Além de Irmandade escrita por Dricca


Capítulo 8
Minha orientação


Notas iniciais do capítulo

Olá, pessoal! Gostaria de agradecer imensamente as recomendações que recebi do Sai e da seif! Eu fiquei toda saltitante depois de ler o que vocês escreveram, muito obrigada mesmo!
É isso, espero que gostem!



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Eu estava muito concentrado. Quer dizer, eu estava me esforçando, pelo menos. Tentava seguir o raciocínio rápido do professor e prestava atenção nos seus escritos de giz no quadro enquanto acompanhava tudo pela apostila e, além disso, fazia anotações nos post-it cor-de-rosa que a Madu havia tirado do seu próprio arco-íris de post-it e me emprestado (não que eu fosse devolvê-los). Eu pensei em protestar sobre a cor, mas seria um afrontamento a gentileza dela de já ter doado uma dezena deles para mim. E, também, eu estava muito concentrado na tarefa de me concentrar para reclamar daquela inundação cor-de-rosa, afinal eu queria anular o mais rápido possível o meu atraso nos conteúdos.

Mas eu não estava todo focado assim por pura e simples devoção aos estudos; geralmente eu apenas tratava de prestar a atenção e rabiscava a lápis qualquer informação que eu achasse mais importante, e, para mim, isso já bastava. Porém, nesse dia, eu estava usando os estudos na tentativa de ignorar o mundo a minha volta, esquecer que um certo vídeo de eu caindo na praça de alimentação do shopping tinha se espalhado pelos celulares do Apus e para qualquer ser vivente com acesso a internet, graças a presença ilustre de Daniel na cena, só porque era famoso por ser youtuber. O vídeo já estava circulando pelas redes sociais, e as pessoas estavam, basicamente, rindo de mim enquanto vangloriavam Daniel por ter sido o herói que foi me tirar da lama, ou melhor, das poças de refrigerante. E eu estava com tanta raiva. Era absurdo como Daniel conseguia me dar nos nervos até indiretamente; por causa dele todo mundo tinha visto meu tombo magnífico, e eu não sabia muito bem como lidar com a vergonha que isso gerava em mim. Vergonha, aliás, era algo que Daniel estava constantemente me dando a honra de sentir.

Foi Nando quem me mostrou o vídeo e me colocou por dentro do assunto logo depois de eu chegar afobado em nossa sala de aula, quase me sentindo um foragido, porque eu tive a leve impressão, durante a minha dura caminhada até ali, de que as pessoas estavam me encarando e rindo. E isso tinha sido torturante ao ponto de me fazer começar correr para chegar à sala.

Quando comecei a me lamentar, expressando o quanto eu pensava que aquilo não poderia ser pior, Nando disse que eu deveria cogitar o fato de que alguém poderia mandar o vídeo do meu tombo para esses quadros de televisão que mostram as pessoas caindo e se ferrando. Nando era realmente um ótimo consolador.

E o desânimo batia em meu peito quando eu me lembrava de que aquela aula era apenas a segunda. Eu ainda teria que enfrentar mais quatro aulas antes de conseguir ir me refugiar em casa, além, é claro, do intervalo, que nunca tivera sido tão temerosamente aguardado por mim. Eu me sentia num daqueles clímax de filme de terror, em que o intervalo das aulas só poderia trazer a morte certa para minha dignidade.

Mas, de qualquer forma, o esforço para me concentrar foi interrompido quando um chiado estridente e agudo inundou a sala, cobrindo o som da voz do professor. Pulei na cadeira por causa do susto, assim como muitas pessoas ali. Era um daqueles barulhos de microfone quando entram em interferência. Soou tão alto que não notei quando escorreguei a caneta para fora do post-it, fazendo uma linha de tinta preta pela folha da apostila. Olhei para a frase inacabada: “o romantismo é caracterizado pela liber” com o “r” puxando uma linha infinita de caneta.

Olhei para cabeleira castanha da Madu em minha frente, depois olhei ao redor e vi as pessoas reclamando do barulho, pressionando os ouvidos e olhando com raiva para a caixa de som que ficava exatamente em cima da porta da sala de aula. A caixinha soltava alguns chiados baixos no momento, e eu me questionei se aquilo acontecia cada vez que usavam o microfone. Então ouvi quem parecia ser a coordenadora pigarrear, e todos se calaram para ouvir o que ela tinha para falar.

— Atenção: o aluno Luca de Melo, segundo B, é solicitado à diretoria — pisquei aturdido. ­— Luca de Melo compareça à diretoria, por gentileza.

Ela repetiu mais uma vez o meu nome e minha classe enquanto eu sentia todos os olhares sobre mim.

— Ih, nem bem chegou e já tá causando? — um garoto no fundo da sala tirou sarro, fazendo grande parte da turma rir.

— O que você fez? — Nando me perguntou, como se eu soubesse, e como se eu pudesse conversar com naturalidade com ele, que estava do outro lado da sala de aula, naquele silêncio todo.

Olhei para os lados. Talvez fosse até bom responder Nando, para deixar claro que eu era inocente, fosse qual fosse o motivo.

— Não fiz nada — respondi em voz alta para que todos pudessem escutar, enquanto levantava e arrancava o blazer do uniforme (vergonha me dava calor). — Deve ser algum documento da matrícula que ficou faltando — me coloquei no caminho para sair da sala, olhando firme para aquele garoto chato do fundão — Licença, professor.

O professor assentiu e eu dei as costas para a turma, caminhando até a porta.

— Cuidado pra não cair! — alguém disse, provavelmente aquele mesmo imbecil de antes, causando mais uma onda de risos.

Eu quis virar para ele e mostrar o dedo do meio, mandar ele se foder, ou xingá-lo de alguma forma. Mas o professor estava em sala, e, além disso, revidar para mim nunca pareceu ser algo muito educado ou que fosse surtir algum efeito. Ignorar sempre era superior, e foi o que eu fiz.

Quando saí da sala, me deparei com os corredores vazios e silenciosos. Tudo o que se ouvia eram as vozes dos professores explicando suas matérias, abafadas pelas paredes e janelas, quase inaudíveis. Enquanto eu caminhava, me senti meio perdido, já que eu nunca tinha ido até a diretoria. Tudo o que eu conhecia naquela escola se resumia em: minha sala de aula, lanchonete, a quadra (das aulas de educação física), e a secretaria. Parecia suficiente, mesmo que eu me sentisse curioso sobre a biblioteca, a sala de vídeo ou o laboratório, por exemplo. Mas eu simplesmente não tinha arranjado tempo ou motivos para explorar o resto dos lugares do Apus.

Quando achei a diretoria, depois de perguntar sobre isso para um senhorzinho que aparentemente era o zelador, olhei nervoso para a plaquinha de metal presa na porta que indicava o lugar. Eu tinha dito ao Nando que me chamarem até ali não era nada demais, mas a diretoria nunca era nada demais. Se tivesse mesmo alguma relação com documentos, o lugar para isso seria a secretaria, e não a diretoria em horário de aulas. E eu, sem ideias, odiava não saber o porquê de eu precisar estar ali.

Dei dois toques na porta de madeira com o nó dos dedos e, em seguida, girei a maçaneta, adentrando a sala.

Assim que olhei para o indivíduo que estava lá dentro, ocupando uma das poltronas em frente à mesa da diretora, me senti burro por não ter relacionado qualquer possível problema a ele.

Daniel estava sentado, ou melhor, esparramado na poltrona marrom, e quando me percebeu entrando, olhou para mim por dois segundos e depois decidiu que era mais interessante limpar as unhas da mão.

Olhei então para a mulher detrás da mesa de madeira, pedindo sua licença para entrar, e fechei a porta atrás de mim sem tirar os olhos dela. Era a primeira vez que eu a via, e estava sentindo no ar que não era para receber um cumprimento de boas vindas ao Apus.

— Luca — ela disse séria, como se fosse um cumprimento, depois apontou à poltrona simples de couro desocupada ao lado de Daniel. — Pode se sentar.

Sentei-me nervoso e encarei os olhos escuros da diretora por trás das lentes dos óculos. Ela era toda séria e carrancuda, e a cara de malvada se emoldurava pela raiz grisalha do cabelo, bastante evidente por causa do coque bem puxado. Olhei para a plaquinha de metal posta sobre a mesa, cujas inscrições eram as letras do seu nome: Eva Martin.

Eva não disse nada por um bom tempo, apenas encarava Daniel e a mim por cima da armação dos óculos, como se estivesse esperando alguma coisa de nós. Olhei para Daniel, esperando que ele me explicasse algo, já que a diretora não tinha se pronunciado. Ele apenas deu de ombros, com uma expressão que eu não consegui decidir se parecia significar “também não faço ideia do que está acontecendo” ou “fazer o quê se fiz merda?”.

Aquele suspense estava me sufocando.

— Você mandou me chamar, diretora? — comecei abordando pelo óbvio. — Tem algum problema? — perguntei inocente e curioso.

Ela nos observou por mais alguns segundos antes de falar.

— Bom, já que não sabem, vou explicar — ela parecia brava, como se fosse nossa obrigação saber por que estávamos ali. — Quem sabe algum de vocês refresque a memória...

Franzi o cenho e olhei carrancudo para Daniel. Tentei ver se em suas expressões eu encontrava algum indício de culpa ou algo que provasse que ele havia aprontado alguma. Mas era o mesmo que o olhar para uma foto, ele não tirava aquela expressão de superioridade indiferente da cara. Irritante.

Voltei a olhar para a diretora, que tinha os dedos das mãos encaixados uns nos outros por sobre a mesa de madeira.

— Um dos alunos do nono ano veio fazer uma reclamação muito séria, sobre ter sido humilhado em frente aos colegas por um garoto maior de capuz que ele nunca tinha visto na escola — a diretora crispou os lábios, como se apenas falar sobre isso a irritasse profundamente. — Deduzi que, por “aluno que ele nunca tinha visto”, só pode ser um de vocês, já que são os únicos que entraram no colégio para as turmas de ensino médio.

Arregalei os olhos. — Não fui eu, diretora!

— Como você pode ter tanta certeza que é um de nós? — Daniel falava com Eva, que respondia ao seu olhar, ultrajada. — Só porque o moleque disse que nunca viu o garoto, não quer dizer que necessariamente quem ele viu é novo na escola; já pensou que ele pode não ter memória suficiente pra saber de cor a cara de cada um nesse lugar, assim como qualquer pessoa normal?

A mulher pareceu ponderar sobre o assunto. Eu precisei admitir que Daniel era mesmo bom com argumentação, ele se daria bem nas aulas de produção de texto.

— O aluno em questão estuda aqui desde o jardim de infância — ela retrucou. — Imagino que ele saiba reconhecer os colegas.

— Aposto que nem você sabe reconhecer todos os alunos. — Daniel disse seco.

A diretora fechou as mãos em punhos por cima da mesa, mostrando sua impaciência, e olhou com puro ódio para Daniel. Eu me encolhi na poltrona, assustado com toda hostilidade palpável daquele ambiente. Eu deveria estar na aula de literatura naquele momento, droga, não no meio daquela guerra cruzada. Se Daniel não tinha feito nada, bastava dizer a verdade e parar de provocar a diretora, oras.

E foi aí que eu me toquei: o único motivo lógico para Daniel estar respondendo a diretora daquele jeito era que ele realmente podia ter maltratado do garoto do nono ano. E agora ele só estava dando uma de espertinho, tentando escapar da confusão que ele mesmo tinha armado.

— Eu sugiro que você trate seus superiores com mais respeito, Daniel — a diretora disse, quase rangia os dentes de irritação.

— E eu sugiro que você não faça acusações sem provas — ele respondeu.

Ah, merda.

Superei resignado, pronto para ouvir o sermão da minha vida, sendo que eu nem tinha culpa de nada, estava ali de por motivos óbvios de: Daniel em minha vida.

— Muito bem, achei que pudesse ouvir a verdade de vocês sem precisar apelar para as gravações das câmeras de segurança, mas parece que vou ter que fazer isso.

— Mas eu disse a verdade... — falei baixo, mesmo que soubesse que ninguém estava prestando atenção em mim.

Daniel levantou-se depressa, espalhando seu perfume pelo ar. — Ótimo, dê uma olhada nas gravações e depois pode mandar me chamar se minha cara estiver nelas.

Acompanhei Daniel com o olhar, temeroso, enquanto ele caminhava despreocupado até a porta. Ele não podia sair assim da sala da diretora, podia? Entretanto, antes que ele alcançasse a porta, Eva se pronunciou:

— Eu já vi as gravações.

Daniel estagnou, ainda de costas para nós, enquanto a diretora virava a tela do seu computador em nossa direção com um sorriso de canto.

Arregalei os olhos.

Na tela estava a imagem congelada do rosto de Daniel semiescondido pelo capuz do moletom do uniforme. Era em preto e branco, a qualidade não era das melhores, e tinha aquele capuz escondendo os cabelos e a testa. Mas mesmo assim dava para ver que era mesmo ele.

— Por acaso esta é a sua cara?— perguntou com sarcasmo a diretora, com um sorriso de canto maligno.

Daniel, sem nada mais a fazer depois de se deparar com as provas concretas do seu ato de bullying, bufou e virou os calcanhares, sentando-se novamente na poltrona marrom.

Eva voltou o vídeo, e deu play do início. Enquanto víamos as cenas, ela cruzou os braços e recostou-se em sua poltrona, direcionando-nos seus olhar assustadoramente analítico.

No vídeo o garoto mais novo conversava normalmente com Daniel, os amigos dele mais atrás. De repente Daniel dá um empurrão no coitado, fazendo-o cair no chão enquanto parecia chocado ao ouvir mais algumas coisas de Daniel, que logo depois sai com o grupo de marmanjos do time de futebol do terceiro ano, rindo, como se ter humilhado o pobre garoto tivesse sido divertido. Era tão cena clichê de bullying que eu me questionei se estava mesmo vendo gravações de segurança ou um filme dos anos dois mil, estrelado por Daniel.

Quando o vídeo chegou ao fim, olhei para o idiota ao meu lado.

— Não acredito que você derrubou o coitado no chão — falei, exasperado. — O que o menino fez pra você?

— Foi só um empurrãozinho... — ele respondeu indiferente. — Ele ficou insistindo pra poder entrar na festa, mas eu é que não ia convidar o moleque.

— Mas não precisava fazer aquilo — declarei. — Você não pensou que podia traumatizar o menino, não?

— Pra falar a verdade, não.

— Você é um imprestável.

— Para de ser dramático, Luca — ele bufou impaciente, fazendo minha raiva crescer.

— Não tô sendo dramático, merda! — retruquei. — Você tá convidando todo mundo pra essa festa idiota, custava deixar o moleque ir também? Tomara que você se ferre e que essa festa seja um fracasso.

Eu senti muito por ter dito aquilo um segundo depois que as palavras saíram, porque Daniel e eu estávamos, até hoje mais cedo, num clima aceitável. E falando isso, eu parecia estar quebrando tudo outra vez. Mas eu não podia aceitar uma atitude dessas, era ridículo.

Daniel me encarou raivoso.

— A única coisa que vai ficar um fracasso é sua cara depois de eu te socar, se você não largar de ser irritante — Daniel estava irado. — Não suporto esse seu jeito de querer parecer o justiceiro; você nem conhece o moleque e fica querendo me dar lição de moral ainda por cima.

— Não importa se eu conheço ou não, só não acho que ninguém merece ser tratado assim.

Daniel estreitou os olhos para mim e se apoiou no braço da própria poltrona, aproximando o rosto do meu.

— Por que me parece tão óbvio que você já foi um desses moleques que eram empurrados pelos corredores da escola, hã? — um sorriso maldoso se formou em seus lábios. — Faz sentido toda essa preocupação com um zé-ninguém desconhecido: você sempre foi um, não é? E agora que tem a oportunidade, tenta defender os coitados... Se enxerga, nanico.

Engoli em seco, aterrorizado com a maldade de Daniel. Ele tinha razão, eu sempre fora um dos excluídos em todas as escolas que frequentei. Não a ponto de ser atirado no chão como Daniel havia feito com aquele garoto do vídeo, ainda bem, mas eu realmente era alguém deslocado. Sempre fui muito retraído – pelo menos até fazer alguns amigos no ano passado – e às vezes chegava a pensar que ter tido um pai que não tinha muito espaço na agenda para conversar comigo tenha influenciado no fato de eu não conseguir conversar também. E Daniel foi esperto o bastante para perceber, ler através das minhas atitudes. O odiei por isso. Queria socá-lo e esmagar a cara dele com sola do meu tênis. Ele sabia como mexer comigo.

Respirei fundo e olhei para Eva, que estivera nos ouvindo sem interromper a discussão. Achei completamente estranho: como diretora ela deveria estar tomando alguma atitude. Talvez ela fosse tão cobra quanto Daniel. Quem sabe ela até gostaria que nós dois saíssemos no tapa só para poder nos suspender, ou sei lá. E pensando nessa atitude esquisita dela, foi que notei que tinha algo muito mais esquisito naquela história toda, e me sobressaltei na poltrona, agitado.

— Por que você me trouxe aqui, diretora? Se você viu que era o Daniel nas gravações antes mesmo de me mandar chamar...

Ela deu mais um de seus sorrisos de canto, era tão rápido e discreto que eu cogitei ser um tique nervoso, e não uma ação espontânea.

— Queria testar até onde Daniel iria — ela respondeu. — Ele é um aluno novo que já chegou causando problemas, precisei fazê-lo acreditar que não tinha certeza se era ele mesmo quem tinha feito aquilo, para analisar se seria necessário ficar de olho nele ou se ele assumiria os próprios atos inconsequentes. Foi um plano para descobrir o caráter dele.

— Ah, Sherlock — Daniel revirou os olhos.

Eu me senti um pouco desconfortável com a esquisitice daquela diretora. Ela deveria ter passado por algum teste psicológico antes de assumir o papel de maior autoridade daquele colégio.

— Agora que você descobriu que vai precisar por seus seguranças atrás do Daniel, será que eu posso ir? — pedi impaciente, e, por consequência, meio mal educado. — Tô perdendo a aula de literatura.

— Ainda não, Luca — Eva disse, para o meu desagrado. — Notei que você e Daniel têm um grande potencial para brigas, e como eu prezo pela paz entre os alunos deste colégio, tenho um trato a fazer com vocês sobre o que aconteceu.

— Diretora Eva, com todo o respeito, você não tem trato nenhum pra fazer comigo, não fui eu quem empurrou um menino inocente no chão — apontei para Daniel. — Foi ele! Faça o trato com ele!

— Não posso ignorar os acontecimentos, meninos — Eva declarou confiante; ela devia achar o máximo ser a diretora. — Vejo que vocês podem causar problemas piores do que o de hoje. É preciso tratar desse problema com antecedência, para que mais tarde isso não se agrave.

— Caramba, não fale como se estivéssemos com câncer — Daniel fazia careta. — Não tem nada pra ser tratado aqui.

— E eu não tive nada a ver com o problema do menino do nono ano! — acrescentei.

— Vocês entenderam o que eu disse — ela nos encarou por cima da armação, aquela expressão demoníaca. — Daniel não se importa em fazer uso de mentiras para salvar a própria pele, e Luca, apesar de não ter relação com o assunto, mostrou que não sabe medir as palavras ou ficar em silêncio quando é necessário — Eva ajustou os óculos no nariz com um suspiro. — Precisam moldar suas personalidades, se tronar pessoas melhores para a sociedade. Eu prezo muito isso neste colégio, e procuro dar a devida atenção a cada aluno que necessita. Nós podemos resolver o problema entre vocês, meninos.

Ela realmente estava dizendo que eu não sabia a hora certa para calar a boca. Legal.

— A única forma de resolver nosso problema, diretora — Daniel disse agressivo. —, é nos mantendo bem longe um do outro.

Pelo visto, o surto de gentileza de Daniel do dia anterior passou bem depressa. Eu sabia que tinha provocado Daniel, no fim das contas, falando sobre injustiça e tudo o mais. Mas talvez nos manter longe um do outro realmente fosse a única maneira de manter a paz.

— Vejam bem — ela disse controlada. —, tenho duas opções para vocês.

Vocês, vocês, vocês! Eu não tinha nada a ver com aquilo! Esse “vocês” deveria estar no singular.

— Primeira: — Eva anunciou. — eu convoco os pais de vocês para uma reunião sobre esse problema de hoje e também sobre o comportamento dos dois, e nenhuma punição é aplicada diretamente a vocês, apenas a suspensão fixa de um dia que terei de dar ao Daniel.

Ela olhou para nós dois, provavelmente saboreando nossas expressões de desespero. Meu pai nunca precisou ir a nenhuma das minhas escolas por mau comportamento meu, nem por nenhum outro motivo. Eu não queria envolvê-lo nisso, e queria que minha ficha continuasse limpa. E certamente Daniel não queria envolver Amora também, ou perder a oportunidade de dar a festa, porque obviamente ligariam para nossos pais logo nesse mesmo dia, e, se eu conhecesse bem o meu pai, ele, com toda a certeza, mandaria minha tia Helen para tomar conta de mim e de Daniel. E a tia Helen não era a melhor pessoa para se ficar junto por mais que uma tarde. Ela me mandaria acordar mais cedo para me exercitar e me faria ajudar a plantar alguma árvore no quintal. Eu adorava a tia Helen, mas não para passar tanto tempo junto comigo.

— A segunda opção não inclui a reunião com os pais de vocês — quase pude ouvir Daniel suspirar aliviado ao meu lado. — Mas implica em outras punições, além, é claro, da suspensão de Daniel que não pode ser substituída por nenhuma outra tarefa.

— Que punições? — perguntei.

— Vocês terão que fazer serviço voluntário para o colégio, além de sessões com a nossa orientadora psicológica, para que o problema entre vocês possa ser tratado com a devida atenção.

— Serviço voluntário? — Daniel se pronunciou um tanto alarmado.

— Algumas professoras precisam de ajudantes com os alunos do jardim de infância no período da tarde — Eva explicou. — E algumas funcionárias que cuidam da parte da limpeza precisam de ajuda com a bagunça que os alunos deixam após o intervalo.

— Isso é permitido, você nos obrigar a catar lixo? — Daniel perguntou. — Não dá pra simplesmente cuidar das crianças?

— Será que eu posso escolher catar lixo em vez de fazer essas sessões com o Daniel? — questionei.

Daniel me olhou ofendido por eu preferir lixo a ele. Mas eu realmente não queria fazer sessões psicológicas com ele. Eu já podia imaginar eu tendo que me expor para a orientadora desconhecida enquanto Daniel ria de mim ao lado.

A diretora Eva nos olhou com desgosto, depois suspirou.

— Se fizerem as sessões posso liberar vocês da limpeza.

— Eu aceito limpar o lixo se eu não precisar dessas sessões! — olhei pidonho para ela. — Por favor, diretora!

— Seu pedido apenas comprova o quanto vocês realmente precisam falar com a orientadora — ela declarou decidida. — E isso encerra o assunto, a menos que vocês prefiram a primeira proposta que fiz.

— Não! — Daniel disse depressa. — Criancinhas, orientadora, sem lixo... Assim tá bom.

Então ele me encarou, e eu entendi que se eu fosse contra a segunda opção ele arrebentaria minha cara. Eu dei de ombros, afinal não queria mesmo a primeira opção, não queria que chamassem meu pai ao colégio, mesmo que eu não tivesse nada a ver com aquilo. E, além disso, ter tia Helen em casa por duas semanas e meia não seria muito agradável. Afinal Daniel geralmente ficava em seu próprio quarto ou saía com alguém, sem perturbar minha paz (na medida do possível), e Helen me faria andar para lá e para cá para atender suas vontades estranhas.

Então ficamos com a segunda opção, cada um por seus motivos.

A diretora Eva nos disse onde ficava a sala da orientadora e nos mandou ir diretamente para lá, porque não compensava mais voltar para aula porque só faltam dez minutos para que ela acabasse, e nós poderíamos usar esses dez minutos livres para agendar os horários das sessões.

Daniel levou a suspensão de um dia, como a diretora havia dito. Isso me ajudou a perceber o quanto aquele colégio era rígido em relação ao comportamento dos alunos, e mesmo que eu nunca tenha precisado me importar com esse tipo de coisa, fiz uma nota mental para não chegar perto de nenhuma possível encrenca. Não que isso pudesse evitar de eu parar aleatoriamente na sala da diretora como tinha de fato acontecido. Daniel realmente não trouxe sorte para minha vida.

Daniel e eu caminhamos até a orientadora em silêncio. Quando chegamos lá, foi ele quem bateu na porta por primeiro, mas quando foi entrar, parou e fez sinal indicando que eu podia passar na sua frente. Franzi o cenho com a repentina gentileza e entrei na sala, ouvindo Daniel fechar a porta atrás de nós.

A orientadora era uma mulher de cabelos cheios e encaracolados e de pele morena. Quando nos encarou para um cumprimento breve, notei seus grandes olhos cor de mel quase dourados, que passavam aquele tipo de confiança acolhedora. Talvez, se eu estivesse ali não por obrigação, eu pudesse me sentir realmente a vontade perto dela.

— Faz tempo que não recebo uma dupla — disse ela com um sorriso logo após de nos cumprimentar. — Podem se sentar, meninos.

Daniel e eu, aparentemente, escolhemos a mesma poltrona para sentar, e quase que acabei sentando no colo dele, não fosse a força com que batemos um no outro no intuito de nos jogarmos na poltrona. Depois de nos esbarrarmos, ele olhou com cara feia para mim e eu revirei os olhos, me contentando com o outro assento.

A orientadora parecia estar prestando muita atenção, e eu me sentia meio exposto, afinal esse tipo de pessoa sabe fazer essas leituras corporais e eu não gostava nem um pouco que tentassem me entender através de gestos ou falas, era desconfortável.

— E então, meninos — disse ela depois que Daniel e eu nos acomodamos nas poltronas. — Por que estão aqui?

Daniel, então, explicou as condições da diretora e o motivo de ela ter me envolvido na história. Disse que estávamos ali para agendar horários e ela logo caçou a agenda dela e nos agendou para todas as terças e quintas depois da aula, e disse que conversaria com Eva para estipular até quando faríamos as sessões, mas que provavelmente seria até quando o tratamento que ela já tinha pronto para “nosso tipo de problema” chegasse ao fim.

Quando estávamos prestes a sair, já que o sinal estava anunciando a próxima aula, ela pediu que esperássemos mais um segundo, e foi buscar alguma coisa em uma das gavetas de sua mesa.

— Eu normalmente entrego essas fichas apenas no primeiro dia de consulta — ela nos entregou dois papéis, um para cada. — Mas eu vejo o quanto vocês querem adiantar o final disso, e eu sei o quanto a diretora Eva pode ser exagerada... Então vocês podem me trazer a ficha respondida na quinta-feira para agilizar as coisas — ela sorriu para nós. — Acham que conseguem responder até lá?

Olhei para as perguntas. Havia questões como “cor preferida”, “comida preferida” e todo o tipo de pergunta boba e fácil de responder.

— Não parece muito difícil — Daniel disse, analisando a ficha em sua mão.

— Ah, sim, eu me esqueci de mencionar que essas perguntas não são sobre vocês mesmos, mas sobre seu colega de sessões — informou ela. — ou seja, Luca responde sobre Daniel, e Daniel sobre Luca.

Encarei Daniel, preocupado. Eu não queria gastar uma tarde da minha vida fazendo um questionário infantil sobre Daniel e suas coisas preferidas.

— E tem mais um detalhe — a orientadora anunciou com um sorriso; eu realmente estava ficando nervoso com aqueles sorrisos, como se ele estivesse planejando algo muito grande para fazer comigo e com Daniel. — Não é permitido que vocês simplesmente perguntem um ao outro; vocês devem responder o questionário a partir de observação.

— Eu acho que não consigo até quinta-feira — Daniel disse com o semblante quase apavorado; a minha expressão não deveria estar muito diferente da dele.

— Então isso fica para próxima terça-feira — ela decidiu. — Mas não se esqueçam de que vocês precisam vir de qualquer forma na quinta, para a primeira consulta.

— Certo... — Daniel olhava do papel para mim, parecendo desgostoso com tudo aquilo.

— Agora vão pra aula, antes que se atrasem! — ela nos empurrou delicadamente para fora. — Até quinta-feira, meninos! E não trapaceiem no questionário, eu sempre sei quando meus pacientes estão mentido. Vamos ser honestos e acabar logo com isso, é o que vocês querem, não é, meninos?

Apenas assentimos e, depois de ela fechar a porta a nossa frente, olhamos um para o outro. Daniel estava com as mãos nos bolsos, tinha enfiado a ficha num deles de qualquer jeito, e me olhava um tanto pensativo.

— Como nós vamos fazer isso...? — perguntei, transformando a ficha num rolo de papel, nervoso.

Daniel suspirou. — Decidimos isso em casa, vamos pra aula agora.

— Tá bom — fiz que sim com a cabeça e fiquei parado enquanto observava Daniel caminhar de volta para sua sala de aula, pensando que, definitivamente, o mundo queria me castigar, e estava fazendo isso através das mil coisas que estavam me ligando a Daniel.


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Notas finais do capítulo

Então, gente, eu gostaria de fazer um agradecimento especial a todos que estão comentando, acompanhando ou favoritando, porque isso realmente me incentiva a continuar! E eu demoro pra responder, porque que eu costumo fazer isso só quando vou postar o próximo capítulo, já que a faculdade me toma todo o tempo no meio da semana, mas eu sempre respondo! Então muito obrigada! Até o próximo capítulo xoxoxox