Captura em Le Cap escrita por GilCAnjos


Capítulo 7
Shay - Golpe-surpresa




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Quarta-feira

 

—Não consigo parar de ter a impressão de que estamos sendo seguidos.

—Pura paranoia, Shay. Em New York, você sempre tinha a mesma impressão.

—E sempre estava certo, Gist!

Claro! Como naquela vez em North Tarrytown, quando você pensou ter ouvido um Assassino escondido num arbusto, e encontrou uma terrível lebre.

—Bah, cale a boca.

Os dois Templários estavam conversando, em inglês, a caminho da reunião que Guillaume lhes apontara no dia anterior. Ela aconteceria no centro da cidade, na mansão de um mercador local e colega Templário de Guillaume. Na entrada da residência, foi o próprio Duvalier quem os saudou e os conduziu à sala onde se reuniam os outros Templários. Encontravam-se em volta de uma mesa circular. Eram cinco homens: três brancos, um negro e um mulato. Guillaume pôs-se a falar:

—Senhor Cormac, Mestre Gist. Permitam-me apresentar-lhes estes ilustres senhores de minha confiança: Joseph Brunet, político e amigo pessoal do governador Bart; Enrico Gutiérrez, um contato nosso na parte espanhola da ilha; Gilbert de la Fontaine, um advogado de sucesso; Louis-Daniel Lambert, o mercador dono desta bela mansão; e Olatunde Xavier, um ex-escravo que recusou-se a seguir Mackandal e hoje é gerente do porto da cidade.

—É um prazer conhecê-los. – falou Shay.

—A mim também. – adicionou Christopher Gist.

—Cavalheiros... – retomou Duvalier – Os nossos convidados ianques estão aqui em busca de uma caixa; uma Peça do Éden em posse de François Mackandal. A mesma caixa que provocou o terremoto de Port-au-Prince sete anos atrás. Nós devemos encontrar Mackandal e recuperar a caixa o quanto antes possível. O Grão-Mestre já deu seu consentimento.

Brunet se manifestou:

—O governador também. Bart já deu urgência para a captura dele. Ele teme que, se a resistência maroon se intensificar, o rei poderá demiti-lo do cargo.

—Isso de certa forma seria bom. – riu De la Fontaine, em brincadeira – Poderíamos assim colocar um dos nossos! Por que apenas não deixar acontecer?

—A ideia não é ruim, Gilbert. – prosseguiu Duvalier, com um sorriso – Mas de qualquer maneira não temos motivo para deixar que ele caia. Apenas para que um Templário assuma o poder colonial? Somos Templários. O poder deve ser um meio, não um fim.

—Bem, os fins justificam os meios? – comentou Lambert.

—O senhor sabe que essa frase foi criada por um renomado Assassino italiano. Não sabe, Mestre Lambert?

Guillaume retomou a fala:

—Muito bem observado, Mestre Gist. Passam-se 250 anos, mas Mackandal continua com a mesma ideologia desmedida de seus antecessores. Voltando ao assunto, o primeiro passo deve ser descobrir como a Caixa Precursora chegou a Saint-Domingue. Mestre Xavier?

—Pois sim, Mestre Duvalier. Eu vasculhei nossos registros portuários em busca de navios que houvessem ido ou vindo das colônias britânicas recentemente. Esta lista em minhas mãos... – falou, levantando o papel que segurava – ...é uma relação de tais navios e de seus respectivos donos. Antoine de Bleu, William Cavendish, Guillaume Beylier... Sinceramente, não conheço nenhum desses nomes. Mas podemos mover nossa rede de espiões para investigar se algum deles possui conexão com Mackandal ou seus Assassinos.

—Posso ler a lista por um momento? – perguntou Gilbert.

Ao que Xavier lhe entregou a folha, Lambert comentou:

—Se algum dos homens na lista for negro, investigue-o primeiro. Sabemos que Mackandal não trabalha com brancos.

—Me parece que ele tem sido mais permissivo consigo mesmo, Mestre Lambert. – respondeu-lhe Joseph Brunet – Ele pode ter um ódio contra brancos, e não aceita nenhum em sua irmandade, mas chega a ter alguns contatos europeus. Inclusive, identifiquei há algumas semanas um diplomata francês que estava passando informações políticas ao próprio Mentor dos Assassinos.

Duvalier franziu a testa, com interesse.

—Esse diplomata... está disponível, Mestre Brunet?

—Temo que não, senhor. – respondeu, engolindo em seco – Foi encontrado morto dois dias depois. Estrangulado, pelo que me disseram.

—Se esse homem trabalhava com Assassinos, eles devem ter sido os responsáveis por sua morte – inferiu Shay – Nas colônias do norte, por várias vezes eu... testemunhei Assassinos matando aliados que não eram mais úteis a seus propósitos. – adicionou, evitando mencionar o fato de que, em seus anos de Assassino, ele próprio já fora encarregado desse fardo. – Duvido que as coisas sejam muito diferentes em Saint-Domingue.

—Bem observado, Sr. Cormac. Agora...

—Mestre Duvalier, desculpe-me por interromper. – falou De la Fontaine, que lia a lista de Xavier – Mas, lendo a lista, reconheci o nome de um navio. Ele é propriedade de Moureau, um advogado que eu conheço que vive aqui em Cap-Français e adora repetir trechos daquele filósofo Assassino, Jean-Jacques Rousseau.

—Então você está sugerindo que ele e Mackandal podem compartilhar dos mesmos ideais?

—Exatamente.

—Ótimo. Ele já é seu conhecido, veja se consegue pressioná-lo em busca de informações.

—Eu o farei amanhã mesmo.

Gutiérrez, o mulato espanhol que até então estava calado, pronunciou-se com um sotaque marcante:

—Aliás, soubemos de atividade dos inimigos em Puerto Plata. Aparentemente, são Assassinos que respondem a Mackandal. Temos informações de que um grupo deles virá a Le Cap nos próximos dias.

—Que estranho, recebi notícias semelhantes de Port-au-Prince. – adicionou o Mestre Lambert – Será que os Assassinos pretendem se reunir?

—Se eles forem, deverá ser um evento e tanto – disse Gist – Será que os escravos sabem algo a respeito?

—O que quer dizer?

—Bem, quero dizer que os Assassinos e os escravos compartilham o mesmo tom de pele, as mesmas ideias, a mesma cultura. Imagino que os escravos que ainda estão no cativeiro devem receber notícias dos Assassinos antes que nós as recebamos.

Os Templários ali reunidos fitavam Gist, contemplando a sua perspicaz observação.

—Bem pensado, Mestre Gist. – falou Gilbert. – Aqueles de nós que tiverem escravos deveriam interrogá-los.

—Eu começarei em breve. – mencionou Louis-Daniel – Mestre Xavier, que tal me ajudar? Os escravos devem colaborar melhor com alguém de sua própria raça.

—De fato. – ele respondeu.

—Ótimas ideias, senhores. – concluiu Duvalier. – Alguém tem mais um tópico a discutir nesta reunião?

A reunião prosseguiu, mas a discussão em questão mudou para assuntos financeiros específicos do rito Templário local, o que significava que Shay e Gist nada tinham a opinar. Mais tarde, pouco antes do pôr-do-sol, Gist e Cormac caminhavam de volta à Morrigan. Shay, no entanto, sentia-se um tanto pensativo, e disse para Gist que, em vez de repousar no navio, iria passear pela cidade. Ao andar pelas ruas, Shay entendeu porque Cap-Français era chamada de “Paris das Antilhas”. Embora a Paris original fosse obviamente muito maior e mais importante, Le Cap tinha um charme. Para os padrões caribenhos, era uma cidade tão grande e tão rica... Sua vivacidade não deixaria a desejar se comparada a cidades como New York, Manchester ou Barcelona.

Mas Shay ficava assombrado ao ver que a escravidão era o alicerce de toda essa riqueza. Para cada canto que olhasse, havia sempre um (ou mais de um) escravo maltrapilho a servir um rico senhor branco. Como poderia uma raça enriquecer às custas de outra? Quando o dinheiro passara a ser mais valioso que uma alma humana? Shay lembrou-se dos escravos tristes na propriedade de Duvalier, de tudo o que Achilles lhe havia ensinado sobre os maroons, e do remorso que ele sentira ao matar Adéwalé. Como ele poderia matar o homem que uma vez admirou? E como poderia se juntar àqueles que assistiriam à escravidão e não fariam nada a respeito?

Entretanto, Shay sabia que esses pensamentos eram apenas resquícios da doutrinação que sofrera dos Assassinos. Ele sabia que os Assassinos se disfarçavam atrás de palavras bonitas, mas que no fundo usariam a sua filosofia de “Tudo é permitido” para passar por cima de qualquer um que se colocasse em seu caminho. Na teoria, clamavam a liberdade para todos. Na prática, tornavam alguns mais livres do que outros.

Mas os Templários eram diferentes. Buscavam a paz acima de tudo, e não descansariam até que levassem essa paz para toda a população. As pessoas apenas podem ser verdadeiramente felizes quando estão sendo controladas, pois a liberdade de pensamento apenas gera dúvida e ódio. É um passo pequeno para que a liberdade se torne crime e caos. Mas mesmo assim Shay não concordava em assistir à escravidão de inocentes sem fazer nada. A mudança para a paz teria que ser gradual? Para Shay, ela parecia lenta demais.

Durante o passeio, Cormac interrompia seus devaneios filosóficos para dar lugar novamente à paranoia, à sensação de estar sendo seguido. Talvez por isso tenha dito para que Gist fosse ao navio sozinho. Shay não iria querer levar os Assassinos diretamente a sua estimada tripulação. Ele tentava ignorar, mas sentia uma presença atrás de si. Após senti-la ininterruptamente durante dois minutos, bem no meio de uma viela movimentada, Shay se virou para trás abruptamente. Ao perceber que um homem negro andava atrás dele, nem precisou pensar para se armar. A lâmina oculta de sua mão direita se ejetou praticamente por instinto.

Com a mão esquerda, Shay segurou o negro pela gola da camisa, enquanto que, com a direita, apontava a lâmina para o pescoço. Pressionou o homem contra uma parede, e perguntou-lhe, com fúria:

—Diga-me... Assassino. Como vocês me encontraram e onde sua facção se esconde?

O negro nada falou. Ele apenas murmurava alguns sons, num misto de pavor e ansiedade.

—Ande. Me responda, ou eu abro a sua garganta!

Após receber mais alguns segundos de silêncio, Shay se preparava para executar o inimigo, mas uma voz se levantou atrás dele:

Ei! Senhor! Tire as mãos desse homem!

Sem soltar o refém, o Templário olhou para trás, apenas para ver um homem branco de barba reclamando, com raiva.

—O Alphonse aí é meu! Eu o comprei de modo justo e tenho como provar! Portanto, largue a minha propriedade!

Isso assustou Shay. Ele olhou novamente para o negro, de modo a ver lágrimas escorrendo do seu rosto. Aquele homem certamente não era um Assassino. Um Assassino não choraria, ainda mais em frente a um inimigo. Ele recolheu a lâmina e soltou o negro, que correu para perto do senhor.

—Desculpe-me por isso, cavalheiro. Eu confundi seu escravo com outra pessoa.

—É bom mesmo! Ouça aqui, se eu descobrir que você feriu-o de alguma forma, eu vou exigir indenização!

—Não se preocupe, senhor, eu... Foi apenas um engano.

O homem soltou mais algumas reclamações, mas Shay não as ouviu. Ele continuava pensativo, olhando em volta. Eis que, em certo momento, ele viu. Um homem negro vestindo capuz, agachado em cima do telhado de um estabelecimento próximo, apontava-lhe um arma, que Shay identificou como uma zarabatana. Ele se jogou para o lado, bem a tempo de desviar do dardo que o Assassino lhe lançara.  Instantes depois, o inimigo saiu correndo na direção oposta.

O Templário não poderia deixar isso passar. Mesmo que o Assassino estivesse fugindo, ele o atacara diretamente. Shay então deixou o escravo e seu dono furioso sozinhos, enquanto corria por vielas para tentar acompanhar o Assassino. Ambos eram rápidos, mas o Assassino tinha a vantagem. Shay gostaria de poder atirar no homem, mas ele havia deixado seu rifle no navio, e as pistolas não atingiriam o Assassino de tão longe. Ele, portanto, o seguiu arduamente, passando por becos intercalados com ruas mais largas, mas, em certo momento, perdeu o rastro. Encontrava-se em uma área pequena e deserta, isolada entre duas casas adjacentes. Shay olhava para as ruas mais à frente, esperando ver o Assassino ainda em fuga, mas não viu nada.

—Pense – ele disse a si mesmo – O que um Assassino faria numa hora dessas?

O treinamento que recebera anos antes de Achilles e Liam agora voltava a sua cabeça. Quando descobriu a resposta, Shay não hesitou em olhar para cima, ao mesmo tempo em que sacava sua espada. E lá estava. O vulto de um Assassino, pulando em direção a Shay para desferir o golpe-surpresa mortal.

Apenas a espada de Shay o separou da morte. Em uma fração de segundo, ele conseguiu usar a arma para aparar a lâmina do Assassino, que se encontrava totalmente estendida. Em seguida, ambos caíram sob o chão com o contato, um pouco trôpegos. O Assassino então sacou da cintura uma espada, e, avançando sobre Shay, gritou em um idioma que ele não compreendeu:

Mouri, kras tanpliye!

O que se seguiu foi um duelo de espadas, embora nenhum dos dois conseguisse avançar muito. Ambos eram muito bem treinados, o que significava que cada tentativa de ataque era frustrada por uma defesa à altura. Quando Shay finalmente pôde chutar a sua canela para deixa-lo um pouco atordoado, perguntou ao adversário:

—Me diga! – o Assassino tentou atacar novamente, mas sem sucesso – Como me encontraram? O que o seu Mentor quer comigo?

—Pensei que estava óbvio, traidor! – riu o Assassino – Matá-lo.

Traidor? Então Mackandal sabia da sua antiga afiliação. Com a mão esquerda, Shay sacou uma de suas pistolas de pederneira. O Assassino, no entanto, o golpeou, jogando para longe a pistola e fazendo um ferimento no antebraço do Templário.

—O seu Mentor... – Shay continuou – ...não faz nada além de espalhar a semente do ódio. Por que vocês o seguem?

—Você já soube como é nascer pertencendo a alguém? – respondia o Assassino, que pulava para trás, de modo a desviar dos golpes de Shay – Não ser dono de sua própria vida? Ser condenado a uma vida de servidão? Nós sabemos. E as ideias de Mackandal fazem jus a tudo o que sentimos. Queremos ser uma raça livre!

—Mas aquilo que ele diz apenas acirra a rivalidade entre negros e brancos! Se vocês querem tanto a liberdade, manifestem-se, em vez de agir às escondidas! Mostrem que são merecedores da liberdade!

—Os brancos já provaram há muito que não são merecedores da nossa simpatia!

Shay percebeu tarde demais que o Assassino não estava apenas se esquivando, mas também indo em direção à pistola caída de Shay. Quando notou sua estratégia, Shay se distanciou do inimigo, e, quando ele levou sua mão à pistola, Shay disparou uma bala de sua outra pistola. O Assassino parecia não ter notado que Shay tinha duas delas. A bala atingiu-o no joelho direito.

Shay andou até o inimigo, que agora estava deitado no chão, com as mãos no ferimento. No caminho, ele chutou a sua primeira pistola para longe, eliminando a chance de que o Assassino a disparasse. Quando se agachou para finalizar o Assassino, o caído tentou golpear o Templário com a espada. Shay, no entanto, segurou a arma com a mão esquerda e encostou sua lateral na garganta do Assassino. Com a mão direita, usou uma de suas lâminas ocultas para penetrar seu abdome.

—Vocês são bem mais cegos à verdade do que pensam. – disse Shay – Arquitetem o plano que quiserem, mas eu sempre estarei aqui para garantir o seu fracasso.

O Assassino, ofegante, riu.

—Não é bem assim, k'ap trayi. – ele olhou para a direita, de modo a ver a rua lateral. Shay olhou também, a tempo de ver um segundo Assassino fugindo, ao longe. – Kobina nunca decepciona. Ele irá relatar tudo ao Mentor, e, em breve, você não mais viverá.

Ao que ele ria, Shay penetrou a lâmina ainda mais fundo.

—Desgraçados! Como me encontraram?

—Vocês, Templários, se acham inatingíveis. Mas não são. O seu navio... Sabemos qual é. O seu superior, Duvalier... Graças à sua ajuda, sabemos onde ele mora. Logo, Mackandal irá livrar a ilha da sua influência. Primeiro, Duvalier e os Templários. Depois, os franceses. E então, os espanhóis da parte leste. Saint-Domingue será uma nação livre, feita por negros livres para negros livres! Infelizmente, você não verá isso acontecer... – o Assassino aproximou o rosto do de Shay, encarando-o. – ...pois já estará no túmulo.

Shay aproximou o rosto ainda mais, e perguntou, pausadamente:

—Onde o seu Mentor se esconde?

Ele viu a raiva nos olhos do Assassino. A fúria culminou quando ele gritou:

Viv lontan François Mackandal!— e, em seguida, pressionou a própria garganta contra a espada. Morreu no ato.

Shay, frustrado, tentou se acalmar. Recuperou e recarregou suas pistolas, guardou suas armas e fechou os olhos do cadáver. Colocou a espada ensanguentada na bainha de seu dono, e começou a pensar no que o Assassino dissera. Uma frase específica deixava uma pulga atrás da orelha de Shay. “Duvalier... Graças à sua ajuda, sabemos onde ele mora”.

—Meu Deus. – Shay falou para si mesmo.

Então ele estava certo em pensar que atraía os Assassinos aonde quer que fosse. Nisso, ele saiu correndo para a fazenda de Guillaume. Esperava que não fosse tarde demais.

 


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