Captura em Le Cap escrita por GilCAnjos


Capítulo 10
Agaté - Assuntos Pendentes




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O esconderijo dos Assassinos estava em alvoroço após a conquista. Mais uma fazenda escravista arruinada, mais um pequeno passo em direção à liberdade de Saint-Domingue. Alguns encapuzados comemoravam a vitória, enquanto outros introduziam os recém-libertados escravos a seus novos lares, alocando-os na próspera comunidade assassina escondida em meio à selva. A primeira coisa que Agaté e Baptiste fizeram foi vestir seus respectivos mantos. Não aguentavam mais vestir os deploráveis trajes de escravo, cruéis lembranças de suas juventudes. Logo receberam a notícia de que o Mentor desejava falar com eles. Na casa principal encontraram-se com François, que se desfazia da pintura facial que usara durante a invasão.

—Ah, elèv mwen. – Mackandal iniciou – O dia com certeza foi bem-sucedido. Mas quero saber se o papel de vocês foi cumprido. Digam-me: conseguiram envenenar o Templário Duvalier?

Agaté sorriu.

—Graças aos Lwa, conseguimos. A dose que ele tomou não era tão grande, mas foi o suficiente.

—Ele deve estar em sua casa, moribundo, neste momento. Logo morrerá. E se por um acaso não morrer, não fará muito mal. Com os escravos libertos, sua fazenda ficará estagnada, e os Templários perderão força econômica em Le Cap.

François Mackandal riu.

—Por enquanto, sim. Mas vocês sabem que logo ele comprará novos escravos por um preço mais baixo do que o dos anteriores.

—Então os libertaremos também!

—Ha, esse é o espírito, Baptiste!

A essa hora, o Mentor se sentava à frente de uma escrivaninha. Abriu uma gaveta, e de lá tirou uma folha de papel.

—Vocês gostarão de saber que Kobina também cumpriu bem seu papel. Ele voltou ao vilarejo com valiosas informações dos Templários.

—Mesmo? O que elas dizem?

—Calma, Agaté. – François repreendeu – Eu sou o Mentor aqui, e pretendo discutir o assunto com os Mestres primeiro. Mas não se preocupem, creio que em breve terei novas missões para vocês. Muito em breve, na verdade. Pois o que quer que decidamos pretendo executar antes da cerimônia na sexta-feira. Agora, por favor, saiam.

Baptiste e Agaté logo obedeceram e deixaram a casa, voltando ao vilarejo assassino.

—“Discutir o assunto com os Mestres primeiro”... Baptiste, não acho justo o Mentor esconder informações de nós.

O Assassino olhou para o amigo.

—Também estou curioso, Agaté. Mas acho que “nada é verdade”, não? – Baptiste sorriu – É melhor que o Mentor analise a situação, separe verdade de mentira, e repasse apenas as informações confiáveis para nós.

—Uau, quanto livre-arbítrio! – Agaté ironizou.

—Sim, mas continuamos em busca da liberdade. Além do mais, acho que é bom ter um líder como Mackandal. Ele é forte e sábio. Se não o seguíssemos, acabaríamos discordando entre nós mesmos. E então a Irmandade cairia.

—Falando assim, Baptiste... – Agaté provocou, sorrindo – ...você parece um daqueles porcos Templários.

Baptiste fitou Agaté. Sua expressão repentinamente ficou séria.

—Não me compare àqueles desgraçados, Agaté!

Agaté ficou surpreso com a seriedade, mas logo levou a boca para perto de Baptiste, para sussurrar em seu ouvido:

—Seu Templário!

Ele riu, para mostrar ao amigo que era apenas uma piada, mas mesmo assim Baptiste socou seu rosto. Agaté, percebendo o que aconteceria, caçoou:

—Ah, é? Então vamos brigar? Pode vir!

Quando Baptiste tentou soca-lo de novo, Agaté segurou o seu punho e deu-lhe um tapa. Rapidamente se recuperando, os Assassinos investiram um contra o outro, mas acabaram por chocar suas testas com força. Após o impacto, ambos cambalearam para trás, com uma certa dor. Eles se fitaram com austeridade, mas logo sorriram e se abraçaram, gargalhando.

—Vamos esquecer isso, amigo. – falou Baptiste – Agora, a respeiro das informações do Mentor... Por que não conversamos com Kobina? Foi ele o informante da vez.

—Claro, amigo! Vamos!

Os dois Assassinos de fato não conseguiam ficar bravos um com o outro. Mais do que colegas, eram amigos. Viviam brigando, mas sempre se perdoavam. A única discussão grave que tiveram havia sido por causa de uma mulher, mais de dez anos antes. Passaram meses sem se falar após aquilo. Mas agora o tempo já havia curado qualquer inimizade que houvesse entre os dois. Eles agora conversavam com o colega Kobina, que encontraram no esconderijo.

—Agaté! Baptiste! Soube que o ataque foi um sucesso, não?

—Ah, foi mesmo. E quanto a você, Kobina? Cumpriu a sua parte no plano? Descobriu algo?

—Ah, sim. Eu segui Duvalier até o encontro com outros Templários e espionei a reunião. Já falei com o Mentor sobre isso.

—Falamos com ele também. – comentou Agaté.

—Ele disse que as informações eram exclusivas dos Mestres Assassinos. Mas, Kobina, você poderia conta-las aos seus dois amigos aqui, não poderia?

—Ora, é claro. Para começar, vi um Templário de que nunca havíamos ouvido falar. Um tal de Brunet ou algo assim. Alguém a mais em quem ficar de olho. Mas o que me preocupou na reunião foi que os Templários parecem estar ainda mais obstinados a encontrar nosso esconderijo e um certo artefato precursor, que o Mentor jura que não está conosco. Querem matar Mackandal a qualquer custo, e para isso eles têm apoio até mesmo do governador Philippe-François Bart!

—E, pelo que vimos na plantação hoje mais cedo, – adicionou Agaté – devem ter também conexões entre o exército.

—Ora, deixemos que tentem! – exclamou Baptiste – Mas só passando por cima de nossos cadáveres primeiro!

Os Assassinos riram.

—Mas eles estão falando sério, amigo. Eles têm até uma lista de suspeitos que acham que podem informar-lhes sobre Mackandal. Eu mesmo li a lista e reconheci alguns contatos de nossa Irmandade. Não posso evitar ficar um pouco preocupado.

—Ah, era essa a lista que o Mentor estava lendo há alguns minutos! – Agaté falou – Qual decisão será que ele irá tomar?

—Bem, os contatos têm informações incriminadoras. E se eu conheço Mackandal... – Kobina hesitou – ...ele vai querer eliminar as provas. Aliás, é isso que os Templários esperam que ele faça.

—Oh. – Agaté não pôde esconder o fato de que estava um pouco surpreso – Às vezes acho que o Mentor leva os assuntos da Irmandade um pouco ao extremo.

—Ah, mas não faz mal. Quase todos os nossos contatos na lista eram brancos; nós teríamos que nos livrar deles mais cedo ou mais tarde.

Agaté assentiu, ainda pensativo. Baptiste quebrou o silêncio:

—Mas, Kobina, e quanto a Renaud? Ele não iria te ajudar na espionagem, pelo que planejamos?

Kobina adquiriu um tom pesaroso.

—Ah, Renaud... Rès ak kè poze. Eu encontrei com ele durante a missão, mas ele acabou enfrentando Shay Cormac. Lutou com bravura, mas não sobreviveu.

Houve um silêncio durante meio minuto, até Agaté interferir:

—Renaud foi vingado. Hoje, durante o ataque, o Mentor matou Cormac. As almas de Renaud e Adéwalé certamente estão sorrindo de onde quer que estejam.

—Com certeza, amigo.

Quinta-feira

 

 

Pela manhã seguinte, o esconderijo acordava com animação, pois os Assassinos tinham visitas. Eram Babatunde Josèphe e seus recrutas, que haviam caminhado os duzentos quilômetros de Port-au-Prince a Cap-Français, em razão da cerimônia de iniciação que ocorreria no dia seguinte. Eles foram recepcionados calorosamente pelo Mentor. Quando Agaté foi chamado à casa principal naquela manhã, foi recebido por Mackandal, que conversava com Babatunde e Claude.

—Ah, Agaté! – saudou o Mentor – Justamente quem eu queria ver!

Bonjou, Mentor. Mestre Dubois. Mestre Josèphe.

—Por favor, sem tanta formalidade. Me chame de Babatunde.

—Ora, mas é claro, Babatunde. Vejo que chegou um dia mais cedo. Estava realmente animado para a cerimônia, não?

—Bem, me perdoe. – ele respondeu, com um riso – Devo ter calculado mal o tempo da jornada. Detesto ser um incômodo a vocês.

Babatunde podia não ser um dos mais velhos ou mais experientes Assassinos da Irmandade (tinha apenas 21 anos), mas o legado deixado por seu pai, o falecido Adéwalé, o favorecia, tornando-o o líder dos Assassinos na cidade de Port-au-Prince. Ele percebia que não tinha tanto mérito quanto lhe creditavam, e por isso insistia em falar com humildade aos outros Assassinos, como se também fosse um aprendiz.

—Agaté é um Assassino de primeira. – iniciou Mackandal – Ele e seu amigo Baptiste são dois dos meus melhores alunos, já estão comigo há vários anos... Quantos anos mesmo?

—Dezessete, Mentor.

Dezessete? Por que diabos vocês ainda não foram promovidos a Mestres?

Agaté franziu a testa, sem saber a resposta.

—Claude, está decidido. Os dois se tornarão Mestres a partir da cerimônia de amanhã.

Felisitasyon, Agaté! – parabenizou Babatunde.

O Assassino se conteve para esconder a euforia. Desde que havia se juntado à Irmandade, admirava os Mestres. Mackandal, Claude, Jean, Adéwalé e até mesmo Antó, o distante contato na Jamaica... E agora Agaté se tornaria um deles! Como descrever essa sensação?

Pa Bondye! Muito obrigado, Mentor. É uma honra.

—Entendo, zanmi mwen. Mas eu não te chamei aqui por causa disso, e sim porque tenho uma missão para você. Venha.

Mackandal e Agaté se dirigiram a um outro canto da sala, mais distante dos dois Mestres.

—Eu detesto te dar um novo alvo logo antes do meio-dia, mas essa missão não tomará muito de seu tempo, isso eu garanto. Conhece William Cavendish?

—O traficante escocês?

—O próprio. Ele está em Le Cap no momento. Quero que você vá ao porto no leste da cidade, encontre o navio em que ele está viajando, que se chama Jupiter, e providencie a morte de Cavendish.

—Matá-lo? Mas eu pensei que ele fornecia armas para a nossa Irmandade.

—Para a nossa e para todas as outras do continente. Mas os Templários estão no rastro do sujeito, e ele sabe demais. Mate-o como achar mais fácil; ele era um criminoso, sua morte não será lamentada. Algum problema com isso?

Aquilo que Kobina dissera no dia anterior estava certo. O Mentor queria eliminar as provas da presença assassina, mesmo que isso significasse a morte de aliados valiosos.

—Não, Mentor, nenhum problema. Farei-o com presteza.

Gwo. Eu realmente quero resolver assuntos pendentes antes da cerimônia de iniciação amanhã. Agora vá, e que os Lwa te guiem!

Após contar a Baptiste a notícia de que ambos seriam promovidos, Agaté correu para o alvo, torcendo para que ele estivesse no local esperado. Chegando ao porto, subiu aos telhados de uma construção para observar os navios ancorados. Analisou-os por alguns minutos até identificar o correto: uma fragata que hasteava a bandeira britânica e continha a inscrição “Jupiter” no casco de sua proa.

Aproximou-se da embarcação e pediu a um dos homens a bordo que chamasse William Cavendish. Na hora, Agaté fez questão de vestir o capuz de seu manto. Desse modo, Cavendish o identificaria como um aliado. Não demorou muito para o próprio escocês subir ao convés para receber o Assassino, que retirou o capuz assim que o homem chegou.

—Ah, sim, eu te conheço. – William exclamou – Um dos aprendizes do Mackandal. Só não lembro o seu nome...

—Meu nome é irrelevante. – respondeu Agaté, áspero, porém sorrindo.

—Certo... Me diga, Irrelevante: o que faz aqui?

—Na verdade eu tenho uma mensagem do meu Mentor. Uma que é melhor discutirmos a sós.

William olhou para o Assassino, um pouco preocupado.

—Entendo. Acompanhe-me até minha cabine.

Os dois desceram as escadas para o convés inferior e entraram no pequeno aposento que servia de quarto para Cavendish durante a viagem a bordo. Eles sentaram-se em uma pequena escrivaninha com uma cadeira de cada lado

—O que é dessa vez? Espadas? Armas de fogo? Os sheng biaos estão em falta, infelizmente.

—Não, nada disso. Eu...

—Lâminas ocultas? Posso arranjar. Assim que possível, pretendo trazer ao Caribe uma arma nova dos Assassinos franceses chamada lame fantôme, que vocês adorarão. Sem falar numa nova lâmina que está sendo forjada na Índia; infelizmente os impostos otomanos dificultam a minha vida para trazer essas... Ah, estou tagarelando, me desculpe. Pode falar o que tem que falar.

Agaté se recostou na cadeira. Fitou o traficante e suspirou:

—Quer a história longa ou resumida, Cavendish?

—Resumida, se possível.

—Certo.

Agaté se levantou e andou para trás dele.

—Eu não queria ter que fazer isso. Suas armas funcionam muito bem, mas os Templários estão atrás de nós.

—E daí, Irrelevante?

—Daí que Mackandal decidiu que você sabe demais.

Cavendish entendeu a situação em um curtíssimo instante. Embasbacado ao ver a lâmina no pulso de Agaté prestes a ser ejetada, ele levantou-se da cadeira, mas já era tarde. O Assassino fincava a lâmina pela garganta do alvo, de modo que ele não mais poderia gritar.

Rès ak kè poze. – disse Agaté, colocando o corpo de Cavendish de volta na cadeira.

You shite! – o traficante balbuciou, na língua materna, antes de cair morto em cima da escrivaninha.

Agaté olhou em volta e percebeu uma pequena faca jogada em outro canto da mesa. Ele a colocou na mão de Cavendish e, segurando o seu braço, posicionou a faca exatamente no ferimento letal que Agaté havia feito nele, completando com um corte a mais ao longo do pescoço.

—Foi um belo suicídio, William Cavendish. Que pena que ninguém tenha visto. – completou, dando tapinhas no ombro do cadáver.

Agaté então vasculhou a cabine em busca de documentos importantes, para que ninguém pudesse provar a ligação de Cavendish com os Assassinos. Encontrou algumas cartas trocadas entre Assassinos, incluindo Mentores da Europa e da América. Confiante, deixou a cabine e começou a voltar para o porto. Aquilo de fato havia sido fácil. Ele mal podia crer na própria sorte.

Sua sorte, no entanto, mudou completamente quando voltou ao convés superior. Perto da amurada, dois rostos conhecidos o fitavam, surpresos. Eram os Templários ianques que haviam chegado na escuna Morrigan: aquele que, segundo lhe disseram, se chamava Christopher Gist e... Shay Cormac? Mas como? Shay deveria estar morto!

Mas, para Agaté, o certificado de óbito de Shay pouco importava no momento. O que importava era se virar frente àquela situação. Ele não poderia atacá-los. “Esconde-te em plena vista”, dizia o segundo dogma do Credo dos Assassinos. Ele estava em um porto aberto, no meio-dia de uma das maiores cidades do Caribe. Se lutasse, todos o veriam, e o segredo dos Assassinos estaria comprometido.

Um tiro de arma de fogo interrompeu seus pensamentos. A bala não o acertara, mas saíra de uma pederneira manejada por Christopher Gist. Agaté não hesitou em sair correndo. Poderia fugir ou atrair os inimigos para um terreno onde ele teria vantagem. Logo, correu para a proa do navio, de onde pulou para as docas e pôs-se a correr por entre a multidão, usando bombas de fumaça para despistar Shay e Christopher. Ao ver que eles ainda o seguiam, e que eles já estavam voltando ao centro da cidade, Agaté fez uma curva brusca em um beco estreito.

Parado, com espada em punho, aguardou próximo à esquina que os Templários chegassem. O primeiro a aparecer foi Shay, mas o golpe que Agaté desferiu com a espada foi inútil. Cormac segurava um rifle transversalmente, e com ele bloqueou o ataque. Agaté, obviamente, não desistiu. Continuou inutilmente atacando Shay, que se afastou do Assassino enquanto Christopher Gist se aproximava. Gist parecia (e era) mais velho que Agaté e Shay, mas mesmo assim sua esgrima era impecável. Nenhum golpe passava por sua espada.

A luta perdurou por alguns segundos, até que Shay gritou algo em inglês que Agaté não compreendeu no momento. Virando-se para ver o Templário, ficou chocado ao ver o rifle, armado e apontado em sua direção. E então o gatilho foi pressionado.

A visão de Agaté se embaçou até ficar escura.

 


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