mãe, era perigosa, ardil, e diferente do irmão, raciocinava e entendia das coisas com muito mais precisão do que Maksimilian. E ela aos poucos presenciando suas vidas, entendeu que de alguma forma Valentyn, não podia mais permanecer ali. Entretanto suas investidas contra a presença do jovem eram todas em vão, ainda que sorrateira e mais velha o que sempre reinaria na casa era a voz altiva e patriarcal de seu irmão, afinal, era suposto ele lhe dar ordens e cuida-la. Mas Lavínia não era de todo má, apenas lhe percorria a mente pensamentos que lhe deixavam temerosa. Porém a afinidade amorosa entre os dois rapazes tornava-se tão forte, que mesmo na iminência de um fato ruim, seu irmão não conseguiria raciocinar de forma lógica. Ela já com alguma certeza havia entendido que os dois já não eram mais amigos ou irmãos, eram amantes, porém somente ela o percebera. Então lhe incumbiu a si, o desmanche dessa fatalidade presumida por ela.

- Preciso ir à cidade meu irmão! Disse Lavínia.

- E achas que a deixarei ir só para a cidade?! De maneira alguma.

- Preciso ir ter com uma amiga! Disse-lhe mentindo.

- Amiga? Que amiga minha irmã, nunca foste de amigas!

- Recebi uma carta ontem! Quando deu por si, percebera que a mentira já havia ficado maior, deixando-a receosa e com as mãos frias. – O carteiro esteve aqui, enquanto você e Valentyn caçavam. Continuou.

- Uma carta? Neste momento Lavínia temeu que o irmão lhe pedisse para ver a carta, e o seu coração disparou. – O que dizia nessa carta? Perguntou o irmão deixando passar.

- Uma amiga, da época de escola, esta prestes a dar a luz e queria me ver. Respirou aliviada pelo irmão ter comprado a mentira e por enquanto não ter pedido a carta.

- Entendo minha irmã, mas digo-lhes, não iras só, podemos ir ao final de semana.

- Ela pede-me urgência, esta muito aflita. Eu gostaria de ir amanha bem cedo! Sorriu sem graça como quem mentia mais uma vez.

- Onde está a carta? Perguntou Maksimilian pressentindo a mentira e a ansiedade da irmã.

- Desculpa?! Remendou Lavínia trêmula e aflita.

- A carta! Quero lê-la. Seu irmão já trazia consigo um semblante seco, obtuso e uma firmeza assustadora na voz.

- Minha carta! Disse-lhe com o semblante lívido – Minha carta, não permitirei que leia. Respondeu Lavínia.

- Você esta mentindo, o que quer fazer sozinha em Alexej? Perguntou Maksimilian firme, enquanto era fitado por Lavínia e Valentyn que transmitia desconforto com a discussão.

- Não estou mentindo, porque desconfias de mim? Você colocou um indigente dentro de nossa casa e desconfias de mim! O que pensas que sou. Lavínia tentava dramatizar a situação para que pudesse escapar dela vitimando-se.

- Chega! Maksimilian bateu os punhos cerrados na mesa e levantou-se irritado, dirigiu-se a irmã pegando-a pelos braços e arrastando-a para seu quarto, enquanto ela ia praguejando a cena. – Ficas aqui até segunda ordem! Mentirosa, descobrirei o que armas, e ai de ti, ai de ti.

Naquela madrugada após todos deitarem, Lavínia fora sorrateiramente na cozinha e colocou em uma bolsa de couro alguns pães, queijo e água, foi até o celeiro armou o cavalo e fugiu para a cidadezinha. No dia que precedera os acontecidos, Valentyn acordara com a fúria de Maksimilian, que quebrava todo o quarto de Lavínia ao descobri-la. Fora então impedido por ele que se pusera na sua frente segurando-lhe os pulsos e os abaixando, pedindo-lhe calma, enquanto fitavam-se pela proximidade intima de seus corpos, Maksimilian então arrefeceu os nervos e olhando calmamente para os olhos de Valentyn, percebeu pela primeira vez que nunca tinha apreciado a cor deles, eram verdes, como os campos de verão. Sentiu seu coração acelerar fortemente enquanto as mãos de Valentyn ainda o seguravam, e pela primeira vez em meses, entendeu o que sentia por ele.

Valentyn deu mais meio passo diante suas proximidades, enquanto cruzava seus dedos com os dedos de Maksimilian, encostou sua cabeça em seu peito e envolveu os braços de seu acolhedor envolta de sua cintura, fazendo com que ele apenas encostasse seu queixo em sua cabeça e fechando os olhos lentamente, entregou-se ao momento que a muito tempo já lhes eram cobrados, entretanto nunca apreciado. Num súbito Maksimilian então se afastou dizendo – Fica longe de mim! Saiu às pressas do quarto descendo as escadas e cruzando a casa toda em perplexidade, havia ele naquele momento descoberto que o amava, e que estava perdidamente apaixonado. O jovem desertor sentou-se atônito no chão frio do quarto, e começou a conjecturar o que seria de si novamente, entretanto, assim como Maksimilian, ele, também estava descobertamente apaixonado. E as conjecturas do que poderia suceder com ele, por um instante desvaneceram, lhe fazendo apenas admirar o abraço terno e amoroso que deram.

Maksimilian então retornou a casa, e adentrara o quarto onde estava Valentyn tão abrupto como saiu. E a surra ou o despejo que ele, pensou que receberia naquele momento, foi na verdade tomado por um abraço absurdamente forte, apertado, ofegante, como quem não quisesse soltar nunca mais, em seguida Maksimilian verteu uma lágrima dolorida do sentimento que lhe espremia, segurou o rosto de Valentyn e lhe beijou a boca ternamente e confuso, mas continuava, enquanto era correspondido, e tiveram ali entre os lençóis e travesseiros de Lavínia, deitados ao pé do outro, cheio de aconchegos e ternura, e não houve nada além de trocas recíprocas e informações daquilo que estavam vivendo juntos.

. . .

Passaram-se seis dias após a fuga da irmã, e os jovens estavam extasiados de si, seus olhares, abraços, toques singelos, uma mão no ombro, uma mecha de cabelo levantada, um sorriso sincero. Estavam no ápice de seus amores correspondidos deliciosamente. Naquela tarde, onde o frio invernal já se desfazia aos poucos, Maksimilian aproximara-se de Valentyn de uma maneira diferente, porém conhecida, entretanto seria aquele momento para os dois o concluir de suas paixões efervescentes.

Haviam dois corpos nus cheios de vida e viris sobre a cama, Maksimilian era alto e tinha braços e dorso fortes, enaltecidos por uma pele branca quase que leitosa, e toda vez que tinha seus sentidos tocados pela boca de Valentyn, corava-lhe a face, fazendo-o parecer como um cupidinho da capela cistina, enquanto que Valentyn na ardência de suas envolturas ia ao êxtase do sentimento, arrepiando-lhe toda a sua essência. Os jovens eram belos, cada um a sua maneira, e seus amores e deleites estavam finalmente ali, entrelaçados para o resto de suas vidas.

Na manhã seguinte, Valentyn despertara com o som de cavalos, era distante, mas tinha uma percepção auditiva inigualável devido a guerra, acordou Maksimilian dizendo-lhe que provavelmente era Lavínia se aproximando, entretanto, havia muito mais.

Quando Maksimilian deparou-se com uma pequena comitiva do exercito vermelho em frente sua casa, o seu semblante desfaleceu, tomou conta de si um sentimento obscuro cheio de angustia que por um segundo perdeu os sentidos, pois além da comitiva, havia a sua irmã junto a eles.

- Maksimilian Alekseievitch Tchecov? Perguntou um Cabo sisudo cheio de pompa.

- Sou eu! Respondeu Maksimilian firme, mas terrivelmente abalado, na verdade, temia por Valentyn.

- Onde esta o desertor? Perguntou o mesmo Cabo sem sequer descer do cavalo, quando fora interrompido por Lavínia apontando para a casa na janela do segundo andar onde avistara Valentyn. Maksimilian ficou consternado com atitude delatora da irmã, atitude que seus pais, sempre condenaram. Fechou os olhos por um instante e fitou Lavínia com um peso de morte.

A casa então foi invadida por três soldados que empunhavam armas de fogo, e em minutos trouxeram Valentyn com o nariz sangrando e a face cortada, arrastando-o casa a fora e jogando-o nas patas do cavalo onde estava o Cabo, que então desmontou o cavalo pisando com suas botas em cima de Valentyn. Maksimilian estava arrebatado pelo sofrimento de seu amado e quando se prostrou em ajuda-lo ao pedirem que parassem com sofreguidão, fora socado constantemente pelos soldados que ali estavam, enquanto sua irmã Lavínia clamava por misericórdia para com o irmão, pois ele, não tinha culpas.

- Traidores, escória, corja, ratos imundos vocês são, todos vocês! Não merecem a pátria que vivem, não merecem a terra que plantam e colhem, não são dignos nem da morte por soldados honrados, porque vocês são lixos! Lavínia se encontrava aos prantos de joelhos enquanto que Valentyn e Maksimilian estavam jogados no chão, próximos um do outro.

Naquele momento passara pelos pensamentos de Valentyn, todos os seus presságios, sempre soube que a vida lhe seria curta, era sua sina, seu carma, lembrou-se da infância, dos pais, dos tiros disparados contra eles e não temeu a morte, apesar de seus vaticínios se concretizarem, levaria consigo algo que jamais imaginou nem em seus devaneios, um amor, o seu amor por alguém, por Maksimilian. Ele Estava de bruços com a face voltada para o chão, levantou o rosto sutilmente olhando para Maksimilian e estendendo-lhe o braço, segurou as pontas de seus dedos. Enquanto o Cabo disseminava um sermão odioso.

Maksimilian lhe correspondeu o toque suave fechando os olhos sutilmente e sussurrando – Eu te amo, soldado! E um cheiro de pólvora infernal tomou conta do ar, misturado com o som assustador do tiro; o primeiro, que fora desferido na cabeça de Valentyn. Lavínia foi ao surto, gritando por clemência e perdão, enquanto o irmão lhe olhava deitado ao lado da poça de sangue que se formara.

Maksimilian esboçava um semblante vencido, e não derramara sequer uma lágrima, olhou a irmã pela ultima vez como quem dizia “Vês? É tua a culpa”, em seguida fechou os olhos, e por fim, fora calado.

Então se Fez um silêncio em Woldemar, e nada mais ali soou.

- FIM -


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