Além de Irmandade escrita por Dricca


Capítulo 9
Framboesa


Notas iniciais do capítulo

Demorou um tantinho a mais do que eu gostaria pra postar, mas tive um pequeno bloqueio no fim de semana. Mas está aí, e espero que tenha ficado bom! Boa leitura ;)



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No mesmo dia em que Daniel prometeu que veríamos a ficha que a orientadora nos deu quando chegássemos até em casa, ele não foi para casa.

O questionário, então, acabou sendo esquecido. Apenas enfiei a folha em um dos compartimentos obscuros da minha mochila quando cheguei do intervalo naquele dia, depois de Daniel ter me dito para dar um jeito de voltar sozinho para casa. Havia dias como esse, quando ele me procurava no intervalo para dizer que eu arranjasse carona, pegasse um ônibus ou fosse a pé, porque ele não voltaria para me levar com ele. Nesses momentos eu profundamente sentia falta de não saber dirigir.

Por sorte, minha casa ficava a caminho da de Cadu, e a mãe dele não se importava de me dar carona. Então eu voltava para casa com eles sempre que Daniel resolvia sair depois das aulas. E como isso acontecia com frequência, nós acabamos nos aproximando. A mãe dele, inclusive, já me chamava pelo nome e perguntava para mim como tinha sido a aula, ao invés de perguntar ao filho. Era engraçado como ele fingia ficar bravo. Cadu era realmente legal, e pela primeira vez eu entendia como era bom me sentir confortável no carro de outra pessoa.

Quando a mãe de Cadu me deixou em casa, eu estava me sentindo muito deprimido – graças ao bullying por causa do vídeo da queda no shopping – para preparar alguma coisa para almoçar. Se Daniel estivesse em casa, ele provavelmente me arrastaria para cozinha e me obrigaria a ajudá-lo a descongelar algo para comermos, mas eu sozinho nunca conseguia ter a mesma energia que Daniel naturalmente tinha para me contagiar durante todo o tempo em que ficávamos juntos. Então eu simplesmente subi para o meu quarto e decidi me dar um tempo das lições para abrir o Facebook.

Como eu usava todo meu tempo ou para estudar ou para jogar videogame, fiquei sem checar praticamente todas as redes sociais nesse meio tempo, e não me surpreendi quando me deparei com uma quantidade gigantesca de mensagens do Matheus e mais algumas dos meus antigos amigos. Eu achava triste ter de adjetiva-los como “antigos”, mas eu não podia mentir para mim mesmo sobre o que eles eram para mim depois que me mudei. Aconteceram tantas coisas em tão pouco tempo, que era como se minha vida com eles estivesse muito mais distante no tempo do que deveria estar.

De qualquer forma, decidi ligar para o Matheus. Eu não costumava usar o celular para fazer ligações porque preferia escrever ao invés de falar. Mas eu estava com preguiça até de ler o que ele tinha escrito.

Luca? — foi a primeira coisa que Matheus disse quando atendeu, e foi realmente esquisito notar o quanto parecia uma novidade escutar a voz dele. — Tudo bem?

— Tudo, e você?

Ah, tudo bem também... — ele parecia confuso. — Por que tá me ligando? Você nunca liga. Só em caso de emergência. É um caso de emergência?

— Pra mim é, já que eu tô considerando aquelas milhares de mensagens que você me enviou um sério caso de emergência — dei risada. — Eu levaria uma hora pra ler tudo aquilo.

Ah, entendi; seu caso de emergência é preguiça — ele riu. — Faz sentido... Mas fiquei preocupado por um momento; você costuma ser um ser recluso que odeia telefonemas.

— Mas a preguiça vence qualquer coisa — falei e ele riu. — Você pode conversar ou tá ocupado?

Tava vendo TV, tá tranquilo, pode falar — ele disse despreocupado, e depois de uma pequena pausa riu. — Faz tempo que nós não falamos, você resolveu ignorar seus amigos.

— Unf — bufei. — Tá acontecendo tanta coisa e eu quis me dar um tempo de todo mundo, você sabe que eu não dou conta de muitos acontecimentos.

Você só se mudou — ele disse simplista —, mas como sempre exagera no tamanho da importância das coisas.

— Eu não me mudei... — falei ofendido. — Eu mudei pra longe de vocês, comecei numa escola nova depois que as aulas já tinham começado e ainda por cima arranjei um...

Um irmão postiço? — Matheus sugeriu, parecia estar achando graça do meu drama.

— É, pode-se dizer que sim... — suspirei. — Mas eu não gosto de pensar nele como irmão, nem postiço, nem nada; ele não é meu irmão e nunca vai ser.

Eu senti um leve ódio no seu tom de voz — Matheus riu. — Ele é tão pé no saco assim?

— Você sabe que eu não costumo odiar as pessoas — falei e Matheus me respondeu com um “uhum”. — Mas odeio ele.

Agora você precisa me contar o que tá acontecendo aí com você.

Então eu simplesmente desabafei com Matheus, contei sobre tudo o que eu havia passado com Daniel nessas duas semanas – exceto pela parte do beijo – e ele me ouviu até o fim com paciência. Matheus disse que era péssimo com conselhos (um pouco de verdade, um pouco de modéstia), mas falou para eu tentar ser menos implicante, porque se Daniel tinha uma personalidade forte ou totalmente diferente da minha, talvez eu devesse parar de achar ruim, ou parar de tentar pensar como seria se ele fosse diferente, e começar a deixar que ele fizesse suas babaquices sem que eu me importasse ou tentasse interferir. “Ele que se foda sozinho se é tão encrenqueiro assim”, foi como Matheus finalizou seu conselho. E a forma como ele disse isso, tão despreocupado, me fez perceber que ele tinha toda a razão: eu estava sendo muito implicante; exageradamente implicante.

Depois de escutar Matheus contando sobre como as coisas estavam na minha antiga cidade, pedi que ele desse um abraço nos meus outros amigos por mim, e, então, com quarenta e poucos minutos de ligação, finalmente nos despedimos.

Fiquei feliz pelo resto do dia por ter decido ligar para ele, já que Matheus tinha me ajudado a enxergar a situação por outro ângulo. E por isso prometi a mim mesmo que faria um esforço para agir com mais maturidade.

No dia seguinte foi anunciado no colégio um amistoso de futebol entre o time do Apus e de outro colégio, que seria na sexta à noite e inauguraria os jogos de futebol que aconteceriam dali para frente. Nando e Madu, por gostarem muito de futebol, sugeriram que todos nós fôssemos assistir ao jogo juntos, já que seria no ginásio do próprio colégio.

Eu não gostava de futebol, e normalmente recusaria uma sugestão dessas. Mas eu estava tão estressado com aquela história toda de diretoria e orientadora psicológica que resolvi ir com eles para me distrair um pouco.

Vitor disse que seu irmão poderia levar Nando e eu, se nós precisássemos de carona, já que Cadu e Madu iriam juntos da casa dela. Como Nando morava mais próximo de Vitor, ele me convidou para passar a tarde em sua casa, para facilitar as coisas para Vinícius quando fosse nos buscar. Achei que era nada mais do que justo para o irmão de Vitor e também legal da parte de Nando.

Mas antes de ter qualquer tempo para me divertir, eu precisei encarar a orientadora na quinta-feira depois das aulas. Daniel e eu almoçamos qualquer porcaria na lanchonete da escola e seguimos para a sala de orientação logo em seguida. Nenhum de nós tocou no assunto “questionário”, mas achei que não tinha importância, já que era só para a semana seguinte.

Quando entramos na salinha, a orientadora estava borrifando água em algumas plantas perto da janela. Ela disse para nos sentarmos nas poltronas em frente a sua mesa e logo veio nos dar atenção.

— Eu não me apresentei no outro dia — ela disse com seus olhos dourados brilhando em ânimo e um sorriso confortante, usando um tom de voz como se estivesse pedindo desculpas. — Eu me chamo Wanda, e nós estaremos fazendo as sessões por cerca de quatro semanas, se tudo ocorrer como planejado.

Ela se acomodou em sua cadeira e tirou um gravador e um bloco de notas da primeira gaveta.

— Você vai gravar nossa conversa? — Daniel perguntou de cenho franzido.

— Eu preciso — Wanda respondeu resignada. — É uma exigência da diretora desde que dois alunos acabaram se agredindo fisicamente dentro dessa sala e ninguém se lembrava do motivo pelo qual fizeram isso ou quem tinha começado a briga; então não pudemos ser justas sobre a situação.

— A diretora não parece ser muito justa — contestei. — Eu vim parar aqui porque ela foi o contrário disso, na verdade.

— Eu acredito em você, principalmente porque conheço a diretora — ela suspirou. — Mas enquanto vocês estiverem fazendo as sessões, sou eu quem decide o que acontece no caso um de vocês quebrar alguma regra da escola — Wanda explicou. —, não a diretora.

— E por quê? — Daniel perguntou curioso.

— Porque tecnicamente eu estou trabalhando com o psicológico de vocês, e por isso eu sou a melhor pessoa pra decidir qualquer tipo de punição, se isso for necessário.

— A diretora concordou com isso? — eu quis saber; Eva não parecia alguém que fosse gostar dessa ideia.

— Nós entramos num acordo — Wanda sorriu. — Mas isso não vem ao caso; agora nós precisamos dar início à sessão.

Ela pegou o gravador nas mãos, ligou e anunciou a data e nossos nomes em voz alta para que ficasse gravado; depois colocou o aparelho na mesa e nos lançou um olhar gentil.

— Quero que vocês saibam, meninos, que nada do que é falado ou gravado nessa sala sai daqui, e por isso vocês podem ficar tranquilos para se abrirem comigo — Wanda pegou seu bloco de notas. — Nosso objetivo inicial é que vocês entendam o porquê de precisarem dessas sessões. Quanto antes chegarmos às respostas para as perguntas que eu tenho pra fazer, antes vocês são liberados; entendido?

— Sim — respondi enquanto Daniel apenas balançava a cabeça em afirmação.

— Muito bem — ela sorriu. — Vocês sabem por qual motivo estão aqui?

— Eu não tenho motivo nenhum, pelo menos não tenho um que faça sentido — respondi. — Daniel resolveu fazer bullying com um menino do nono e a diretora me meteu na história injustamente.

— Não foi tão injustamente — Daniel me encarou. — Se você tivesse ficado na sua, não estaria aqui.

Olhei feio para ele. — Você queria que eu ficasse quieto depois de ver você empurrando o menino no chão?

— Teria sido ótimo se você tivesse ficado quieto, na verdade — ele respondeu debochado. — A própria diretora disse que você não sabe a hora de calar a boca.

— Bom, se você não tivesse empurrado o menino, nenhum de nós precisaria ir pra diretoria, pra começar — protestei. — E você viu o quanto a diretora é maluca.

— Então não fique colocando a culpa em mim, se você sabe que foi culpa dela!

— Mas não deixa de ser culpa sua também!

— Não é minha culpa se você não sabe ficar quieto!

— Meninos! — Wanda chamou nossa atenção, fazendo com que voltássemos a olhar para ela. — Por favor, não pensem em outra pessoa quando tentam responder essa pergunta; cada um precisa pensar no motivo particular pra estar aqui, não em algum motivo que envolve o outro.

— Eu fui pra diretoria porque agredi um garoto, mas sobre estar aqui... — Daniel soltou o ar dos pulmões lentamente, depois deu de ombros. — Não tem como não envolver o Luca na minha resposta...

— Talvez não totalmente, mas tenho certeza você consegue chegar a uma resposta sem precisar culpá-lo; vocês dois conseguem.

No momento me lembrei da minha conversa com Matheus, sobre ele ter aberto meus olhos para perceber o quão implicante ou intrometido eu poderia ser. Se aquela história do empurrão não tinha nada a ver comigo, talvez eu devesse ter ficado em silêncio. Ou pelo menos tentado não surtar com Daniel em frente à diretora Eva. Foi burrice minha. É claro que a diretora era maluca, mas se fosse para pensar só em mim, sem tentar jogar a culpa em cima de ninguém... Então eu sabia dos meus motivos.

— Eu... — comecei a falar, encarando minhas mãos, sentindo o olhar dos dois se voltando sobre mim. — Eu tô aqui porque eu me intrometi num assunto que não me dizia a respeito e... acho que fiz isso de um jeito grosseiro — olhei para eles. — Foi por isso.

Wanda me lançou um sorriso, e Daniel me encarou um pouco surpreso por um segundo antes de desviar os olhos, mordendo os lábios, pensativo.

— Bom — Daniel começou a dizer. —, então acho que o meu motivo é ter respondido a grosseria do Luca com mais grosseria — ele torceu os lábios. — E talvez eu tenha sido pior, quer dizer, ele tava tentado defender aquele molequinho, e eu fiquei com raiva disso.

— Ah, vocês progridem depressa! — Wanda juntou as mãos com um sorriso satisfeito, enquanto eu e Daniel olhávamos um para o outro.

Wanda então, nos deu uma lição sobre como o individualismo pode funcionar para o bem, nos dizendo como somos egoístas na hora errada, sendo que quando se trata de problemas, queremos jogá-los inteiros para as outras pessoas, ao invés de tomá-los apenas para nós mesmos. Ela explicou sobre como o problema geralmente nunca está na outra pessoa por quem sentimos um ódio inexplicável, mas em nós mesmos, como se os outros fossem apenas espelhos das nossas próprias falhas. Wanda falou muito, e disse que era para pensarmos em tudo o que ela disse a partir do momento em que saíssemos daquela sala.

Uma hora depois, quando estávamos saindo dali, ela nos avisou que não nos esquecêssemos do questionário para a próxima terça-feira, porque trabalharíamos com as nossas respostas na próxima sessão.

Daniel e eu voltamos para casa em silêncio. Talvez, assim como eu, Daniel tenha ficado pensativo sobre o quê Wanda havia nos falado, ou, principalmente, sobre como tinha sido estranho abraçar toda a culpa para nós mesmos, porque normalmente eu culpava Daniel em qualquer situação, mesmo mentalmente, e imaginava que ele também fazia o mesmo comigo. E aquela tinha sido a primeira vez que Daniel pareceu ser realmente compreensivo. E que eu fui compreensivo também. Talvez a maluquice da diretora Eva tenha servido para alguma coisa.

Na sexta-feira, assim que o sinal para o intervalo tocou, fui procurar Daniel para avisar que, pela primeira vez, eu não voltaria para casa com ele.

Quando o vi saindo da sala do terceiro ano com os amigos, corri depressa até ele e cutuquei suas costas. Quando ele se virou para trás e me viu ali, pareceu surpreso.

— Luca — ele pronunciou meu nome quase involuntariamente.

— Olha só — o amigo de Daniel, que estava ao lado dele, disse enquanto olhava para mim; eu o reconheci, já que ele sempre estava por perto. —, é o loiro que caiu no shopping.

— Eu não sou exatamente loiro — falei, em uma tentativa afobada de desviar do assunto “queda no shopping”.

O garoto franziu o cenho para mim.

— O que foi, nanico? — Daniel perguntou, fazendo meu olhar voltar para ele.

— Eu só queria avisar que não vou voltar pra casa com você hoje — declarei, animado com a ideia de passar a tarde com companhia para jogar videogame.

— Pra onde você vai? — ele questionou autoritário.

— Pra casa do Nando.

— Quem é Nando?

— O meu amigo — cerrei os olhos para ele, tentando adivinhar onde ele queria chegar com tantas perguntas.

— Espero que sim, já que você vai pra casa dele — Daniel falou sarcástico. — Eu quis perguntar qual dos seus amigos ele é.

— Desde quando você se interessa por isso?

— Só tô perguntando — ele franziu o cenho, desviando o olhar por um segundo. — É que você nunca sai, só queria saber quem é o ser que conseguiu tirar você do quarto.

Suspirei.

— Sabe o do topete?

— Ah, sei — Daniel assentiu. — Por que você vai pra casa dele?

— Porque nós vamos ver o jogo à noite — expliquei, estranhando, mais uma vez, todo aquele interrogatório. —, e fica mais fácil pro irmão do Vitor nos pegar na casa do Nando.

— Você vai ver o jogo?

— Vou.

— Eu também.

— Ah... — falei, sem saber o que responder. — Legal.

Daniel revirou os olhos. — Eu quero dizer que você pode vir comigo, não precisa ir pra casa do garoto do topete.

— Mas eu já disse que ia.

— Então diga que não precisa mais.

— Como assim, Daniel? — fiz careta para ele. — Não tem essa de não precisar mais; eu quero ir. Mesmo que eu não goste muito de sair, a mãe dele mandou perguntar o que eu queria pro almoço, e eu tô há uma semana comendo lasanha, eu quero comer alguma coisa com gosto diferente!

O amigo de Daniel deu risada, e eu notei que agora apenas estávamos nós três no corredor, sendo que era realmente estranho que o garoto estivesse prestando atenção em conversa, mesmo que não fosse nada muito pessoal.

Daniel olhou para ele por um instante, parecia um pouco estressado.

— Você vai fazer alguma coisa depois do jogo? — resolvi perguntar, fazendo com que ele voltasse a olhar para mim. — Porque aí sim eu vou precisar de você pra voltar pra casa; não queria incomodar o irmão do Vitor ou o Cadu com isso.

— Não — Daniel negou com a cabeça, enquanto pegava um pirulito do bolso do casaco e começava a tirá-lo da embalagem. — Não vou fazer nada depois do jogo; me encontre no estacionamento.

— Mas você disse que... — o outro garoto começou a falar, e Daniel, prestes a colocar o pirulito na boca, olhou feio para ele por alguns segundos, fazendo-o ficar quieto, e depois enfiou o pirulito entre a bochecha e os dentes enquanto olhava para mim.

— Me passa o seu número — Daniel caçou o celular do bolso do moletom do colégio. — Não quero ficar esperando uma eternidade até você encontrar o carro, melhor você ligar pra mim quando estiver saindo do ginásio, ou eu te ligo, sei lá.

Peguei o celular nas mãos, mas apenas encarei Daniel. Eu estava achando a situação, no mínimo, muito estranha. Daniel não costumava se importar muito com minhas coisas. Ele tirou o pirulito da boca e lambeu os lábios, depois fez um movimento com a cabeça como se estivesse me incentivando a anotar meu número de uma vez.

Pisquei e olhei para o celular, dando de ombros. Se ele queria ser legal, que bom. Comecei a digitar meu número no teclado, pensando no jeito como o amigo dele tinha protestado sobre ele não ter nada para fazer depois do jogo...

— Se você já tiver algo pra fazer... — comecei a falar, mas Daniel me interrompeu.

— Já disse que não tenho — anunciou ele, se aproximando repentinamente enquanto começava a enfiar as mãos nos meus bolsos, me assustando e fazendo cócegas ao mesmo tempo. — Cadê o seu celular, pra eu anotar o meu número também?

Soltei uma risada e sem querer encontrei com o olhar do amigo de Daniel, que me encarava um tanto irritado. Meu sorriso murchou e eu pigarreei ao mesmo tempo em que Daniel tirava meu celular de um dos bolsos do blazer do uniforme.

Depois de nos salvarmos um na agenda de contatos do outro e trocarmos os celulares de volta, Daniel olhou para mim, tirando o pirulito da boca.

— Diga “ah” — ele mandou.

— O quê? — assim que abri os lábios para falar, Daniel enfiou o pirulito dentro da minha boca.

— Não gosto muito de framboesa — ele me lançou um sorriso. — Até depois do jogo.

E me deu as costas, sendo seguido pelo outro garoto, que, claro, me lançou um último olhar nada amistoso.

— Até — respondi, mesmo que ele já estivesse longe, sentido o gosto do pirulito.

...

Nando e eu nos divertimos bastante na casa dele. Talvez eu mais que Nando, já que eu não tinha nenhum irmão para jogar algumas partidas de videogame comigo, diferente dele, que tinha companhia disponível para isso durante todo o tempo.

Nando, eu pude perceber, era alguém realmente engraçado, que falava bobeiras durante noventa por cento do tempo e que amava comer. E era tão agitado que me fez pensar de onde ele tirava paciência para deixar seu topete daquele jeito.

Jogamos até às cinco da tarde, fazendo pausas para comer as coisas gostosas que a mãe dele nos trazia gentilmente de hora em hora. Fui eu que insisti para que parássemos com o videogame para fazer o dever de casa do dia seguinte, porque com certeza eu não conseguiria ter forças para fazer quando chegasse até em casa depois do jogo. E, além disso, o Apus tinha regras muito claras sobre as tarefas para casa, bem como sobre todas as outras coisas possíveis de serem controladas naquele colégio. E eu não estava a fim de ganhar uma ocorrência ou ter mais uma conversa com a diretora Eva. E pelo jeito Nando também não, já que concordou sem muitas reclamações em fazer as lições comigo.

— O que você quer fazer agora? — Nando perguntou enquanto se jogava em sua cama depois de uma hora e meia de exercícios de português, química e geografia.

— Eu não sei — descansei minha cabeça na beirada o colchão; eu estava sentado no chão, as costas apoiadas na cama. — Dormir — disse e esfreguei os olhos, cansado.

— Você já tá com sono? — escutei Nando se mexer na cama, provavelmente tinha se levantado. — São só seis e meia.

— Eu durmo à tarde quase todos os dias — contei enquanto começava a reunir o material espalhado pelo carpete no chão, precisava guardar tudo, afinal dali meia hora Vitor chegaria para irmos ao jogo.

— Como você consegue? — Nando surgiu no meu campo de visão e começou a me ajudar a separar o que era meu e o que era dele naquele amontoado de canetas e apostilas.

— Eu não sou hiperativo igual a você — falei.

Nando deu risada. — Não mesmo.

No instante seguinte, ouvimos o som de passinhos apressados se aproximando e logo o irmãozinho de Nando surgiu detrás da porta do quarto.

— Nando, tem vídeo novo! — ele disse com sua voz infantil.

— Do Daniel? — ele perguntou natural enquanto fechava o seu estojo.

Parei o que estava fazendo e olhei para Nando.

— Até o seu irmão assiste os vídeos do Daniel?

— Ele é louco pelo Daniel — Nando disse quase distraído, depois olhou para o irmão na porta, que segurava a maçaneta com ansiedade. — Nós não vamos ver juntos hoje, João; o Luca tá aqui e ele não gosta dos vídeos.

O pequeno fez uma careta de decepção, e eu não soube dizer se era porque eu estava colaborando para quebrar a tradição de eles assistirem Daniel juntos, ou era simplesmente porque ele não conseguia acreditar que eu não gostava dos vídeos. De qualquer forma, eu não queria que ele me odiasse logo na primeira vez em que eu vinha a casa deles.

— Não tem problema, vocês podem ver — falei depressa, reacendendo o ânimo no rosto bochechudo de João. — Eu não ligo.

João sorriu e foi entrando no quarto, acessando o YouTube no computador do irmão mais velho como se já tivesse feito isso milhares de vezes. Nando arrastou um pufe para o lado do menor e os dois começaram a ver o vídeo.

Levantei do chão e comecei a ver também, em pé atrás deles. Era estranho como Daniel parecia legal e engraçado enquanto jogava um daqueles jogos idiotas de terror que não assustam. Ele parecia tão despreocupado e espontâneo. Por que ele não era assim comigo, sendo que ele parecia ser dessa forma com a maioria das pessoas, inclusive na vida fora da internet? Talvez eu o tirasse do sério da mesma forma com que ele fazia comigo, e por isso Daniel não conseguia agir como ele mesmo perto de mim. Isso era tão irritante.

Decidi escovar meus dentes logo, antes que Vitor chegasse. Não queria mais ficar vendo toda aquela espontaneidade divertida de Daniel, que fazia Nando e seu irmãozinho gargalharem.

Peguei minha escova de dentes na minha mochila e fui para o banheiro. Enquanto escovava, olhei para meu reflexo no espelho. Eu não parecia irritado, eu parecia magoado. E perceber isso me fez parar por um segundo, com a espuma na boca, para cogitar sobre alguma possibilidade de fazer com que Daniel gostasse de mim. Porque eu sabia que as coisas entre nós poderiam ser diferentes, e sabia que mesmo com todo aquele jeito grosseiro e enérgico, eu queria poder falar com ele sem brigas ou provocações, queria ouvir uma história engraçada dele, queria conversar com ele.

Suspirei me olhando no espelho, pensando naquele maldito pirulito de framboesa, naquela maldita personalidade bipolar, e em como, na hora o intervalo, havia parecido com que Daniel abrira mão de fazer alguma coisa depois do jogo apenas para poder voltar comigo para casa. Talvez fosse apenas impressão minha; algo meio ilusório para eu me agarrar. Mas eu quis acreditar naquilo por um segundo, para que eu não me sentisse menor do que nenhuma daquelas pessoas que recebiam um sorriso espontâneo dele todos os dias.


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Notas finais do capítulo

Obrigada especial ao lindinho do Higgy por me trazer inspiração e ficar pegando no meu pé pra postar ♥
Até o próximo! ;)