Era no Tempo do Rei escrita por BloodyMah


Capítulo 2
O Ataque no Festival - Parte I


Notas iniciais do capítulo

Olá bonitos! Desculpem a ausência. Capítulo novo pra vocês. Espero que gostem!



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Luzes, cores, música e alegria. Todo o vilarejo estava lindamente decorado com bandeirolas e fitilhos das cores do reino; a marca real, um imponente galo, que simbolizava ser o primeiro lugar que recebia a luz do dia, estava estampada nas casas, estabelecimentos e nas ruas. Claramente, os preparativos para o festival que marcava o início da primavera iam de acordo com o prazo estipulado.

O povo estava muito animado. As crianças se divertiam com as decorações; os adultos retiravam as melhores roupas do armário, ou ainda, compravam novas vestimentas para usar no baile. Em todas as três noites do festival, havia um baile no palácio, aberto para todo o povo, desde nobres a plebeus. O rei não fazia distinção hierárquica para adentrar no castelo.

Por esse motivo, as lojas de roupas tinham uma grande demanda para atender. Já estavam acostumadas a isso e aguardavam o ano inteiro para essa época.

– Bom dia – disse um garotinho, loiro, com roupas de segunda mão, mas bem arrumado, ao entrar em uma das lojas.
– Bom dia! Posso ajudar? – respondeu a vendedora.
– Eu quero comprar um vestido bem bonito pra minha irmã!
– Claro! – ela riu – E como ela é?
– Ela é alta assim – ele mostrou com a mão, ficando na ponta dos pés – E ela gosta de vermelho.
– Vejamos – ela apoiou dois dedos no queixo, pensativa – Vou pegar alguns vestidos ali atrás. Me espere aqui.

Ela entrou por uma porta atrás dela. Retornou com três modelos diferentes e colocou-os na mesa em frente ao garoto.

– Esse aqui! – ele apontou para o terceiro, de um vermelho mais escuro, com uma saia de três camadas, cheias de babados, e o corpete bordado de fios prateados, formando arabescos por todo ele.
– É uma ótima escolha! São 20 peças de cobre.

O menino pegou uma bolsinha de dentro do casaco e tirou a quantia exigida. A vendedora recebeu, colocou o vestido dentro de uma caixa e entregou a ele.

– Obrigado – agradeceu, saindo da loja.
– Não há de que! Aproveite o festival!

**

– Eu aposto que ele vai ser pego antes de chegar!
– Eu aposto que ele já foi pego!
– E ieu aposto que dois marujo vão afundar junto com a âncora se continuarem duvidando da capitã – disse Gina, por trás deles, com as mãos na cintura.
– Desculpe, senhora – disse um deles – Mas... Tem certeza que esse foi o melhor plano?
– Ocês ainda tem que pegar muito marisco pra ser que nem ieu – ela arrumou o chapéu – O segredo é pensar como o inimigo.

Os dois se entreolharam com dúvida. Ela suspirou de modo impaciente.

– Vamo fingi que ocês são dois guarda. Ocês iam ficar de oio em um marmanjo, encapuzado, com um pacote, andando de cabeça baixa ou de um menininho carregando uma caixa de presente? – ela perguntou, levantando uma sobrancelha.

Eles baixaram a cabeça. Gina estava certa. Não tinham pensado nisso. Mais uma demonstração do por que ela era a capitã.

Eles ouviram passos afobados ecoando pela caverna, juntamente com a respiração descompassada de alguém que estava correndo há muito tempo. Ele subiu no navio pela rampa colocada de improviso e, com um sorriso grande no rosto, andou até Gina.

– Tá aqui, capitã! – disse alto, o pequenino de quem eles estavam falando há pouco.
– Ocê tem certeza que ninguém te seguiu?
– Tenho. Ninguém vem pra esses lados.

O navio foi atracado dentro de uma caverna que, antigamente, era usada para carga e descarga de materiais preciosos. Após um desmoronamento ela fora desutilizada, mas ainda estava em perfeitas condições para esconder um barco pirata.

– Muito bem! Ocês dois – ela apontou para os marujos – Vão ficá aí parado que nem um mastro?! A Mãe precisa de ajuda. Anda seus molenga! – ela gritou, assustando os dois que se afastaram rapidamente – E ocê, Lepe, vem comigo.

Puxando o garoto pela mão, levou-o até sua cabine que ficava na popa do barco. Gina fechou a porta e pegou o pacote que o menino lhe entregava. Ela colocou em cima da mesa, desfez o laço, abriu a caixa e pegou o vestido, segurando-o a sua frente.

– É... Um pouco cheio de frescura, mai tá bão – resmungou.
– Eu pensei que como ocê vai pro castelo, precisaria de um vestido bonito, mas que não podia ser simples demais pra chamar atenção. Afinal, todo mundo que vai pro baile quer ser notado, não é?
– É... Por esse lado ocê tem razão – ela olhou para o garoto – Muito bem pensado Lepe! Ieu to orgulhosa d’ocê!

Ele sorriu. Estava feliz por ter ajudado. Gina guardou o vestido na caixa novamente.

* TOC TOC TOC*

– Entra!

A porta se abriu e Zelão entrou.

– A Mãe tá pronta – anunciou o imediato.
– Ótimo. Ieu já to indo – o outro acenou com a cabeça e saiu – Lepe, ieu preciso de mais um favor.
– Pode pedir!
– Ieu preciso que ocê vá inté o vilarejo e fique sabendo de tudo o que vai acontecer no baile. Quantas pessoas vai, que horas vai começar e, principarmente, os guarda, tanto do castelo quanto da cidade. Ocê pode fazê isso pra mim?
– Craro!
– Toma cuidado! – ela gritou, enquanto o garoto corria para atender as ordens.

Gina saiu do cômodo também, indo para o convés, onde iriam pedir proteção aos deuses dos mares para a investida daquela noite. Zelão a esperava no corredor.

– O que ocê queria com o Serelepe?
– Ieu precisava de uns favor dele. Num se preocupe que não é nada perigoso – acalmou, ao ver o semblante preocupado e protetor do amigo – Ieu queria que ele se sentisse importante na tripulação. E vou te dizer, ele tem talento!
– O garoto é esperto! – riu.

Eles subiram as escadas indo se unir ao resto da tripulação que já estavam prontos para o início do ritual. Os homens estavam ajoelhados, dispostos em um formato quase circular, olhos fechados e as bocas semiabertas, balbuciando, de maneira inaudível, cada um o próprio mantra, oração, prece, pedido de clemência aos deuses.

A mãe de Zelão, a quem todos chamavam Hera, em homenagem à deusa mãe, estava no centro do círculo formado pelos marujos, atrás de uma pequena estatueta de mármore de Netuno. Gina tirou o chapéu em sinal de respeito, e o imediato fez o mesmo. Os dois se juntaram a ela no centro.

Gina olhou a imponente estatueta, colocada sobre um pedestal de ouro. Ela se lembrava de imagens assim, mas não desses deuses que agora ela havia aprendido a acreditar. Tirou algumas moedas de ouro do bolso do casaco e colocou aos pés do deus dos mares como oferenda. Havia também alguns esqueletos de peixe, joias e muitas pérolas, todo o tipo de presente que pudesse agradá-lo, e que lembrasse o mar. Zelão ajoelhou-se ao seu lado, fechando os olhos, esperando que a mãe começasse.

A capitã deu o sinal de que a senhora podia iniciar o ritual. Hera acendeu um incenso, colocou-o na base do pedestal e fechou os olhos, com a cabeça levantada para cima. Fez-se silêncio no navio, e todos ficaram atentos, mas ainda de olhos fechados, para ouvir as palavras da Mãe.

– Ó Netuno, deus dos sete mares, protetor dos que neles navegam. Deus poderoso, que nunca deixa faltar alimento àqueles que a ti pedem, que não deixa de proteger àqueles que assim lhe suplicam, que nunca se rendeu a qualquer luta que enfrentou. Ó grande David Jones, rei dos piratas, exemplo para nós, seus seguidores, forte, seguro, temido e respeitado por todos. Os senhores conhecem os piratas, sabem de nossas necessidades, nossos medos, nossos deveres. Por favor, nos guie e nos proteja com seus olhos que tudo veem, nos conceda a força de dez mil canhões, o silêncio das águas mais profundas, a sabedoria dos que vieram antes de nós. A vocês, líderes, inspirações, mestres, por favor, não deixe que ninguém saia ferido, que nosso plano seja executado com sucesso, sem que nada de mal aconteça a nenhum membro dessa família. Aos mestres – ela finalizou, erguendo uma caixa com diversas moedas de ouro e prata.
– Aos mestres! – todos repetiram em coro, enquanto Hera jogava a oferta no mar da caverna.

A prece ecoou por todo o lugar enquanto a Mãe a fazia, bem como o som das moedas caindo, em montes, na água. Cada um repetia, em silêncio, aquelas palavras, como um mantra, uma máxima que devia ser obedecida, e que talvez, quanto mais fosse repetida, mais certeza teriam de que seria ouvida e atendida.

Zelão era o único que, além de repetir as palavras da mãe, fazia o próprio pedido. Já conhecia de cor aqueles rituais, e sentia segurança em fazer um pedido próprio. Ele sempre acreditara nos deuses, sempre fora um pirata, e sempre tivera os pedidos atendidos, mesmo quando quase morreu durante um ataque.

Gina era a mais nova naquela realidade e, ao mesmo tempo, a que mais acreditava em tudo aquilo. Ela lembrava que, em casa, os pais e mentores ensinavam a ela que havia apenas um único Deus, mas ela não conseguia entender como ele podia estar em todos os lugares ao mesmo tempo. Também não acreditava muito nele porque nunca havia visto seu rosto. Era complicado acreditar em algo que ela não pudesse ver. Quando foi acolhida por Hera, ela não foi imposta a aceitar aqueles deuses, mas ela mesma começou a acreditar neles a partir do momento em que os pedidos surtiam efeito. Ela nunca havia acreditado que esses rituais pudessem ajudar em alguma coisa, na verdade, ela apenas acreditava em planos e ações, mas de qualquer forma, ela nunca os proibiu. Certa vez, Zelão foi gravemente ferido por uma bala que deveria ser para ela. Foi então que se voltou aos deuses, pedindo que tivessem clemência dele. E foi ouvida. Em algumas semanas, o amigo, quase irmão, já apresentara melhoras, e hoje lutava melhor do que nunca, como se nada tivesse acontecido. Agora, Gina tinha uma dívida eterna com as forças superiores, e nunca mais havia deixado de participar desses rituais. Era a que mais precisava. Era a que mais queria que tudo corresse bem.

Esse ataque, mais do que qualquer outro, tinha que dar certo.

**

O som de cavalos inquietos próximo a ele o distraía, mas de qualquer forma, nunca conseguia fazer com que as pedras que jogava no lago quicassem da forma que queria. Já havia tentado diversas vezes, mas todas elas afundavam. Bem como suas esperanças quanto àquela viagem. Afogadas. Ao menos tivera esse pequeno espaço de tempo para respirar. Agora, pensando, podia ter tentado fugir, correr pelo caminho de onde viera. Sabia que tinha uma planície vasta há algumas milhas onde poderia ir. Se sentia mal por não ter pensado nisso antes.

– Ferdinando, vamos? – chamou a madrasta.

Ele apenas suspirou. Continuou observando o lago que, não importava quantas pedras jogasse, voltava a ficar calmo, sereno, impenetrável. Girou a última pedrinha nos dedos.

– Nando? Está tudo bem? – tentou novamente, carinhosa, ao ver que fora ignorada.

Ferdinando apenas virou o rosto e lançou um sorriso forçado por cima do ombro, afirmando que sim com a cabeça.

– O que houve querido? – ela se aproximou.

Ele apenas a fitou com seus puros olhos azuis, como os da mãe, e logo em seguida olhou para o chão. Não tinha muito o que dizer, afinal, ela já sabia de tudo.

– Nando... Não fique assim... Tenho certeza que ela vai te adorar – ela sorriu e deu um abraço carinhoso no enteado.
– O problema não é esse, Catarina – ele se desvencilhou – Não estou preocupado por ela não gostar de mim, ou eu dela... Bom, isso também, mas o que me deixa irritado é toda essa situação! Porque, raios, um casamento arranjado?
– Ora, querido, você sabe o motivo...
– Não, não sei! E nunca vou entender! Me diga, o que o meu casamento com a princesa de Santana significa?
– Um acordo! – ela esclareceu, pela milésima vez.
– Não Catarina... Isso é um absurdo! Se meu pai quer o ouro de Santana, e eles querem nosso exército, porque não simplesmente selar esse acordo com um documento? O que um casamento significa?
– Há anos isso está decidido... Até antes de eu me casar com seu pai.
– Mas não significa que está certo.
– Certo. E o que você gostaria que acontecesse, vossa alteza?
– ... Eu não sei. Mas não queria isso. Queria poder escolher por mim mesmo, sem interferência do meu pai.
– Acho que você podia querer qualquer coisa, menos isso! – ela riu – Olhe pra mim – ela pegou no rosto dele – Tudo vai dar certo. Confie em mim.
– Como?
– Ainda não sei... Mas tudo sempre dá certo. Veja, sou eu quem estou te acompanhando, e não seu pai, como haveria de ser. Já não é algo a se alegrar?
– Com certeza – ele riu – Espero que esteja certa Catarina...
– Vai sair tudo como o destino deseja, não importa o que você ou seu pai decida... E vamos logo, antes que os cavalos se revoltem novamente.

A madrasta foi para a carruagem, levantando o pesado vestido por entre a grama. Ferdinando olhou mais uma vez para o lago. Tentava obter aquela calma, aquela transparência... Mas não estava parecendo surtir efeito. Jogou a última pedra que ainda tinha nas mãos. Mais uma vez, afundou.

**

– Juliana! Te procurei em todo o lugar!
– E agora me achou, pai.

A maior parte do tempo em que não estava estudando ou resolvendo alguns poucos problemas políticos que seu pai lhe encarregava, Juliana passava na biblioteca. Era a maior do reino, e ela se orgulhava muito em poder dividi-la com o povo, a seu modo. Em suma maioria, os súditos não tinham condições de pagar por um tutor ou alguém que lhes ensinasse a arte da leitura e da escrita, que era majoritariamente destinada aos nobres. Mas ela não precisava daquele ouro. Ela não queria ouro. Ela queria ser útil para o povo. O povo era sua prioridade, sempre.

– O que está fazendo? – perguntou ele, ligeiramente preocupado.
– Procurando um livro, oras – respondeu ela, sem tirar os olhos de uma das várias prateleiras.
– Você não deveria estar se arrumando?
– Não agora – ela achou o livro que queria – Agora eu tenho um compromisso – e saiu.
– Mas, Juliana! O príncipe vai chegar a qualquer momento! – continuava o pai, seguindo os passos da filha.
– Pois que chegue! – ela se virou para o rei, irritada – Eu vou ler para as crianças como eu faço todas as terças, com ou sem príncipe!
– Você realmente acha que as crianças vão estar lá? Hoje é o primeiro dia do festival, elas devem estar se aprontando, como você também deveria!
– Se eles não estiverem lá, eu volto mais cedo. Caso contrário, volto no horário de sempre – ela revirou os olhos – Eu não vou fugir, vossa majestade. Eu sei o que deve ser feito, e não vou descumprir. É uma promessa.
– O que eu faço com você? – ele suspirou – Está certo. Pois então vá, mas volte o quanto antes! Não é de bom tom deixar o príncipe de Terranova esperando.
– Tenho quase certeza que ele não irá se ofender, meu pai. E depois, se eu vê-lo somente no baile será muito mais glamoroso, não acha? – ela brincou.

A princesa deu um beijo na testa do pai e se curvou antes de sair.

Ela havia criado uma pequena turma de leitura com algumas crianças do vilarejo. Todas as terças ela lia uma história com eles, ensinando as palavrinhas, letrinhas, parecendo uma tutora de verdade. Eles adoravam. Apesar de Victor ser um rei que não se importava com as classes sociais, ainda assim ele tinha certos receios em relação a alguns assuntos em particular, incluindo este. Para ele não era papel de uma princesa ensinar crianças a ler e escrever. Muito menos se essas crianças fossem plebeias. Nobres detinham a arte da escrita e da leitura. Somente.

Mas Juliana não pensava assim. Ela sabia que, um dia, os escribas iriam morrer. E quem ficaria em seus lugares? Não havia tantos aprendizes assim no reino para acompanhar a demanda. Porém, por mais que tentasse, não conseguia convencer seu pai disso. Ele era muito preso às suas opiniões, e também ligeiramente influenciado pelos conselheiros reais, velhos extremamente conservadores, que faziam de tudo para garantir sua posição social (mesmo que para isso tivessem que tomar dinheiro do povo). Sendo assim, ela tinha que fazer o jogo dele. Falar o que ele queria ouvir, de uma forma que conseguisse o que queria. E ela era muito boa nisso. Sabia como mentir dizendo apenas a verdade.

Ela pegou a capa em seu quarto e rumou para a vila antes que alguém pudesse impedi-la. Passou rápida por entre os guardas, bem como pelo portão principal.

Apesar de sempre ter vivido no castelo e ter tido tanto só pra si, Juliana só sentia-se completamente bem quando saia dos muros do palácio, quando era livre. Ali, naquele vilarejo, ela não era uma princesa, delicada; ela a ponte, a ligação entre o povo e o governo. E ela adorava aquilo, a confiança que depositavam nela. Até lhe davam forças para casar com um completo desconhecido.

Preferia não pensar naquilo por hora. Não queria ficar triste antes do tempo, nem na frente das crianças, que a aguardavam ao lado de uma grande fonte.

– Olá pequenos! – ela cumprimentou, alegre por vê-los ali.
– Olá princesa! – eles responderam animados.
– Achei que não fosse encontrar vocês aqui... Pensei que estivessem se arrumando para o festival.
– Nós pensamos o mesmo da senhora – disse uma garotinha loira.
– Já falei que podem me tratar apenas como você – ela sorriu – Bom, eu posso me aprontar um pouco mais tarde, e depois, prefiro muito mais ficar aqui lendo com você do que ficar o dia todo me arrumando.
– Pois eu também – respondeu um garoto, cruzando os braços.

Juliana riu.

– Então vamos! Escolhi uma história mais curta hoje, para que possam ir logo pra casa, e seus pais não brigarem comigo! – ela brincou.

Juliana sentou na beira da fonte e arrumou o vestido. Os pequenos sentaram em volta dela, animados e atentos. A princesa fitou cada uma das crianças ao seu redor, os rostos felizes, empolgados com mais uma história. Ela esperava que um dia pudesse ensinar mais do que aquelas simples, mas para eles preciosas, instruções de alfabetização. Era incrível como uma princesa pudesse sentir prazer em coisas simples. Começaram a história.

**


– ... Primeiro os nobres e só depois que vai entrar o resto do povo.
– Isso quer dizer que a estrada vai ficar cheia de carruagem... A ponte já tá fora dos plano – disse Zelão pensativo.
– Que mais Lepe?
– Tá vindo um tar de príncipe de num sei onde... Falaram que ele vai casar com a princesa.
– Eu não sabia que a princesa já estava na idade pra se casar – disse Gina, quase que para si mesma.
– Então os guardas vão dobrar, provavermente...
– E vai ter três noites de festival... E o porto todo tá avisado pra possíveis ataques de piratas.
– E eles realmente acham que o ataque vai ser pelo porto – ela ria. Zelão a acompanhou – Que mais?
– Acho que é só isso.
– Muito bem, Lepe! Ieu to muito, muito orgulhosa d’ocê! – elogiou Gina. Os olhos do menino brilhavam, e ele sorria de modo envergonhado – Ocê vai ser um ótimo imediato, que nem o seu irmão – ela olhou de relance para Zelão – Ou inté um capitão!
– Que nem ocê?!
– Que nem que ieu – ela riu – Bão... Dispensado marujo!

Serelepe levantou rápido e fez um sinal com a mão, colocando na cabeça em riste e levando novamente para baixo, como um soldado cumprimenta seu oficial comandante. Gina achava graça do pequeno, sempre tentando agradá-la e se mostrando parte importante da tripulação a cada tarefa bem sucedida. Ela retribuiu o cumprimento, fazendo o mesmo gesto com apenas dois dedos. O garoto saiu dos aposentos da capitã fechando a porta atrás de sí.

Gina e Zelão suspiraram suavemente. Observaram, por instantes, o mapa aberto sobre a mesa de madeira. As pontas estavam seguras por alguns pesos colocados cuidadosamente para não rasgar o papel delicado; cada conquista estava marcada com um grande X e agora os dois encaravam um circulo vermelho.

– Quais são as nossas opções? – perguntou Zelão depois de um longo período de silêncio entre os dois.
– Bão... A primeira é chegar juntos com os nobre – ela começou, andando pelo cômodo – Vai ter pouca gente, mai tamém num vai ter muito guarda, e os poucos que vão tá lá vão estar despreparado... Afinar, num vão achar que algum daqueles nobrezinho tosco vão quere roubar arguma coisa.
– Mai ainda assim vai ter pouca gente... Vai ser difícil de se misturar – retrucou ele.
– Sim. Esse é um dos problema. A outra opção é chegar junto dos plebeu. Não vão pergunta nossos nome, vamo mistura mais facir e ainda vai ter o barulho da festa pra ajudar... Mas, em compensação, vai ta cheio de guarda muito bem atento – não havia um plano completamente perfeito e sem riscos.
– Temo que pensar muito bem – disse, passando a mão pelo cavanhaque.
– Sim...
– Mai Gina... Tem grande problema nos dois plano! – disse Zelão, subitamente se levantando, percebendo algo que não havia notado antes.
– O que? – perguntou ela, preocupada, se levantando também.
– Ocê!
– Ara, ieu?!
– Bão... Não ocê... O seu cabelo! Ele chama muita atenção, não tem como ocê se mistura direito – ele apontou para a selva ruiva cacheada de Gina.
– Ah, ocê não se preocupe com isso, que ieu já dei um jeito – ela piscou, com a expressão calma de que tinha tudo sob controle.

**

– Espero que se sinta em casa, alteza.
– Obrigado, vossa majestade. Tenho certeza que ficarei bastante confortável durante a estadia. E não é necessário toda essa formalidade, pode me chamar apenas por Ferdinando.
– Como quiser – o rei sorriu – O mesmo vale para a senhora, majestade.
– Muito obrigada, majestade. Agradeço pela hospitalidade para comigo e meu enteado.
– Não há de que. Eu que agradeço por terem aceitado o convite de comemorar o festival da primavera conosco e antecipar a viagem. Aliás, peço desculpas, alteza, pela ausência de minha filha...
– Não há problemas, majestade. Tenho certeza que há um bom motivo para isso. E cá entre nós, mulheres adoram uma entrada triunfal não acha? Não me surpreenderia se apenas a visse durante o baile – ele brincou.
– Tem toda a razão, príncipe – riu Victor – Bom... Deem-me licença, preciso verificar alguns últimos detalhes para o baile desta noite. Mas por favor, fiquem a vontade!
– Obrigado, majestade – disse Ferdinando.

O príncipe e a rainha se curvaram enquanto Victor ia para outro cômodo verificar os preparativos.

– Esse salão é enorme, não? – constatou Catarina, encantada, com a voz ecoando pelo comodo.
– De fato, vossa majestade – concordou o mordomo, encarregado do rei Epaminondas para acompanhar a mulher e o filho na viagem – Ao menos sabemos que da parte dele do acordo teremos o ouro – comentou, observando os belos ornamentos do comodo.
– Isso você tem razão Armando – disse Ferdinando, também reparando – Mas preferiria que não precisássemos desse ouro.
– Já disse pra você parar de se preocupar – Catarina colocou a mão no ombro do rapaz – Vamos para nossos aposentos, sim? Temos que nos arrumar.
– E tentar descansar um pouco dessas horas intermináveis dentro da carruagem – completou Ferdinando.
– Exatamente. Armando, pode nos levar aos quartos?
– É claro, majestade. Por aqui – ele guiou os dois pelo caminho que os serviçais haviam mostrado a ele.

Ferdinando observava o quão grande era esse castelo enquanto acompanhava o mordomo e a madrasta. Era bem mais amplo que o seu mesmo sendo considerado igualmente grande. As paredes dos corredores do segundo andar possuíam tapeçarias para impedir um tanto da umidade que elas passavam; as imagens variavam de natureza morta a cenas de batalha. Mesmo com essas grandes peças de tecido, os corredores continuavam gélidos, causando alguns calafrios.

Subiram alguns lances de escada chegando ao terceiro andar. O corredor era mais longo que o anterior. Por todo ele estavam dispostas armaduras imponentes, mas Ferdinando já estava acostumado com objetos iguais na própria casa. Haviam diversas portas de madeira, todas fechadas, as quais ele deduziu serem quartos para os hóspedes.

– Este é o seu quarto, vossa alteza – apontou Armando.

Ferdinando entrou e olhou ao redor. Era bastante amplo, com uma cama de dossel ao centro, uma escrivaninha com papeis, tinta e pena, um grande baú aberto onde suas vestimentas já estavam guardadas, uma cadeira acolchoada, uma mesinha, onde estavam dispostos alguns frutos da estação e uma lareira, que estava acesa, fazendo com que o quarto ficasse em uma temperatura aconchegante.

– É ótimo – disse ele, por fim.
– Os criados disseram que a água para o banho está sendo preparada – disse Armando.
– Está certo. Obrigado, Armando – agradeceu, com um sorriso no rosto.
– Bom, majestade, vamos para os seus aposentos agora.

Ferdinando fechou a porta assim que os dois saíram. Por mais que adorasse a madrasta e o mordomo, a quem considerava da família, ele gostava de momentos como aquele nos que ele conseguia ficar sozinho com seus pensamentos, que por sinal, eram muitos.

Sentou em frente a lareira. O mormaço das chamas tocava seu rosto carinhosamente, envolvendo como um filho nos braços da mãe. Ele desabotoou a parte de cima do pesado colete e colocou ao lado. O fogo crepitava, brilhante, cintilante. Se ele se jogasse naquela lareira, ele não precisaria ter que se casar. Era uma possibilidade afinal.

**

Gina olhava-se no espelho e quase não reconhecia o próprio reflexo. O vestido que Serelepe havia comprado a vestia lindamente, deixando evidentes as curvas de seu corpo, desde os ombros desnudos até sua cintura fina. Ela passava os dedos nos fios prateados que compunham os arabescos do espartilho. Era estranho se ver desta forma, especialmente com os cabelos castanhos, ondulados nas pontas e ligeiramente presos num meio rabo de cavalo.

Se alguém a visse agora, nunca imaginaria que ela era capitã de um navio pirata. E essa era a ideia.

Ouviu alguns toques na madeira, fazendo-a desviar os olhos de sua imagem e dirigi-los à porta. Autorizou a entrada de quem quer que fosse.

O imediato entrou, quase tão irreconhecível quanto ela. Gina poderia descrever o amigo com uma única frase: negro como a noite. Ele trajava um conjunto tão escuro quanto seus olhos: colete, calça, camisa e capa. O cabelo característico cobria um dos olhos fazendo-o ainda mais misterioso.

– Ocê tá muito elegante! – elogiou Gina, sorrindo, indo até ele e ajeitando a gola do colarinho.
– Era do meu pai – disse ele, alisando a capa – Inté que ficou bom num foi? – riu, indo até o espelho e vendo o resultado final.
– Ficou mermo – riu Gina.
– Ocê tumém tá bonita por demais – observou ele, aparentemente acabando de reparar que ele estava com roupas nada comuns – E esse cabelo?! – perguntou ele surpreso.
– O Lepe arranjou pr’eu – disse animada com a própria ideia – Foi difícil de colocar todo o meu cabelo aqui dentro, mai ieu consegui – riu, mexendo a cabeça, certificando se estava tudo bem preso.
– Ficou muito bão! – Inté parece uma... – ele parou.
– Uma o que?
– Nada... Só que ocê tá muito bonita...
– Ara... Agora fala!
– Ieu... Ia falar que ocê parece uma princesa.

Gina corou. Não pelo elogio, nem pela comparação, mas porque ela havia pensado o mesmo. No momento em que se viu no espelho, lembrou-se do passado. Lembrou-se da mãe tentando coloca-la em um dos vestidos que a impediam de respirar de tão apertados, das jóias e adornos barulhentos e que a incomodavam de diversas formas. Ela havia jurado nunca mais usar aquelas coisas... Mas agora era diferente, ela precisava usar aquele vestido, e já estaria mais do que na hora de enfrentar aquele passado que ela tanto renegava e escondia.

– Ieu num disse por mal – desculpou-se Zelão.
– Ieu sei – ela sorriu – Ocê tá certo... Ieu pareço uma garotinha mermo.
– Parece – riu o outro – Se os guarda suspeita de arguma coisa, ocê vai tá perdida.
– Ah é?

Ela levantou a barra da saia e mostrou a perna esquerda. Presa na bota de cano baixo, aparecia a bainha da adaga que, geralmente, ela carregava na cintura.

Zelão riu abertamente. Apesar do cabelo e das vestes, ela continuava a mesma Gina precavida que ele conhecia.

– Gina... Se der arguma coisa errado... – ele começou.
– Se der arguma coisa arrado ocê dá um jeito de escapar e proteger o navio.
– Mai ieu vô deixa ocê?!
– Ieu vou ficar de quarqué jeito – ela suspirou, virando de costas para ele.
– Como assim? – ele perguntou, com medo de que ela desse a resposta que ele imaginava que daria.
– Ieu disse que tenho que resorve a situação com meus pais... Já tá mai do que na hora... Ieu num sei quanto tempo ieu vou levar pra deixar tudo no lugar e não posso pedir que ocês me esperem. Essa é a úrtima missão que nois vai faze junto – ela fechou os olhos, apertando as pálpebras, impedindo que as lágrimas escorressem pelo rosto. A capitã nunca chora, muito menos na frente do imediato.
– Ocê... Ocê vai desisti de ser pirata? Vai abandonar seu posto? Vai vorta a ser princesa?! – atacou ele.
– NÃO! – ela gritou, virando-se pra ele – Ieu nunca vou deixar de ser pirata, capitã! E não vou vorta pr’aquela prisão que chamam de castelo... Ieu só preciso deixar as coisa clara, pros meus pais, pro povo... Ieu não quero que pensem que ieu abandonei tudo por covardia... E ieu num so princesa!
– Tá certo... E como a gente vai ficar? – perguntou, cabisbaixo.
– Ocê vai ser o capitão.
– Ieu o que?!
– Ocê vai ser o capitão no meu lugar. É pra isso que ocê foi escalado imediato – ela brincou – Ieu confio n’ocê, sei que vai ser um ótimo capitão. E se ieu vorta, sei que vou achar as coisa do jeito que ieu deixei.
– Ieu... Ieu...
– Nada. Ocê tá negando uma ordem da capitã, marujo?
– Não... Não, senhora – ele sorriu.
– Ótimo – ela fitou o amigo cabisbaixo – Ocê não se preocupe. Ieu não vou te abandonar – ela colocou a mão delicadamente no rosto dele.

Zelão sorriu de leve, acreditando nela, mas nada contente com a situação.

– Agora vamo antes que fique tarde! – Gina aumentou o tom de voz, dando fim ao assunto anterior, que sabia que posteriormente teria maior discussão.
– Vamo – Ele estendeu o braço e ela entrelaçou o seu.

A tripulação não sabia o que era mais surpreendente: os cabelos escuros e comportados da capitã, ou a mesma usando um vestido. Eles começaram a cochichar uns com os outros, mas Gina foi logo se desvencilhando do braço de Zelão e demonstrando que sua soberania ainda era a mesma naquele navio.

– Espero que estejam falando sobre nosso ataque dessa noite! – ela ralhou. Eles ficaram quietos instantaneamente – Só três vão vir comigo, não quero chamar atenção. Zelão, vai ser o meu acompanhante. Diego e Juca vão vir pra ficar de olho no caminho. O resto não vai sair do navio – ela frisou as ultimas palavras – Ninguém vai saquear, ninguém vai sequestrar, ninguém vai, sequer, pegar uma pedra desse vilarejo – ela andava, olhando fundo nos olhos deles – EU FUI CLARA?
– Sim, senhora.
– E se arguém tiver a audácia de me desobedecer, vai dormi a sete palmo do chão. Entendido?!
– Sim, senhora.
– Ótimo. Então vamo, antes que fique tarde.

Os quatro saíram em direção ao castelo. Serelepe, abraçado na Mãe, acenava ao irmão mais velho e à irmã, pedindo, silenciosamente, para que os deuses ajudassem e que tudo desse certo.


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Notas finais do capítulo

É isso aí gente, vou tentar não demorar tanto pro próximo! Obrigada a todos que já estão acompanhando. Comentários sempre muito bem vindos!

*Por conta de alguns fatos da época, tive que fazer algumas alterações; por exemplo, por questão da religião politeísta, não pude colocar o nome da mãe do Zelão de Benta, pois seria um nome católico, então coloquei um referente a mitologia Grega. Espero que entendam ;)



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