Além de Irmandade escrita por Dricca


Capítulo 10
Agridoce


Notas iniciais do capítulo

Olá! Demorei um pouco mais que de costume para postar porque ando muito ocupada com a faculdade, mas saibam que eu gosto muito de AdI para abandoná-la, então não se preocupem!
Boa leitura ;)



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A arquibancada foi lotando conforme a hora do jogo se aproximava, e o burburinho do pessoal conversando foi preenchendo o ginásio.

Aos dez minutos para o jogo, quando Vitor, Nando e eu chegamos, tivemos “sorte” de conseguir um dos últimos espaços no centro direito porque Madu e Cadu tinham guardado lugar, ou seja, Madu assustadoramente estava expulsando quem quer que tentasse sentar ao lado deles.

Nando sentou ao lado do casal, que dividia um balde de pipoca tamanho gigante. Vitor ficou na ponta e me fez sentar entre ele e Nando, para que eu não ficasse de fora da conversa, provavelmente. Era a primeira vez que eu assistiria a um jogo de futebol de colégios, e eu me sentia empolgado, já que o pessoal estava sendo muito receptivo e legal comigo. E, além do mais, o ginásio era muito bonito. Vitor havia me dito, quando estávamos no carro, que o ginásio do Apus comportava umas duas mil pessoas e foi construído com o patrocínio de muitas empresas e lojas esportivas da cidade em troca de propaganda, já que o time do Apus era realmente bom e fazia sucesso por todo o estado. O lugar parecia um miniestádio semicoberto, as arquibancadas rodeavam o campo de gramado, como uma pequena arena.

— Eu também quero pipoca — Nando se inclinou para o casal ao lado a fim de roubar um pouco para ele, mas recebeu um tabefe na mão.

— Vá comprar a sua, Nando! — Madu o encarou autoritária enquanto trazia o balde de pipoca mais para perto do peito; ela estava usando um boné cinza, preto e azul com a aba virada para trás, e, quando mexia a cabeça, o desenho do que parecia ser um corvo estampado na parte da frente ficava visível. — Sempre que eu te dou um pouco você já acha que isso significa que eu te autorizei a meter a mão na minha comida quando você quiser.

— Mas olha o tamanho disso! — Nando insistiu, tornando a tentar roubar um bocado para ele, e dessa vez recebeu um tabefe do Cadu.

— É do tamanho certo pra durar pra duas pessoas até o primeiro tempo acabar — Cadu disse e depois colocou um punhado da pipoca na boca.

— Porra, vocês são muito egoístas — Nando emburrou-se; acho que negar comida para ele era quase como um insulto, o que era realmente engraçado. Mas eu não quis rir porque Nando ficaria bravo comigo, provavelmente.

— Não faz nem uma hora que você comeu, Nando — comentei, fazendo o bico emburrado de Nando aumentar; ele parecia uma criança raivosa quando ficava com fome.

— Eu não tenho culpa se o meu metabolismo é rápido.

— Eu também tô com fome — Vitor pronunciou-se. — A última vez que comi foi no almoço, e já são quase sete e meia — ele olhava para Nando. — Eu vou lá pra lanchonete de qualquer forma e compro a pipoca pra você.

— Valeu, Vico — Nando sorriu e apertou as bochechas de Vitor.

— Você quer alguma coisa, Luca? — Vitor direcionou o olhar para mim.

— Acho que sim — falei, alcançando o dinheiro no bolso traseiro do jeans (que havia colocado na casa de Nando, já que seria chato vir ao jogo de uniforme), enquanto pensava no que pediria; eu não estava com fome, mas odiaria sair dali durante o jogo para comprar comida e arriscar de perder alguma coisa.

— Não precisa — Vitor segurou meu braço antes que eu tirasse o dinheiro do bolso. —, eu vou pagar pro Nando, posso pagar pra você também, sem problema.

— Claro que não! — franzi o cenho e sorri para ele enquanto colocava uma nota de dez reais na mão dele. — Uma Pepsi e um pacote de batatinhas.

Vitor sorriu de volta, deu de ombros, e colocou o dinheiro no próprio bolso — Eu já volto.

Observei enquanto ele pedia licença para as pessoas para chegar ao corredor, depois me virei para Nando.

— O Vitor sempre é legal assim com todo mundo?

— Aham — ele balançou a cabeça afirmativamente. — Ele parece que gosta de fazer tudo pelos outros — Nando fez uma careta engraçada, como se a ideia de fazer alguma coisa por alguém fosse absurda. — Vai entender.

Dei risada e Nando sorriu por dois segundos até que bateu com a mão na própria testa, parecia ter se lembrado de algo importante de repente.

— O que foi? — perguntei.

— Acabei de perceber que eu pedi uma pipoca pro Vico... — ele remexeu os bolsos e pegou seu celular. — Vou pedir pra ele comprar duas, e um cachorro quente também, quem sabe um pacote de...

Ele se perdeu na própria fala enquanto digitava uma mensagem. Eu não tentei ler o que ele estava escrevendo, mas quando vi o tamanho que o texto ficou quando ele enviou, imaginei que Nando não pediu apenas mais uma pipoca e um cachorro quente. O celular dele vibrou logo em seguida, e quando Nando leu a resposta de Vitor, soltou um murmúrio irritado.

— Algum problema?

— Vico disse que não vai conseguir carregar tudo o que eu pedi sozinho... — Nando fez careta. — Tenho que ir lá ajudar.

Ele foi se levantar, mas eu segurei a manga do seu moletom e o fiz olhar para mim. — Eu posso ir, se você quiser.

— Sério?

— Aham — assenti tranquilo para demostrar que não seria trabalho nenhum para mim; Nando tinha sido tão legal comigo durante o dia todo, e eu sentia que isso exigia algum tipo de compensação da minha parte, por mais simples que fosse.

— Valeu, loiro — Nando apertou minhas bochechas como tinha feito com Vitor e voltou a se acomodar em seu lugar enquanto eu desviava das pessoas para chegar ao corredor de escadas.

Quando cheguei à lanchonete avistei Vitor entregando o dinheiro para a mulher que ficava no caixa.

— Vim ajudar — falei ao me aproximar.

— O Nando te obrigou? — Vitor perguntou enquanto recebia o troco e agradecia a mulher com um aceno de cabeça.

— Não, eu fui voluntário — falei, arrancando um sorriso dele.

Vi minhas batatinhas e a Pepsi sendo colocadas no balcão e logo as peguei. Vitor colocou um pacote de amendoins e um balde enorme de pipoca nos meus braços e foi guardando o dinheiro para pegar o restante das coisas.

— É melhor eu te dar seu troco agora, antes que eu me esqueça — ele disse enquanto separava o troco dele do meu.

— Eu tô meio ocupado — falei; não podia pegar o dinheiro agora, com todas aquelas coisas nos braços. — E só são três reais, não tem problema se você se esquecer.

— Você fez toda questão de pagar, agora eu preciso te dar o troco.

O cara atrás de nós na fila reclamou da nossa enrolação e Vitor revirou os olhos.

— Posso colocar no seu bolso? — ele perguntou.

— Pode — respondi.

Vitor chegou perto e enfiou o dinheiro no meu bolso de trás. Eu imediatamente me arrependi de ter deixado que ele fizesse isso, quer dizer, era o Vitor com a mão indiretamente na minha bunda. Senti minhas orelhas esquentarem, e agradeci aos céus por Vitor parecer não notar nada. Ele logo se virou naturalmente para o balcão e juntou todo o resto da comida nos braços. E então seguimos de volta para a arquibancada.

Depois de cinco minutos, nos quais Nando tentou fazer toda a comida que pediu caber entre o meu assento e o dele, a diretora fez sua entrada e anunciou o início do jogo. Ficamos todos em pé enquanto entravam os dois times e os seus respectivos mascotes. Quando vi o mascote do Apus, não consegui reconhecer o que era aquilo. Parecia um corvo – o corvo estampado no boné da Madu –, só que com umas antenas esquisitas, um mix furta-cor azul em torno do pescoço, e uma cauda enorme.

— Que bicho é aquele? — apontei enquanto ele fazia gracinhas para a torcida que gritava animada em resposta.

— É uma ave-do-paraíso — Vitor respondeu, tentando fazer a voz sobressair ao barulho da torcida. — É o mascote do time por causa do nome do colégio, Apus, acho que é um nome em latim que tem alguma coisa a ver com essa ave.

— É que Apus é o nome de uma constelação que também significa “sem pé” — Cadu entrou na conversa, me fazendo olhar pra ele. — Antigamente acreditavam que a ave-do-paraíso não tinha pés, mas era só porque as únicas espécies tinham os pés e às vezes até as asas cortadas fora.

— Nossa, por que faziam isso?

— Porque os indígenas achavam as patas feias, e queriam que os europeus que fossem ver a ave só vissem as partes bonitas dela — Madu falou enquanto eu respondia com uma careta. — Eu sei, meio doentio.

— Eu ainda acho que era porque acreditavam que a ave-do-paraíso dava poderes — Nando falou com a boca cheia de pipoca e amendoim. Em momentos como aquele, ele me lembrava o Daniel.

— Poderes? — repeti curioso.

— O Nando tirou isso de um episódio de Duelo Xaolin — Cadu olhou para Nando como alguém que olha para um cão abandonado. — Ele acha que, como no anime, quem tivesse a ave-do-paraíso ganharia poderes, e por isso cortavam os pés e as asas, pro bicho não fugir. Mas isso é ridículo, é só ficção.

A ave-do-paraíso mascote acabou com as dancinhas, e deu a vez para o mascote do outro time, um lobo de camiseta preta e verde.

— Mas o que o mascote tem a ver com o colégio? — eu quis saber. — Quer dizer, por que o fundador escolheu esse nome?

— O fundador foi o avô da diretora atual — Madu informou. — E a família deles é um pouco esquisita...

— Eles colocaram esse nome porque significa que os alunos do Apus devem ser como a ave-do-paraíso — Cadu continuou. —, é tipo uma metáfora pra dizer que, se for preciso, ela arranca nossa parte ruim pra nos fazer ficar bons.

— Não duvido que ela arranque nossos pés pra ninguém fugir daqui — Nando disse acusatório. — Ela é maluca.

— É bem assustador pra ser o lema de um colégio — falei, voltando os olhos paro o mascote lá embaixo, na quadra de gramado. — Como vocês sabem de tudo isso?

— Todo início de ano nós somos obrigados a assistir um vídeo explicativo sobre a origem do colégio — Vico falou. — Você teve sorte de ter chegado depois, o pessoal novato fica meio traumatizado.

— Mas todo mundo aceita? — perguntei. — Ninguém acha tudo isso muito exagerado?

— Apus sempre foi um bom colégio, apesar das esquisitices — Madu deu de ombros. —, e, além do mais, quem paga isso aqui são nossos pais; eles só querem que a gente se forme no ensino médio e ponto.

Nenhum de nós disse mais nada, entretidos com a apresentação do mascote lobo. Depois disso cantamos o hino nacional com os times e finalmente pudemos nos sentar de volta quando o jogo começou.

O primeiro tempo passou voando. Eu não era expert em futebol, e quando não entendia algum lance, o pessoal explicava para mim, porque, pelo jeito, eles gostavam muito do esporte e do Alpha Apodis – nome do time que se originou da estrela mais brilhante da constelação de Apus. E, apesar de todos saberem sobre futebol, quem mais me explicava sobre os lances e as jogadas que eu não entendia era Madu.

Às vezes a ave-do-paraíso ganhava atenção entre uma falta e um tiro de meta, e numa dessas vezes eu expressei o quanto aquele bicho parecia um corvo de antenas para mim; o pessoal achou engraçado, coisa que me fez sentir mais a vontade, já que eles eram gentis o suficiente para rir das coisas que eu dizia.

No intervalo, Nando, Vitor e eu fomos buscar mais comida, principalmente para o Nando. Eu e Vitor compramos apenas milk-shakes enquanto Nando comprou milk-shakes e mais o resto da lanchonete. Aproveitamos o tempo de sobra para apreciar a vista das janelas da pequena praça de alimentação, que contornava uma das partes de cima das arquibancadas. Dava para ver a escola toda de lá, já que os prédios do Apus eram um tanto menores que o do ginásio. Esperei encontrar Daniel por ali em algum momento durante o intervalo, comprando comida, mas não consegui vê-lo nem ali nem depois na arquibancada.

Na metade do segundo tempo, com o Alpha Apodis ganhando de dois a um e um clima mais tranquilo na torcida, Vitor quis saber sobre o que havia acontecido na diretoria no dia em que eu havia sido chamado lá, porque até então eu não tinha dito nada mais que “problemas por causa do Daniel” quando eles me perguntavam o motivo, e prometia que falaria sobre isso depois, sendo que o depois nunca chegava. Quando os outros ouviram a pergunta também ficaram curiosos, exceto por Nando, afinal eu já tinha contado sobre isso para ele mais cedo.

— Daniel arranjou problema com um garoto do nono ano — contei. — Mas a diretora é maluca e me meteu na história também.

— Como assim? — Madu perguntou.

Então contei com detalhes tudo o que houve, desde a discussão que tive com Daniel na frente da diretora Eva até todas as punições que eu teria de cumprir (injustamente).

— Trabalho voluntário pra escola? — Madu disse quando terminei. — Espero que você não tenha que limpar banheiro, nem nada assim. Que injustiça.

— Eu acho que esse nem é o maior problema — falei aborrecido. — Eu limparia banheiros se não fosse preciso fazer sessão nenhuma com a orientadora.

— Você odeia mesmo o Daniel, pra preferir uma privada suja a ele — Nando comentou, erguendo as sobrancelhas.

Nós todos demos risada ao mesmo tempo em que o pessoal a nossa volta fez um silêncio repentino e se levantou dos assentos. Nós nos erguemos também, um tanto confusos, e vimos que o motivo para aquele suspense generalizado era o fato de que um dos jogadores do nosso time corria quase voando até o gol. Ele chegou perto e chutou. Todos ficaram tensos, esperando a bola entrar na rede. Mas antes que isso acontecesse, o juiz apitou e ninguém comemorou quando a bola balançou a rede ao encostar-se a ela, porque havia um jogador do Alpha Apodis caído no gramado: era uma falta.

— Isso nem parece um amistoso — falei quando vi o jogador que havia sofrido a falta sendo carregado para fora do campo em uma daquelas macas de mão enquanto segurava firme a própria coxa com uma expressão de pura dor.

— Amistoso no dicionário deles significa “batalha violenta pela vitória” — Madu comentou sobre o outro time.

Depois disso não houve mais gols, apenas quase-gols e algumas outras faltas menos violentas. Foram mais vinte minutos até o fim do jogo, quando a torcida do Alpha Apodis levantou e começou a comemorar pela vitória, gritando e abraçando quem estivesse ao lado.

Presenteei Nando com o resto das minhas batatinhas e, depois de me despedir do pessoal, fui em direção ao estacionamento com minha lata ainda quase cheia de Pepsi nas mãos. Tentei procurar Daniel dentro daquele amontoado de pessoas, mas era impossível focar em algum rosto naquela agitação barulhenta e ansiosa para sair do ginásio, então apenas segui em frente.

Passei pelo campus do colégio andando depressa; eu não conseguia prestar muita atenção no que estava acontecendo a minha volta porque encarava o celular em minhas mãos, mastigando o canudinho da lata de refrigerante, pensando se eu deveria ligar ou mandar uma mensagem avisando Daniel que eu já tinha saído do ginásio. Era uma coisa tão simples ligar, eu só precisaria perguntar “onde você está?”; mais simples ainda era mandar uma mensagem, Daniel não precisaria escutar minha voz. Mas mesmo assim, eu estava me sentindo meio estranho. O fato de que Daniel abrira mão de algum plano pós-jogo apenas para poder me levar para casa rondava os meus pensamentos, e não me deixava livre para fazer uma única e simples ligação sem que eu sentisse como se estivesse atrapalhando de alguma forma.

Fui adiando aquilo até chegar ao enorme estacionamento, que estava tão lotado que nem por um segundo me permitiu ter esperança de que talvez eu pudesse encontrar o carro de Amora em meio aos tantos outros.

Acabei que num impulso apertei o botão de ligar e, ansioso, foquei em um dos postes de luz do estacionamento enquanto ouvia as chamadas. Daniel atendeu na segunda.

Alô — quase não ouvi a voz de Daniel por conta do barulho de pessoas conversando no fundo.

— Daniel.

Oi, Luca — ele mudou levemente o tom de voz. — Já saiu?

— Tô no estacionamento — olhei em volta e depois foquei nos meus próprios pés.

Calma que eu ainda não cheguei, fiquei preso no tumulto da saída.

— Cadê o carro?

Perto do prédio da secretaria.

— Eu vou tentar achar então, enquanto você não chega.

Chego aí em cinco minutos.

— Tá bom.

Até daqui a pouco — Daniel se despediu um pouco afobado.

— Até — respondi e desliguei.

Fui até perto da secretaria e procurei o carro por cerca de três minutos antes de conseguir encontrá-lo. Achei que demoraria mais, principalmente porque já estava bastante escuro, mas acabou que Daniel havia estacionado exatamente debaixo de um dos postes de luz. Depois de conferir a placa para ter certeza se aquele era mesmo o carro certo, me sentei no capô para esperar Daniel enquanto jogava qualquer jogo bobo no celular, grato pela luz do poste iluminar apenas traseira do carro, já que assim eu poderia passar despercebido.

Daniel só chegou depois que eu parei de prestar atenção ao redor para conseguir perceber o momento em que ele estivesse chegando.

— Você conseguiu achar — ouvi a voz de Daniel e desgrudei os olhos do celular, assentindo para responder a pergunta óbvia; sorri quando notei algo diferente em seus cabelos.

Daniel me olhou desconfiado enquanto chegava mais perto até parar a minha frente. — O que foi? — ele perguntou.

— Tem uma pipoca no seu cabelo — respondi, achando graça.

Ele ergueu as sobrancelhas enquanto levava a mão direita à bagunça de fios escuros, sem conseguir acertar o lugar em que estava grudada a pipoca.

— Deve ter sido por isso que ficaram me olhando enquanto eu vinha pra cá — ele disse, tateando a cabeça em busca da pipoca.

Dei risada. — Você é muito egocêntrico, aposto que ninguém nem reparou — falei apenas para irritá-lo; Daniel fez careta para mim ao mesmo tempo em que se mostrava um inútil na tentativa de se livrar da pipoca.

— Deixa que eu tiro, você só tá amontoando mais cabelo pra cima dela — falei e ele se aproximou enquanto eu estendia a mão em direção aos fios escuros.

Como nós dividíamos o mesmo banheiro, eu sabia que tudo o que ele passava no cabelo era shampoo. E para alguém que não usava condicionador, o cabelo dele era muito macio.

— Você tava comendo pipoca doce? Porque isso aqui tá melado.

Daniel deu risada e eu me senti nervoso, estávamos muito perto, ele debruçado sobre mim no capô. Eu me apressei e finalmente desgrudei a pipoca caramelizada do cabelo dele.

— Nós fizemos guerrinha de pipoca durante o jogo — ele se explicou.

— Ah — pulei o capô, olhando em volta. — Cadê as lixeiras?

— Só jogue isso no chão — Daniel veio perto querendo tirar a pipoca da minha mão.

— Não — eu desviei, fazendo-o me encarar confuso. — Eu não sou porco como você, eu jogo as coisas no lixo.

— Você levou muito a sério as aulas sobre reciclagem.

— Mas é pra levar a sério.

Daniel revirou os olhos. — Tem uma lixeira ali — ele apontou para a lateral do prédio da secretaria, e quando dei o primeiro passo naquela direção, Daniel me pegou de surpresa arrancando a pipoca da minha mão e a jogou para longe.

Fiquei parado olhando a direção em que a pipoca tinha voado.

— Vamos pra casa, nanico — senti Daniel bagunçar os meus cabelos e depois o vi andar até a porta do carro, destravado as portas com o controle.

Ele fez sinal com a cabeça para que eu entrasse; dei de ombros e segui até a porta do lado do passageiro. Depois de sentar e fechar a porta, eu joguei minha mochila no banco de trás.

— Coloque o cinto — Daniel falou, ajeitando o espelho retrovisor.

— Não precisa, nossa casa fica pertinho.

Ele me encarou.

— Você briga comigo pelo lixo e não põe cinto de segurança?

— Eu sempre ponho o cinto, mas agora tô com preguiça.

Daniel suspirou e murmurou alguma coisa parecida com “depois eu que sou o bipolar”, e se inclinou sobre meu corpo, alcançando o cinto e colocando-o para mim, o rosto tão perto do meu; ele cheirava a seu perfume de noz-moscada e a caramelo de pipoca doce. Era uma mistura quase agridoce, e fez com que meu coração acelerasse e demorasse a se acalmar.

...

Depois de cerca de dez minutos de trânsito fluente, nos deparamos com uma fila de carros parados a nossa frente. As luzes vermelhas, constantemente acesas por conta das freadas dos veículos, iam para além da rua pela qual Daniel dirigia. E, embora o trânsito logicamente estivesse um pouco mais congestionado por causa do pessoal que voltava do jogo, não fazia sentido que a fila estivesse tão estacionada daquela forma.

— O que aconteceu? — perguntei um tanto involuntariamente, já que eu sabia que Daniel claramente estava tão confuso quanto eu enquanto olhava para aquela fila gigantesca de carros.

— Eu não sei... — ele murmurou enquanto elevava o corpo no próprio assento e tentava espiar, em vão, para além daquela fila: não tinha nada mais que luzes de freio enfileiradas, postes, letreiros coloridos e a noite para se enxergar.

Daniel largou o corpo no assento com um suspiro e segurou firme o volante, apoiando a testa nele. Olhei para trás e vi que alguns carros já iam parando atrás do nosso, e quando voltei a olhar para frente, vi que o motorista do carro da frente estava saindo para a rua. Observei o homem de jaqueta de couro andar até sumir de vista.

— Quando o motorista da frente voltar, podemos perguntar pra ele o que aconteceu — falei enquanto ligava o rádio.

Daniel apertou o botão de ligadesliga logo depois. — Minha cabeça tá doendo, ficaram gritando nos meus ouvidos durante todo o jogo.

Suspirei. Carro parado sem música era sinônimo de chatice.

— Você quer um remédio? — olhei para Daniel e ele lançou os cinzazuis para mim. — Eu tenho na mochila.

— Quero — ele respondeu depois de pensar um pouco. — Você tem água?

— Eu tenho um resto de Pepsi — respondi enquanto tirava o cinto e me apoiava em meu assento para alcançar a mochila no banco traseiro.

Depois de Daniel tomar o remédio, o motorista do outro carro voltou. Daniel foi atrás dele antes que o homem tivesse tempo de entrar em seu carro, e, como de costume, se engajou em uma conversa confortável com ele. Eu fiquei apenas observando enquanto os dois soltavam fumaça pela boca no ar frio da noite enquanto trocavam frases, Daniel com o rosto iluminado pelas luzes de um letreiro de uma loja qualquer enquanto carregava aquele ar amistoso de sempre. Eu gostava tanto disso nele, essa facilidade em tratar até os estranhos como se já fossem amigos. Eu sempre quis ser uma pessoa assim, mas aquela simpatia toda não fazia parte da minha personalidade.

Depois de uma breve despedida – um toque no ombro e um aperto de mãos –, Daniel voltou para o carro, esfregando os braços por causa do frio.

— Ainda é março — ele disse meio emburrado, ligando o ar quente. — Não deveria estar tão frio assim.

— O que aconteceu? — ignorei o comentário sobre o tempo porque eu estava, acima de tudo, curioso sobre o trânsito. — O cara te disse alguma coisa?

— Foi um acidente — Daniel me olhou brevemente enquanto ajustava a temperatura do ar. — Com um caminhão e um carro, e a pista vai ficar praticamente parada até conseguirem tirar o caminhão de lá; por enquanto a fila tá andando bem devagar porque tá difícil de desviar.

Suspirei resignado, me livrando do aperto do cinto de segurança. Nem música eu podia escutar.

— Não tem nenhuma ruazinha de atalho? — perguntei, olhando para Daniel, que negou com a cabeça crispando os lábios.

A fila, então, andou mais alguns metros. Daniel tirou o freio de mão e seguiu o fluxo até parar outra vez. Houve mais três curtos avanços como aquele antes de eu me ajeitar no banco e perceber minha mochila jogada em meus pés; tinha ficado ali depois de eu pegar a cartela de remédios para Daniel.

Quando fui pegá-la para colocar de volta no banco de trás, não notei que estava aberta e acabei derrubando todo o conteúdo dela para fora.

— Merda — murmurei baixinho enquanto juntava o estojo, o caderno e alguns papéis com rascunhos de desenhos, me entortando entre o banco e o painel do carro.

Quando eu já ia fechar o zíper da mochila, Daniel me cutucou.

— Faltou aquele — ele apontou para os meus pés.

— Huh? — olhei para baixo, vendo que tinha pisado em cima de uma folha de papel dobrada de mau jeito.

Quando abri a folha para ver do que se tratava, me deparei com o questionário que a orientadora tinha dado na última terça-feira. Encarei Daniel, que também olhava para mim.

— Você ainda tá com dor de cabeça?

Ele soltou um riso anasalado e deu de ombros — Nós teríamos que fazer esse negócio uma hora ou outra, mesmo.

O carro andou mais um tanto enquanto eu tirava uma caneta do meu estojo e pegava o caderno para servir de base para a folha.

— Vou começar.

— Ok — Daniel disse indiferente.

— Primeira pergunta — falei, depois olhei pensativo para ele. — Na verdade, eu tenho uma pergunta antes da primeira pergunta.

Daniel riu. — Eu achei que as perguntas pessoais viriam depois do questionário, ou pelo menos durante.

Revirei os olhos. — Como se eu estivesse ansioso por isso.

Daniel sorriu e piscou para mim, me obrigando a desviar o olhar para folha de papel, envergonhado.

— Você acha mesmo que a Wanda vai notar que nós não estamos fazendo isso do jeito que ela pediu? — perguntei, por fim. — Com aquela coisa toda de observação?

— Como ela descobriria algo assim? — ele disse com o cenho franzido, sua expressão reduzindo a importância da tarefa de Wanda. — Ela só disse que perceberia alguma trapaça pra nos meter medo.

— Se você acha... — dei de ombros, cutucando meus lábios com a caneta. — Qual a impressão que você causa nas pessoas?

— Todos gostam de mim — Daniel brincou com as sobrancelhas, me lançando um sorriso.

— Eu não gostei de você de primeira — protestei. — Nem de segunda.

— Mas depois acabou me beijando.

— Próxima pergunta — falei, sentindo meu pescoço esquentar, ouvindo a risada zombeteira de Daniel enquanto anotava qualquer resposta no lugar da primeira questão. — A diferença entre a primeira impressão e como realmente você é.

Daniel olhou para mim, pensativo.

— Sabe — comecei a falar quando percebi que ele não responderia tão rapidamente. —, acho que não tem diferença; você é muito sincero... Não tem diferença entre o que você é e o que você mostra ser.

— Acho que você tá certo — Daniel deu de ombros. — Nunca tinha parado pra pensar nisso, na verdade.

— Isso só prova que você é a mesma pessoa sempre e pra todo mundo — declarei. — Você não se preocupa em parecer uma coisa que você não é.

— Você faz isso — ele me encarou. — Você se esconde um pouco, não se esconde?

— Você acha? — perguntei, sentindo um frio repentino no estômago; mesmo que eu estivesse perguntando, já tinha certeza que eu era assim.

— Acho — Daniel afirmou, depois pigarreou como se estivesse se preparando para tentar completar da melhor forma. — No começo das aulas, mesmo estando com o seu pessoal, você não ria muito, não falava muito, nem se mexia como uma pessoa normal; ficava quietinho no seu canto — ele piscou suavemente e sorriu de leve, controlando o volante com os olhos na estrada. — E depois os dias foram passando e agora quem mais ri é você, e aqueles meninos parecem que gostam do seu jeito. Principalmente aquele Vitor — Daniel me encarou. — Ele é gay?

— Ah, hã — desviei os olhos para o porta-luvas. — Eu não sei, acho que não.

— De qualquer forma, parece que você tem medo de mostrar quem você é, sabe; pelo menos no começo.

— Você tem razão — torci os lábios, olhando as luzes dos carros a frente.

— Acho que foi por isso que nós nos demos mal logo de cara — Daniel colou na traseira do carro da frente, freou e, em seguida, olhou para mim. — Você sequer deu uma chance.

Eu queria falar que estava assustado com o fato de ele ter surgido na minha vida tão repentinamente, mas não era como se eu já tivesse superado isso, e eu não queria admitir algo assim para ele. Principalmente porque Daniel fazia parecer, com todo o sentindo do mundo, que a culpa de eu sofrer por causa dele era toda minha.

— Será que teria feito alguma diferença? — questionei. — Nós somos muito diferentes, e nada pode mudar isso.

Daniel deu de ombros e ficou quieto; suspirei e olhei para o questionário.

— A próxima pergunta é: o que te irrita?

— O Luca — Daniel respondeu sério. —, ele se parece com um garotinho de sete anos que não quer sair do quarto e acha que o mundo deveria ser um lugar bonito.

— Isso porque o Daniel é muito mais irritante, fica trazendo gente estranha pra casa e batendo em garotos inocentes; O Luca não pode nem tomar banho em paz porque o Daniel fica batendo na porta do banheiro o tempo todo.

Daniel me lançou um olhar sério, mas depois deu risada. — Nós deveríamos provocar um ao outro sempre em terceira pessoa, parece menos e pessoal e fica engraçado.

— Mas se eu quiser te provocar eu não vou fazer isso tentando ser engraçado — revirei os olhos e suspirei. — E você não respondeu direito ainda; o que te deixa irritado? Eu não posso colocar “eu”, porque, na verdade, é você quem tem que colocar essa resposta no questionário sobre mim; combina mais com você.

Daniel riu. — É verdade.

Então continuei entrevistando Daniel conforme o trânsito caminhava devagar. As perguntas, por mais respeitáveis que tivessem a intenção de ser, estavam sendo divertidas porque Daniel não levava a sério quase nenhuma delas. Enquanto eu respondia e perguntava, notei que sabia muito mais sobre Daniel do que realmente achava que sabia, e, incrivelmente, ele parecia igualmente conhecer sobre mim tanto quanto eu mesmo. No fim das contas eu reparei que já tinha observado certas coisas sobre ele que, se não fossem pelas perguntas “bobas” de Wanda, eu jamais notaria. Como o fato de que a cor preferida dele também era azul, afinal quase tudo o que ele comprava era dessa cor. E essa foi a única coisa que encontramos em comum um com o outro.

Já estávamos há meia hora no trânsito, o caminhão tombado na pista já fazia parte do nosso campo de visão, quando cheguei à última questão, que era tão simples quanto o restante: sobre nossos hábitos e manias.

— Eu não tenho certeza, nós não passamos muito tempo juntos... — falei pensativo.

— Eu não reparo nas minhas próprias manias — Daniel, pela centésima vez naquela última meia hora, encostou o carro perto da traseira do outro e parou, olhando para mim.

Àquela altura do caminho eu já estava cansado demais para pensar muito sobre as perguntas e muito menos sobre as respostas. Meus olhos piscavam cada vez mais preguiçosos e tudo o que me mantinha acordado eram as coisas que Daniel dizia que me faziam rir.

— Não durma — Daniel pediu.

— Tô cansado — repliquei.

— Te deixo dormir depois de respondermos a última, então.

Suspirei. Parecia justo para mim.

— Você gosta de bagunçar o cabelo dos outros — falei, olhando o guincho chegando lá fora para resgatar o caminhão. — Pelo menos você bagunça muito o meu — olhei para minha janela, mas não consegui enxergar muita coisa através dela porque o vidro estava embaçado; comecei a desenhar estrelas com o dedo. — E você também tem o hábito nojento de limpar a mão suja de gordura nas roupas — ouvi Daniel soltar uma risada e sorri também. — E tem o seu sorriso de canto, é extremamente irritante a quantidade de vezes que você pode repetir esse mesmo sorriso durante o dia... Mas geralmente você sorri bastante, eu percebo; não muito quando tá comigo, mas é um hábito bonito, de qualquer forma.

Parei com os desenhos no vidro e olhei para Daniel. Ele me encarava com um sorriso quase imperceptível, ao mesmo tempo em que parecia sério, como se eu ainda estivesse falando e ele, concentrado, me ouvindo. Mas apenas estávamos olhando um para o outro, e, apesar de que ler a expressão de Daniel continuava sendo uma tarefa difícil, eu me sentia muito aconchegado pelos intensos cinzazuis me encarando naquele momento.

Foi só então que eu notei como a sensação de estar ali com Daniel era aconchegante. Estava frio lá fora, e ter consciência disso, dentro do carro quente, era gostoso. As luzes vermelhas dos freios dos outros carros se refletiam no rosto de Daniel, fazendo com que sua pele se iluminasse de um jeito diferente e bonito; ele era bonito.

— Sua vez — eu disse em voz baixa, quase sem som nenhum; eu não tive certeza se estava falando sobre a última pergunta, ou se, na verdade, aquelas palavras eram um pedido disfarçado para que ele fizesse alguma coisa, qualquer coisa, chegasse mais perto de mim.

Então, como se pudesse ler meus pensamentos, Daniel nada disse, apenas se aproximou, o olhar alternando entre meus olhos e minha boca. Eu pude sentir seu cheiro outra vez, noz-moscada e caramelo.

Daniel ajeitou meus cabelos atrás das orelhas delicadamente, como se realmente gostasse de me tocar, e tudo o que eu conseguia fazer era observar os detalhes do rosto enquanto sentia todo meu corpo alerta, até os dedos dos meus pés encolhidos dentro dos tênis.

Nossos narizes quando esbarraram um no outro me causaram uma euforia ansiosa. O cheiro dele estava tão doce, e tudo parecia certo.

Quando Daniel segurou meus cabelos com firmeza e eu soube que iríamos nos beijar, uma buzina demoradamente alta soou vinda do carro de trás.

Daniel se afastou, olhando um pouco avoado para mim durante alguns segundos. Quando a buzina soou outra vez, ele olhou para frente, e eu fiz o mesmo, notando que a fila já tinha andado mais um bom tanto.

Daniel me encarou novamente, e, com um suspiro irritado, saiu de perto de mim, conduzindo o carro para frente.

Eu não soube direito o que pensar. Eu me sentia, acima de tudo, envergonhado. Não saberia dizer se era pior a vergonha de depois de um beijo ou a vergonha de depois de um quase-beijo. De qualquer forma, apenas deixei meu corpo escorregar pelo banco e cruzei os braços, encarando a janela e as estrelas que eu havia desenhado no vidro embaçado, e através delas as poucas estrelas visíveis no céu.

Daniel não disse mais nada, ficou quieto durante um bom tempo até decidir ligar o rádio. Eu deixei minha cabeça encostada contra a janela fechada enquanto deixava a música acalmar meu coração, que insistiu em ficar batendo agitado durante muito tempo. Quando finalmente ultrapassamos o caminhão caído na pista e o trânsito voltou ao normal, o balanço suave do carro me acalmou e me deixou sonolento outra vez.

Mesmo que eu soubesse que já estávamos perto de casa, fechei meus olhos e me deixei adormecer. E, querendo ou não, eu soube que estava feliz por Daniel ter sentindo vontade de me beijar outra vez.


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Notas finais do capítulo

Sobre o mascote ave-do-paraíso do time do Apus: eu não inventei, as informações eu tirei da internet; achei legal nomear o colégio com o nome de uma constelação, e, segundo o estado mental da diretora, achei que toda essa história de "sem-pé" ficou interessante ;)
Outra coisa: minha amiga desenhista ficou livre pra falar sobre o desenho do Luca e do Daniel, então em breve (quem sabe no próximo capítulo) eu disponibilizo o link pra vocês!
Até o próximo ;)