Um Inquieto Amor de Apartamento escrita por Leoh Ekko


Capítulo 14
Um sorriso doce que parecia ultraviolência




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/605401/chapter/14

Como odiava aqueles malditos pombos de praça. Eles mais pareciam abutres, ficavam rodeando as pessoas sentadas nos bancos, se alimentando da melancólica solidão delas. Pombos malditos. Por que não havia cisnes em praças ao invés deles? Alguém devia fazer algo a respeito.

Theo mascava nervosamente um chiclete, olhando as horas no celular a cada dois minutos. Marcos estava atrasado, como sempre. O que era ótimo, dava-lhe mais tempo sozinho no banco, para pensar e ter sua melancolia devorada pelos pombos. Sua mente ficava repetidamente dizendo a ele que ele não seria nada melhor do que Júlia. Afinal, não foi exatamente isso que ela fez? Arrumara coisas na calada da noite para fugir para outro país, deixando Marcos para trás.

Marcos merecia muito mais do que isso. Muito mais.

E então ele sentiu aquela familiar sensação no lóbulo da orelha esquerda. Era como um “sentido de aranha”, mas que em vez de alertá-lo a aproximação de um inimigo, lhe avisava que Marcos estava se aproximando.

Theo virou o pescoço para a esquerda. Bingo. Lá estava Marcos, vestido com o seu sorriso e andando com aquele gingado charmoso que só os músicos possuem. O coração de Theo se agitou, como um cãozinho que vê seu dono chegar em casa.

— Ah! Aí está você. — disse Marcos — Desculpe o atraso, mas foi por um bom motivo. Eu juro.

Theo forçou um sorriso — ele já devia ter ultrapassado a cota de sorrisos forçados para uma vida toda.

— Está tudo bem.

Marcos sentou-se ao seu lado, virou o corpo de Theo na sua direção e pegou as pernas dele para colocar sobre as suas. E começou a lhe encarar com curiosidade.

— Você está bem? Parece que acabou de voltar de um enterro!

— Eu não cheguei a ir ao enterro.

— O quê? — Marcos franziu a testa.

— Nada. Deixa pra lá.

Queria ele deixar isso para lá. Quer dizer, deixar não essa coisa de ir a velórios, mas não nos enterros, queria deixar isso de estar ali sentado naquele banco para ter que contar sobre sua possível partida.

— Então, o que você queria me contar?

...

...

... por que ele tinha que ter aquele sorriso tão sonhador no rosto? Tornava tudo mais difícil. Theo se sentia uma pessoa horrível. Sentia-se como Cruela Devil prestes a matar todos os cento e um dálmatas. Ele era uma pessoa horrível. E aquele sorriso sonhador era a vítima das suas atrocidades. Aquele era um sorriso doce que parecia ultraviolência, de tanta dor que podia causar.

— Marcos? — sua voz saiu tão seca e tão distante que parecia ser a voz de outra pessoa. Quase olhou ao redor para descobrir para descobrir quem havia falado.

Marcos começou a parecer preocupado.

— Primeiramente,

— Ai meu Deus, Theo. Você não vai me dizer que tem um câncer que acendeu como uma arvore de natal, não é? Porque se for acho que vou morrer bem aqui.

Theo teve que sorrir — um sorriso genuíno desta vez.

— Bobo. Não é nada disso.

— O que foi então. Pare de suspense e diga logo.

— Vai ser mais fácil eu mostrar do que dizer.

Então ele tirou um pequeno pedaço de papel de bolso e, muito lentamente, entregou para Marcos.

* * *

De súbito, uma onda de emoções atingiu Marcos.

Primeiro, ele ficou FELIZ. Ali em suas mãos estava uma carta da Universidade de Toronto que oferecia a Theo um estágio no Museu Real de Ontário, onde também, caso ele aceitasse, suas marionetes entrariam um exposição. Além disso, ele ganharia um ano de curso de pós-tradução em Artes Visuais. Marcos encheu-se de orgulho. Theo realmente merecia aquilo, pois seu trabalho havia sido maravilhoso.

E depois, sua fixa caiu. Na verdade, ela despencou em queda livre.

Para Theo fazer todas aquelas coisas ele teria que...

— Theo... isso é maravilhoso, eu... Parabéns, você merece isso. Você... vai aceitar, não vai?

— Eu não sei. Acho que não.

— Mas por que diabos você não aceitaria isso?

Theo recolheu as suas pernas, virou-se para frente e começou a encarar o chão. Aqueles gestos foram resposta suficiente.

Era por causa dele.

Theo não queria aceitá-lo porque não queria ir embora e deixar Marcos para trás. O que era absolutamente compreensível — só a faísca de ideia de ficar longe de Theo era suficiente para acender um incêndio de pânico.

Só que Marcos seria muito egoísta se pedisse para Theo ficar. Não podia conviver com essa culpa em suas costas. Como dormiria as noites ao lado dele sabendo que era o motivo de Theo não estar em outro lugar fazendo a carreira deslanchar? Seria um peso insustentável.

Ele se lembrava daquele seu pesadelo horrível. Em que acordava sozinho em uma praia e saía correndo gritando por Theo sem nunca encontrá-lo... Se Theo fosse embora, aquele pesadelo seria sua nova realidade.

"Se a realidade é assim, eu prefiro viver em um sonho".

— Theo, olhe pra mim. Você não pode ficar aqui por minha causa...

— Claro que posso! — interrompeu ele, quase à beira das lágrimas. — Você foi a melhor coisa que já me aconteceu, não vou abrir mão disso.

— Mas você não precisa. Eu conheço um monte de pessoas que vivem super bem em relacionamentos à distância...

— Não é a mesma coisa, você sabe que não é. Como se passa o calor de um abraço através da merda de uma webcam?

Marcos o abraçou, tentando confortá-lo. Mas queira ser confortado também. Seu mundo estava caindo sobre a sua cabeça e ele não podia fazer nada.

— Eu posso te esperar. Eu esperei vinte e três anos para encontrar você, um ano a mais não significa nada.

— Eu nunca pediria isso a você. Em um ano você pode estar interessado em outra pessoa.

— Que bobagem. Nunca mais vai haver "outra pessoa". E você não esperar por mim também?

— Não foi isso que eu quis dizer.

Seguiram-se então alguns minutos de silêncio. Minutos que se confundiram com milênios inteiros. Mesmo abraçados era como se um abismo de distância houvesse surgido entre eles.

— Eu posso ir com você.

— Não é tão simples. Você não ganharia um visto para morar lá, até para mim vai ser complicado conseguir.

Era verdade.

— Eu posso ir te visitar de vez em quando.

— "De vez em quando" não é suficiente. Não para nós dois.

Quanto mais pensava nisso mais uma ideia — uma probabilidade mínima de esperança — surgia na mente de Marcos. Ele iria sim com Theo. Seria seu ultimo desafio. Sim, ele iria conseguir.

* * *

— Para quando vai estar agendada a viagem? Se você supostamente aceitar ir — disse Marcos, com aquele familiar tom que ele usava quando estava pensando em alguma coisa.

Theo olhou para ele com a sobrancelha arqueadas, desconfiado.

— Segunda-feira. Por quê?

— Bem. Acho que vai dar tempo.

— Tempo para quê? Do que você está falando.

Marcos se ajoelhou em sua frente para olhar em seus olhos.

— Theo. Quero que prometa uma coisa.

O quê? Como assim?

— Prometer?

— Me prometa que vai aceitar essa viagem, e que, mesmo que eu não consiga encontrar uma solução para eu ir também. Você irá sem mim.

As lágrimas de Theo começaram a cair com mais força.

— Eu não posso!

— Sim, você pode sim. Você não pode é jogar essa oportunidade no lixo por minha causa.

— E o que você vai fazer? Você não pode resolver todos os problemas do mundo. Você não é um super herói, você é só um... cara.

— Sim, eu sou um cara normal. Mas caras normais também fazem loucuras por amor. Você me incentiva a fazer loucuras, você... Você é meu espinafre e eu sou o Popeye.

Theo deu uma gargalhada. Só Marcos era capaz de fazê-lo rir em um momento como aqueles.

— Prefiro ser um espinafre do que a Olívia.

— Agora me prometa Theo.

Devia mesmo prometer? Uma metade sua queria dizer que sim, que acreditava que Marcos iria fazer aquilo que ele estava planejando. Mas uma outra metade ainda sentia medo, medo de embarcar sozinho em um avião para o Canadá.

— Tudo bem.

— Tudo bem o quê? Diga as palavras.

Theo respirou fundo. Ainda não acreditava que estava fazendo isso.

— Eu prometo. Prometo que irei para Toronto, mesmo se você não estiver comigo.

Apesar de ter falado aquelas amargas palavras, ele recebeu um doce sorriso como resposta. Marcos ergueu mais o pescoço e o beijou nos lábios. Foi um beijo salgado pelas lágrimas secas nas bochechas de Theo, que apesar de todas as impossibilidades que se erguiam na sua frente, sentiu aquele beijo não como uma despedida, mas como um começo.

— Agora me deixa ir — disse Marcos, interrompendo o beijo.

— Mas já?

— Sim. O tempo é curto, você sabe.

— Ah, então... Tchau, eu te vejo mais tarde.

Marcos deu um sorriso travesso.

— Talvez.

E então ele foi embora, tão animado como um semideus que saía em uma missão dada pelos deuses. Theo o invejava por isso, por não se deixar abater de frente aos problemas da vida. Marcos enxergava o mundo com uma lente de otimismo. Já Theo se abatia fácil, embora o tempo com Marcos tivesse curado boa parte da escuridão da sua alma, ele ainda tinha auto piedade de sobra. Como era patético.

Colocou um sorriso no rosto — um fraco, mas ainda era um sorriso. Relaxou os ombros, que estavam a muito curvados pelo peso de sua dor, e olhou para os malditos pombos com ousadia. Não havia mais melancolia ali para servir como alimento para eles, apenas a chama de uma vela de esperança. E para as almas tristes, esperança era melhor que qualquer remédio receitado por qualquer médico.

Com esse pensamento, lembrou-se de uma música que falava exatamente sobre isso: de se agarrar à última esperança e tirar conforto nisso. Pegou seus fones de ouvidos e começou a escutá-la, se apegando em seus versos.

E o sal em minhas feridas

Não está ardendo mais do que costumava

Não é que eu não sinta a dor

É que simplesmente não tenho mais medo de me ferir

E o sangue nessas veias

Não está pulsando menos do que sempre pulsou

E essa é a esperança que eu tenho

A única coisa que sei que me mantém viva, viva

Tenho que deixar acontecer

É só uma faísca

Mas é o suficiente para que eu continue


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Algumas pequenas considerações:
a) a música do final é Last Hope do Paramore, não é uma banda que amo de paixão, mas essa música é maravilhosa
b) pombos de praça são chatos, mas o pombo correio do desenho era um fofo.



Hey! Que tal deixar um comentário na história?
Por não receberem novos comentários em suas histórias, muitos autores desanimam e param de postar. Não deixe a história "Um Inquieto Amor de Apartamento" morrer!
Para comentar e incentivar o autor, cadastre-se ou entre em sua conta.