Um Breve Suspiro de Felicidade escrita por Migaylangelo


Capítulo 10
Poderemos Te Concertar Se Você Quebrar?


Notas iniciais do capítulo

Um dia de atraso, ops. Ontem foi natal e eu já tinha outra fic pra atualizar, mas acho que só diazinho não tem problema, né?
Escrever o Feliks nesse capítulo foi um desafio. Pessoalmente acho muito dificil equilibrar a seriedade dele com os momentos "palhaço", e acabei sentido que ele ficou meio OCC, indo de um jeito para outro meio de repente, desculpa. Mas no geral, até fiquei feliz com esse capítulo. Estava com tanta animação para escrevê-lo desde que comecei a pensar na fanfic, porque parecia tão fofinho e angst ao mesmo tempo x3 aliás, a vontade de escrever esse capítulo meio que foi o que me "segurou" nos primeiros capítulos, ou eu provavelmente teria desanimado. Então é muito importante para mim ter chagado até aqui, espero que gostem!



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Toris não estava ainda consciente de si próprio quando começou a abrir os olhos, mas conseguiu precariamente identificar três manchas no campo de visão. Ainda estava tudo muito turvo para poder determinar qualquer coisa sobre elas, mas conseguiu ouvir o que elas diziam, com um eco sonolento em sua mente:

— Eu tirei os cacos maiores, mas mesmo que ele vá para o hospital vai ficar com alguns cacos para o resto da vida...

— Ele vai ficar bem?

— Não tem risco de vida, mas fique de olho. Você deveria levá-lo para o hospital.

— Deixa que isso eu decido.

— Passar bem.

— Até mais.

Duas das manchas sumiram, deixando apenas uma. Lentamente recobrando a consciência, Toris tentou focar, ainda sem a capacidade de entender quem era ou por que estava ali. A mancha virou uma figura, que virou um rapaz, só então virou Feliks. Ele tinha as sobrancelhas franzidas e roía às unhas, encarando o chão.

Toris queria dizer seu nome, mas sua garganta não dava sinal algum de funcionamento, arranhava um pouco. Felizmente, não precisou para que ele notasse que estava acordado, com uma exclamação de alívio exagerada que pareceu roubar dele o ar.

— Toris... — suspirou, soltando todo o ar roubado, puxando o cabelo para cima. — Quer me matar do coração?!

— Eu... achei que tinha morrido... — conseguiu dizer, com dificuldade e a voz muito rouca. Ainda não tinha se situado completamente no tempo ou no ambiente. Não sabia nem que dia era.

— Eu também achei! Você apareceu na porta da minha casa de noite todo sangrando e desmaia, eu fiquem sem reação! — sua voz era incrédula, e seus dentes tremiam de medo. Toris percebeu que estava sob muito estresse. — Achei que tinha, sei lá, sido tipo, linchado na rua, vai saber! Não faça mais isso, seu maluco!

Toris suspirou lentamente pelo nariz, tentando espantar a dor de cabeça para conseguir falar:

— O que aconteceu...?

— Me diga você! Você chegou quase morrendo aqui e... — de tão estressado, Feliks parou de falar, tentando organizar os pensamentos e relaxar. — Eu não sabia como te levar ao hospital sem explicar, eu não sei nem onde fica o hospital nessa cidade! Mas eu tenho um amigo que é médico e ele veio aqui te ver, gente de confiança... Você estava cheio de vidro enfiado nas costas... — ele fez sinal para o criado-mudo, ou havia um pote raso cheio até a borda de pequenos cacos de vidro. — E ele disse que vai ficar cicatrizes... Ainda precisa enfaixar, para não infeccionar, mas precisa lavar primeiro...

Um pouco mais calmo, Feliks se sentou na beirada da cama, o encarando com um olhar pesaroso.

— Vai me contar como ficou assim?

Só então a memória de Toris voltou por completo: As lágrimas, as cordas, o chicote e as garrafas de vodca, as horas no chão de concreto e cambaleios até a casa de Feliks. A dor no machucado de suas costas veio repentinamente, adormecida pelo esquecimento, fez Toris se contorcer. Com os olhos apertados de sofrimento, fez sinal de negação para Feliks. Não queria contar nem lembrar de jeito nenhum. Só estava grato por ter acabado.

Apesar de insatisfeito com a resposta, Feliks o ajudou a se levantar para que as costas não mais encostassem no colchão e o guiou até o banheiro, onde uma pequena banheira de água quente o esperava. Ao mergulhar, sentiu o choque da água nas feridas fazê-lo se encolher nos joelhos, desesperado par sair. Queimava como gelo, ardia e parecia arrancar o que já não tinha de pele. Respirando descompassado, fechou os olhos e quis não ter acordado.

— Isso vai doer um pouco... — sussurrou Feliks, pegando uma esponja e deslizando cuidadosamente pelas costas de Toris, levando junto o sangue a secar, a sujeira do chão e a vodca seca.

Alguns pequeninos cacos de vidro que não tinham conseguido tirar saíram um pouco do lugar, voltando a rasga-lo violentamente. Não sentia vontade de gritar, mas começou a chorar em silêncio. Não queria voltar ao casarão, não queria olhar nos olhos de ninguém nunca mais. Quando o sangue parou de escorrer junto com a água, no que pareceram horas de lenta tortura, Feliks considerou-o limpo e se levantou, passando os dedos suavemente pelo rosto cabisbaixo de Toris.

— Descansa um pouco aí se quiser, deixei umas roupas limpas aqui... Vou fazer alguma coisa para você comer.

Feliks também estava quieto e triste, porque o ver tão mal não levantava seu humor. Era o tipo de situação que não poderia fazer nada para melhorar realmente, só cuidar dele e ser compreensivo – o que nunca foi sua especialidade. Estava curiosíssimo para saber o que tinha acontecido, mas conhecia Toris melhor que a si próprio, sabia quando não conseguiria resultado algum.

Antes de ir para a cozinha, deu uma última olhada em como Toris estava, chorando encolhido na banheira, com as costas profundamente machucadas parecendo olhá-lo de volta. Tinha uma parte de Toris que ele não conhecia.

Sentindo-se meio pesado, vasculhou a geladeira atrás de algo bom, uma sopa ou mingau, mas Feliks nunca fora tão bom cozinhando quanto Toris. Fez uma canja improvisada com uma porção pequena de frango desfiado e resto de arroz, praguejando a si mesmo por não ir mais à feira.

Acompanhando os grãos flutuarem na panela, pensou em checar se Toris estava bem, mas, como se tivesse ouvido seus pensamentos, ele apareceu no cômodo principal, apoiado na parede, derrotado, mas com um pequeno sorriso.

Talvez pela exaustão ou pela tontura, Toris não tinha notado o quanto tinha ficado feliz por acordar na casa de Feliks. Poderia ter acordado sozinho um hospital, ou em seu próprio quarto cinza com Raivis e Eduard, ou sequer ter acordado, mas não, tinha acordado em seu refúgio de felicidade, na casinha cor-de-rosa. Até se sentiu um pouco mal por não sorrir antes. Às vezes se esquecia de que ele era sua luz.

— Estou feliz por te ver... — sussurrou, tremendo um pouco.

— Achei que você não ia aparecer nunca mais... — Feliks se encostou ao balcão, com um olhar triste, melancolicamente calmo.

— Não sem te dar um pouco mais de trabalho antes.

Uma risada curta aumentou o sorriso de Feliks, ao revirar os olhos e caminhar na direção de Toris.

— Bobão. — deslizou calmamente sua mão por seu braço, querendo lhe dar um beijo. — Como você tá?

Toris queria dizer que estava melhor, queria mesmo, mas seria mentira. A única coisa boa ali era vê-lo, porque a dor e angústia emocional não o abandonavam. Feliks percebeu isso em seu olhar e recuou, desviando o olhar.

— Vem, ainda preciso te enfaixar.

Sentaram-se na cama de Feliks, ele na borda e Toris virado para a cabeceira. Feliks sabia que ele estava mal, mas ver as feridas tão perto sem a sujeira e o sangue era realmente assustador. Quase não teve coragem de encostar o pano umedecido com o remédio que seu amigo lhe dera, menos ainda ao ouvir Toris engolir uma exclamação penosa. Tentou não pensar demais no sofrimento dele e continuar.

As costas de Toris costumavam ser lisas e bem modeladas, elegantes e fortes, e sua pele branca e lisa, gostosa de tocar. Agora, Feliks via claramente sua carne, e o que tinha de pele estava escura e arranhada. Os cortes eram compridos, alguns começavam no ombro e terminavam só na base, além de muito profundos, cruzando uns com os outros nas diferentes direções. Feliks morria de medo de, ao tocá-lo com um pouco menos de cuidado, os ferimentos crescerem ou voltarem a sangrar.

— Que tipo de monstro faria isso com você?

Toris engoliu em seco, pensando se deveria contar a história a Feliks ou discordar dele. Por mais que quisesse odiar Ivan, ainda achava que ele era apenas uma criança que provocou.

—... Talvez eu tenha merecido... — respondeu em voz baixa, esperando que ele não ouvisse.

Ele ouviu. Isso era tão a cara de Toris, se culpar por tudo mesmo sendo a vítima. Não tinha mudado de quando eram crianças, e desde já costumava ser arrastado e usado pelas pessoas ao seu redor que não tinham a mesma bondade no coração.

— Ninguém merece isso.

Nenhum deles disse mais nada enquanto Feliks passava as faixas ao redor do tronco de Toris, cobrindo os machucados e vendo a gaze avermelhar. Tomou cuidado para não apertar demais nem deixar solto, mas nunca foi profissional em primeiros socorros, logo talvez tenha passado do ponto. Toris tentou não reclamar, porque sabia que ele estava nervoso. Deu várias voltas, até as marcas maiores estarem cobertas ao menos em grande parte. Parecia para Feliks doer menos, mas sua intuição respondia que não faria tanta diferença quando Toris as recostasse no colchão.

Ao termino do serviço, instruiu Toris a se deitar, o que foi uma atividade dolorida de obedecer, tanto pelos machucados quanto pela dificuldade de se mover, pois seus músculos pareciam desistir dele. Recebeu ajuda e uma carícia no peito, antes de Feliks se levantar para pegar um pano com água quente e outro com remédio para limpar os machucados de seu rosto. Toris não tinha como saber, mas mal parecia ele com tantos arranhões e marcas de soco no rosto. Feliks limpou o sangue na testa, queixo e bochecha, e passou o remédio ardido.

De frente para ele, não tinha como esconder a expressão de aflição que o medicamento trazia; Toris tinha os olhos apertados e mordia os lábios tão forte que poderia causar o próximo sangue a limpar. Mesmo assim, um gemido de exclamação escapou aflitivo, fazendo Feliks institivamente tirar o pano.

— Desculpa, desculpa... Esqueci-me de avisar que ia doer também...

Toris lançou um olhar levemente irritado, mas voltou a fechar os olhos para que ele continuasse o trabalho. Não era nem de longe tão ruim quanto das costas, porém não era grande alívio. Quando todo o sangue estava limpo e os machucados esterilizados e medicados, Feliks colou os curativos, agradecido por não ter que olhar mais para aquelas feridas horríveis no rosto dele. Deu um suspiro pesado e se inclinou para beijar sua testa, tentando ser mais carinhoso do que era, e passar os dedos delicadamente em sua bochecha, onde não estivesse coberto.

— Você deve estar com fome... Vou pegar uma coisa para você.

Voltou à cozinha e checou se a canja já estava boa e encheu uma tigela sobre uma bandeja de madeira, junto com um copo d’água, depois de servir a si mesmo com um. A complexidade da situação mais pedia um shot de sua melhor vodca, mas achou melhor não arriscar de ficar sequer um pouco alterado numa situação dessas, sendo que são já não era completamente sensato. Fez bem, pois é imprevisível a reação que Toris poderia ter se sentisse o cheiro da bebida por perto, depois de senti-la na pele.

Feliks levou a bandeja até ele, o ajudou a se sentar na cama para comer e se ajeitou novamente na beirada da cama, com a tigela e a colher em mãos.

— Abra a boquinha. — ordenou, sério demais para a demanda. — Mas cuidado que tá quente.

Toris abriu um pequeno sorriso diante da fala, envergonhando.

— Feliks... Não precisa me dar na boca... Eu consigo comer sozinho... — explicou, com as bochechas vermelhas.

— Ora, eu não perguntei se consegue ou não. Mas você tá machucado e pode, tipo, queimar a língua se ninguém soprar para você.

Não sabia dizer se Feliks estava agindo tão infantilmente para deixá-lo melhor ou se era reflexo do nervosismo, mas talvez fossem os dois. Mas ao menos para a primeira opção funcionou, uma vez que Toris já achava que ele estava sério demais naquele dia, apesar de tudo. Feliks sério o deixava envergonhado, porque sabia que não era ele de verdade, estava fora de seu ambiente. Preferia ouvi-lo daquela forma.

— Então abra a boca e não reclame!

Obedeceu, apesar de bastante avermelhado. Feliks encheu uma colher com a canja e levou perto da própria boca para soprar, espantando a fumaça confortável que subia sobre ela, então, dando voltar com ela no ar, imitou o som de um avião até a boca de Toris. Ele se sentiu ainda mais embaraçado com o “aviãozinho”, mas quando foi protestar, Feliks interrompeu com outro aviãozinho.

— Eu disse para não reclamar! Agora olha o aviãozinho... brurubruru...

Era mais difícil continuar com a boca aberta quando estava com vontade de rir, mas a risada que veio foi como um soco direto no pulmão e o fez se contorcer, sem a mínima vontade de dar mais risada nenhum.

— Você tá bem, Liet? — perguntou, piscando várias vezes em frente a seu rosto. Recuperando-se do susto, Toris assentiu.

— Desculpa por isso...

— Desculpa por quê? — inclinou a cabeça para a esquerda, inocentemente. — Você quase me matou de susto e caiu morto na minha sala e pede desculpas por uma tosse? Liet, você é um manézão.

É, definitivamente era reflexo do nervosismo.

Ao pé de vários sopros e aviãozinho, a canja chegou ao seu fim e a tigela foi esquecida com a bandeja no criado-mudo. Toris se sentia levemente melhor de estômago cheio, além da sensação boa do calor da sopa em seu organismo que estava à beira de pegar um resfriado. Relaxou os ombros na cabeceira, louco por dormir por mais algumas horas, embora nenhum um pouco animado para acordar. Feliks então cruzou os braços, estreitou os olhos e vestiu uma expressão autoritária.

— Bem, acho que alguém me deve uma explicação.

Toris tentou ler o brilho firme em seus olhos densos, pensando em uma maneira de não ter que explicar. Morria de medo da reação de Feliks; talvez não quisesse mais nada com ele, talvez chamasse a polícia e piorasse a situação, ou até talvez fosse louco de ir confrontar Ivan pessoalmente. Desde o começo daquele caso, que nunca era para ter sido mais que sexo para se distrair mas que tomara uma dimensão inimaginável no coração dos dois, Toris sabia que, quanto menos Feliks soubesse, menos riscos corria. Mas agora que tinha visto no que era submetido, Feliks não o deixaria em paz enquanto não tivesse respostas, nem seria justo deixá-lo sem depois de tudo que fizera por ele.

— Olha... — começou a se justificar, massageando a ponte do nariz. — Eu passei por muita coisa desde que a gente se separou... Mesmo se eu quisesse, não tem como eu te contar tudo...

— Bem, pode começar pelo porquê está assim... — insistiu, com os olhos arregrados para intimidá-lo, sentado com perna de índio e apoiando as mãos no joelho. — Anda, para de enrolar.

Toris suspirou, frustrado. Tentando juntar as peças do quebra-cabeça, queria pensar em alguma forma de explicar sem mentir, mas sem despertar nenhuma reação destrutiva dele. Tratando-se da história dele e do temperamento de Feliks, era uma missão impossível para sua dolorida cabeça perdida. Sinceramente, não queria explicar sobre como o chicote de Ivan queimava, ou como suas unhas rasgavam, ou sobre como a vodca nos machucados ardia, nem mesmo queria contar das vezes que fugiu quando era jovem e que causaram a ira tardia, ou explicar sobre a fuga da única pessoa normal e atenciosa na vida de Ivan.

Não, queria um beijo e um carinho, queria que Feliks usasse a mágica da casinha cor-de-rosa para fazê-lo esquecer do inferno que vivia e colorir seu mundo por uma noite inteira. Queria que Feliks falasse do seu dia e sua arte, queria vê-lo revirar o armário atrás de uma camisa ou álbum de fotos, queria encostar a cabeça em seu ombro e acreditar que o resto do mundo podia esperar. Por que agora – logo agora – Feliks tinha se apegado à realidade?

Sem perceber, as lembranças, tanto da tortura e do casarão quanto da magia da casa e do amor que não pareciam estar ali agora despertaram nele tantas emoções doloridas ao mesmo tempo que começou a chorar, assim, repentinamente e contra a vontade. Não, não queria chorar na frente de Feliks, não queria mostrá-lo mais de sua fraqueza. Não queria que ele o abraçasse apertado de repente com todo o calor e o carinho que vinha do fundo como ele fez, não queria soluçar mergulhado em seus cabelos loiros e molhar seu ombro de lágrimas como molhou. Não queria que Feliks deitasse ao seu lado na pequena cama de solteiro e o apertasse tão forte perto de seu coração que pudesse ouvi-lo rápido pela angústia de vê-lo chorando, não queria chorar nele tanto que o deixasse angustiado. Seu choro foi alto, barulhento e cheio de soluços, regado de palavras desesperadas e sem nexo, que não saiam boas pelo nariz que não parava de fungar.

Não tinham percebido que não chorara para ninguém ainda no dia, só para si mesmo. Chorara para o chão de concreto, chorara para os joelhos na banheira, mas não para Feliks, seu eterno protetor e fonte de felicidade. Ele não tinha como saber o quanto estava destruído ou quanto tinha sofrido, só conhecia os fatos que viu com os próprios olhos.

Por uma noite, Feliks foi paciente. Deixou ele chorar, acariciou seus cabelos e beijou diversas vezes sua testa, apertou seu corpo perto do calor aconchegante do seu, não exigiu que suas palavras borradas pelos sussurros fizessem sentido. Disse que estava tudo bem e sempre estaria ali.

Nada vai te machucar, meu amor...

Enquanto você estiver aqui comigo, vai estar tudo bem...

Está tudo bem, você tá seguro...

Quando dizia, Toris o apertava também ainda mais, sem saber o que mais poderia fazer para parar aquela dor no coração. Eram tantas dores ao mesmo tempo, que iam de culpa a aprisionamento, talvez fosse impossível acabar com todas elas. Sendo ou não, os choros e os berros não pararam até cair no sono, o que demorou. Em algum momento no caminho, o choro deixou de ser sobre a tortura e a ameaça do dia anterior, e se tornou sobre tudo que Toris havia passado desde o dia que deu adeus a Feliks, num fim de tarde de muita neve, e desde então nunca mais teve um ombro para chorar.

Não podia contar com Eduard ou Raivis para abraçá-lo desse jeito, pois para eles, Toris era o grande exemplo de sobrevivente e lutador que não sofria com o sofrimento. No casarão, sempre tinha que ser o modelo, o emocionalmente estável e voz da razão. Ele cuidava de todo o mundo, mas quem cuidava dele? Quem estava lá para dizer que a dor ia passar ou para impedi-lo de fazer besteira? Ninguém nunca esteve. Estava restrito à companhia de outras quatorze pessoas no casarão, mas ninguém para fazê-lo se sentir em casa. Com Feliks, ao menos, era quente e bom. Feliks era um lar.

Talvez ele não fosse a pessoa mais equilibrada e sensata, talvez fosse infantil e teimoso demais, mas era um lar, o melhor lar infantil e desequilibrado. Era mais que a casinha cor-de-rosa, Feliks inteiro era todas as cores dançando em seus olhos e sua fala, um arco-íris de algo muito peculiar e especial que Toris nunca saberia direito nomear. Ali, enfaixado e deitado em sua cama, com os braços enganchados sob os dele, que o traziam para mais perto e afagavam seus cabelos e costas com a sutileza de um anjo, Toris se sentia estranhamente completo, por baixo de todo seu choro e medo. Se sentia certo. Sabia o que era, sabia que sabia, só não sabia como dizer. Percebia que Feliks estava prestes a chorar também, só de vê-lo assim, e segurava bravamente.

— Eu te amo... — sussurrou contra o calor de seu peito, experimentando a sensação engraçada de peso e leveza de dizer em voz alta.

As caricias em seus cabelos tornaram-se mais meigas nos longos segundos de silêncio antes de Feliks dar sua resposta:

— Eu amo você também... Só queria te falar em outra situação...

Toris fechou os olhos, desejando poder ver o rosto de Feliks naquele momento. Já tinham dito antes, mas as promessas de amor perderam a validade com a separação, era maravilhoso que tivessem construído a vínculo que tinham de novo. Porém, aquilo não tinha o feito parar de chorar, nem transformado suas lágrimas em choro de felicidade. Era um anestésico, mas que pouco fazia efeito no quadro geral. Feliks o amava, sim, sim, o amava, mas não podiam ficar mais juntos que os encontros noturnos proibidos e nunca teria certeza de que Toris não entraria na noite seguinte quase morto. No geral, talvez deixasse as coisas ainda mais tristes.

Chegou uma hora que Toris dormiu. Seus soluços foram diminuindo e as lágrimas secando até que sua consciência desligasse, caindo no sono abraçado a Feliks, confortável e quente. Ele, ao perceber, o ajeitou melhor e se aconchegou junto, na cama que nunca pareceu tão pequena. Deu-lhe um último beijo na testa e um pequeno nos lábios, antes de cair no sono também, extremamente preocupado com todos os eventos da noite, e esgotado.

O sono dos dois começou gostoso e leve para descansar as mentes que trabalharam demais. Havia uma atmosfera confortável no nevoeiro negro da sonolência, que tornava o dormir inconscientemente ainda mais libertador. Porém, em algum momento turvo do sono, Toris viu imagens, sentindo-se acordado dentro da própria cabeça. As imagens eram de um menininho, muito claro e com as mãos vermelhas, vestido de trapos, sorrindo do outro lado da cerca. Ouviu sua voz, uma brisa gelada desprovida de maldade, numa frase que ecoaria em seu futuro muito tempo depois.

“Vamos ser amigos” Toris ouviu. Mas a neve pesada cobriu o menininho num vendaval, fazendo-o sumir de vista, e em seu lugar um surgir um homem alto em uniforme militar. Seu sorriso, embora tão comprido, já não tinha a mesma inocência. Era um sorriso sádico de quem sabia que você iria cair, a risada que ele deu, pior ainda.

“Vamos ser amigos para sempre!” a voz do homem era igual a do menino. O corpo de Toris, que também era criança, começou a crescer como os espinhos de uma planta, trazendo uma dor absurda com a risada do homem sádico. Ao seu redor, o chão de neve tornou-se vermelho, numa mancha crescente que cobriu toda a neve a vista. A que caia calma do céu tornou-se preta como fuligem, e o espaço aberto foi encarcerado por paredes de concreto em todas as direções, como uma serpente gigante cercando os dois para estrangulá-los. Toris tentou correr, mas estava congelado e incapaz de se mover. O homem continuava sorrindo, mas atrás dele surgiam vários corpos tão congelados quanto ele. Eduard e Raivis, seus amigos que se importavam com ele estavam lá, assistindo seu desespero. Os revoltosos, com quem tanto discutia, estavam lá, fracassados, com os rostos sangrando. Não os ouviu dizendo, mas sentiu o que pensavam: Não teria acontecido se Toris não falasse com Ivan, a fuga teria funcionado.

Katyusha também estava lá, mas não congelada. Ela o encarava com os olhos brilhantes de tristeza, cuja mensagem também era clara: Não teria acontecido se ele a escutasse. Toris sentiu a voz crescendo na garganta para se desculpar, mas logo que tentou, ela se desfez no ar, no mesmo momento que o homem sádico perdeu o sorriso e começou a chorar. Uma risada perversa tomou o ar do ambiente, na voz afiada de Natália, que não estava lá, mas ao mesmo tempo, estava em todo canto. Tudo ficou escuro, só sobrou a risada dela num plano completamente preto. No lugar onde antes estava Ivan, surgiu Feliks, coberto de pavor, olhando de um lado para o outro, com as mãos na cabeça os dentes trincados. Toris soube instintivamente que não era para ele estar ali e quis gritar, mas, ainda sem voz, foi antecipado por Feliks, sufocando.

Por que você me trouxe para cá?!” engolido pelo próprio grito, Feliks desapareceu na escuridão, voltando a ser substituído por Ivan. O coração de Toris quebrou audível, fazendo o sorriso do homem crescer. Num ultimo sussurro antes de caminhar em sua direção, ele desafiou:

“Ainda acha que eu sou só uma criança, Toris?”

Quando chegou até ele, Toris se desfez também, numa mancha de sangue no chão.

— NÃO!

Seu coração batia como se galopasse, seus olhos arregalados não captavam imagem, mas suava frio. Seu grito acordou Feliks, que também se levantou num pulo alarmado, mas antes que ele o visse, Toris caiu em lágrimas outra vez, lágrimas de puro medo.

— Toris...! Toris...! — ele tentou trazer o rosto para ele e acalmá-lo, mas ele afastou sua mão com um tapa, ainda gritando.

— Não... Não! Ele não pode fazer isso, ele...

— Ele quem...? Toris, Toris... — segurou se rosto firme com as duas mãos, fazendo-o olhar em seus olhos. — Calma... Está tudo bem... Somos só nós dois aqui...

Toris não parou de soluçar, nem em frente à imagem de Feliks borrada pelas lágrimas, sua expressão preocupadíssima, mas ali sem dúvida nenhuma, não sumindo na escuridão. O choro ganhou mais peso, e ele se jogou em seus braços.

— Você tinha sumido... — gemeu em seu abraço. — Tinham feito você sumir... Ele não pode fazer isso...

— Ei, baby... Eu tô aqui, olha... Eu não vou a lugar nenhum... — sussurrou, dando um beijo em sua testa e o abraçando delicadamente.

Só então Toris levantou os olhos viu seu rosto, tão mergulhado em preocupação, mas também tão atencioso. Depois de tudo que tinha acontecido naquela noite, como não amá-lo? Não conseguia imaginar o que faria se ele realmente sumisse.

Feliks enxugou suas lágrimas com o polegar, trazendo seu rosto para um beijo bem curto e calminho, apenas para garanti-lo que não era uma ilusão.

— Eu tô aqui agora... Eu te amo e não vou deixar ninguém te tirar de mim...

Toris quis realmente acreditar nisso, encostando a cabeça no ombro de Feliks, esperando o choro querer passar. Sinceramente, Feliks queria dormir, mas deixou. Quando o choro parou, Toris voltou a se deixar sobre o travesseiro, mas sem sono. Só estava agradecido por estarem os dois vivos.

— Desculpa.

— Já falei... — Feliks se deitou ao seu lado, apoiado nos cotovelos. — Acordar no meio da noite não foi a pior coisa que você fez hoje.

— Tive um pesadelo... — explicou, em voz baixa.

— Quer conversar sobre isso?

— Não.

Num estalo, Feliks voltou a se levantar, animado e perdendo completamente o sono. Tivera uma ideia, como estava estampado em seus olhos.

— Hey! Eu já sei como você vai se animar... — anunciou, com as mãos orgulhosamente na cintura. Acendeu as luzes e começou a vasculhar seu armário, atrás de uma sacola preta grande quase estourando de cheia que Toris não fazia ideia do que teria dento. — Espera aí!

Não que pretendesse ir a lugar algum, mas Feliks saiu correndo com a sacola e se escondeu atrás de seu biombo. Toris tentou decifrar o que fazia pelas sombras, mas no mesmo momento ele gritou:

— Não vale espiar!

Com uma risada, ele obedeceu, apenas assistindo às sombras sem tentar interpretá-las. Ele demorou alguns segundos lá, mas quando saiu, não estava de pijamas. Estava com uma saia frufru sobre um collant preto de bailarina, do qual saia um rabo felpudo e branco de animal. Seus cabelos estavam ajeitados para traz por uma tiara com orelhas de coelho compridas, completando a fantasia. Apesar de estar bem bonito na fantasia, Toris não conseguiu segurar a risada.

— Sabia que ia gostar! — exclamou, orgulhoso. — Sempre que eu tô triste, eu visto minhas fantasias fabulosas. É tipo, totalmente revigorante.

Ele deu meia volta, mostrando a parte de trás da fantasia, que modelava seus quadris até bem demais. Não era surpresa, Feliks era sexy. Mesmo quando eram mais novos, ele tinha esse quê mais sedutor que Toris nunca teve, e se orgulhava. Por isso, fantasias e roupas reveladoras eram sua parte favorita do verão.

— Essa saia também vai com o collant e orelha de gato, de rato e até de raposa. É muito totalmente fofo! — seus olhos brilhavam de animação ao falar, tornando impossível não ficar feliz de vê-los também. Sim, o plano tinha funcionado bem demais. — Aliás, vou colocar outra, espera só par ver!

Ele correu de volta para o biombo, deixando Toris sozinho com seu sorriso, pensando. Pensando no quanto tinha sorte por ter Feliks, no quanto poderia ficar ali para sempre, assistindo a ele experimentando todas as fantasias e fazendo comentários como uma adolescente patricinha. Quando ele voltou, dessa vez com uma saia vermelha e um colete preto justo sobre uma blusa rendada branca, completando a capa longa característica de chapeuzinho vermelho, já não se sentia pesado e triste, o pesadelo parecia ter se acabado. Era a magia de Feliks.

— Eu já tinha essa fantasia antes, lembra? Usei naquela festa que você foi de lobo mau. — contou, fazendo Toris resgatar aquelas lembranças.

Tinha sido uma bela festa para irem combinado, embora não estivesse nem de longe tão bonito quanto Feliks, mas tudo bem porque gostava de lobos. Ao final da festa, bonito ou não, não foi um lobo mau para Feliks, mas tiveram uma bela noite nos cobertores.

— Eu lembro... — sorriu levemente vermelho, mas desejando profundamente voltar àquele tempo.

— Vou pôr mais uma, você vai adorar!

A próxima foi de princesa, mas a saia continuava bem curta como mandava sua personalidade. Mesmo assim, era a menos sexual de todas, com suas rendas, frufrus e pedrinhas brilhantes. Parecia uma criança toda felizinha para o halloween, rodando a saia bufante daquele jeito no ar.

Feliks continuou experimentando fantasias até ele mesmo se cansar de si, o que demorou um bocado. Vestiu fantasias de bruxa, gato, pirata, cupcake e até água-viva. O clima pela primeira vez na noite ficou leve como uma pena, entre risadas e comentários sobre as roupas. Feliks era precioso. Quando guardou as fantasias e voltou para a cama, Toris o agradeceu.

— Ora, não há de que. — ele achou que foi pelo show. Mas era por simplesmente estar lá, existir e fazê-lo gostar da vida.

Infelizmente, olhando o relógio, viu que a madrugada já estava alta e que teria problemas ainda maiores se não voltasse. Não queria voltar, não aguentaria, mas não podia arriscar ser encontrado com Feliks. Seria realizar seu pesadelo.

— Eu preciso ir para casa... — lembrou, apreensivo.

Feliks arregalou os olhos, horrorizado com a ideia:

— Tá louco?! Você precisa, tipo, descansar e não sair pela neve para ficar pior!

— Eu não posso ficar, Feliks, você sabe disso...

— De novo esse papo! — cruzou os braços, desviando o olhar. — Achei que já tínhamos, tipo, passado dessa fase.

Toris se sentiu culpado. Feliks tinha sido tão bom e atencioso com ele naquela noite, e sabia o quanto suas idas e vindas o magoavam, mas não tinha jeito. Não podia arriscar.

Porém, não estava com energia para brigar com Feliks. Fingiu que concordou. Se aconchegou de novo perto dele, fechando os olhos, mas tentando não dormir. Chegou uma hora de Feliks dormiu, cansado como estava, e ele pôde ir sem causar polêmica. Virou-se para vê-lo de olhos fechados, respiração lenta, os cabelos loiros caindo sobre o rosto pacífico num sono invejável. Toris nunca queria deixá-lo, como odiava esse compromisso.

Não sabia o que o esperava no casarão, ainda mais se Ivan desse por sua falta. Por dentro, rezava que a fuga tivesse funcionado e ninguém estivesse atrás dele, para dar meia volta e dormir com Feliks. Mas sua intuição não era tão sonhadora.

Felizmente, não nevava lá fora, mas Toris foi embora com uma lágrima solitária querendo escapar dos olhos.


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Notas finais do capítulo

Terminamos o capítulo 10. Agora começam os capítulos com dois digitos hauhauhua nunca pensei que chegaria´a esse ponto, uhuh (ノಠヮಠ)ノ*:・゚✧
Espero que tenham gostado, até o próximo o/



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