E Se O Céu Fosse Azul? escrita por Casinha de Cachorro


Capítulo 2
Como pode me odiar tanto assim?


Notas iniciais do capítulo

Eu encontrei Al novamente há uma semana.
Agora está de barba. E infelizmente não sabe explicar um cartaz muito bem.
Ai, essas personagens crescem tão rápido...



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— Agora, alunos — malas, lesados, ignorantes, pirralhos, pesos de porta —, caros alunos — morram, morram, morram e — por favor — MORRAM! — encontrem um colega que tenha a mesma cor de meia que vocês.

                Foi assim que saí do inferno para trabalhar como burocrata do demônio. Menos sofrido, mas bem mais desagradavelmente complicado. Foi assim também que o coordenador escolar estava visivelmente se sentindo naquela linda manhã, aparentemente muito propícia para uma atividade de integração social de uma turma nova. Seus olhos corriam de um aluno para o outro gritando insultos enquanto por fora só vomitava palavras programadas, tipo quando um programa é censurado e na tela aparece aquela mensagem automática com um narrador estilo áudio do Google Tradutor.

                Olhei ao redor. Olhei bem ao redor. Meu redor eram duas paredes de canto o qual eu me escondia das baratas humanas. De todos os insultos que o coordenador queria despejar na minha nova turma. Da atividade que ninguém queria realizar mas estavam sendo obrigados, porque, é claro, quem nunca achou sua alma gêmea ao esbarrar os dedos romanticamente no mesmo par de meias do mostruário? Quem nunca fez uma amizade de décadas por perceber que seu colega de academia sarado e peludo usa a mesma soquete branca suada que você?

                Mas não. Ele não podia ser normal. Ele tinha que ser um grande cretino. Ele tinha que sorrir, ele tinha que ter um sorriso tão bonito, tão grande, tão monstruosamente grande que parecia que me faria vampiro igual a ele com aqueles caninos enormes. Era o único agitado, animado, pilhado como só alguém banhado em cafeína poderia estar, mas não, era apenas seu jeitinho natural. A cada novo desafio da atividade de integração se escolhia um novo par, o qual eram dados quinze minutos para conversar e se conhecer melhor, para no fim cada dupla apresentar à classe os interesses em comum que tinham achado. Ah, ele amava tudo e todos, sempre achava um lote inteiro coincidências para contar à turma no final. Todos saíam sorridentes depois de apenas quinze minutos de sua maldita ladainha.

                Eram quinze atividades para fazer os estudantes bateram um papinho desconfortável entre si e quebrarem as panelinhas, e naquela sétima atividade eu tive a infelicidade de ter meias azuis-marinhas. Tinha pelo menos outros dez com meias azuis, mas ele veio até mim porque, no mínimo, eu devia estar poluindo a imagem mágica e purpurinada de turma feliz e unida que ele estava visando com meu mau humor de ódio à socialização. Ele precisava tirar o lixo do quadro colorido dele.

— Ei, olha, que coincidência! — A ousadia em forma de uma mão cheia de dedos agarrou a borda da minha calça e levantou, mesmo que ela já estivesse curta e já fosse possível ver minhas meias. — Azul-marinho! — Estendeu sua mão com dignidade e quando não teve resposta agarrou a minha com firmeza. Machucou, e naquela hora eu prometi que me vingaria daquela indelicadeza.

Com o outro pé posto sobre a borda, desci a calça até minhas meias sumirem de vista e minha cueca dar um oizinho ao pessoal. Até que o coordenador não pedisse para encontrar alguém com uma roupa de baixo da mesma cor estava tudo bem para mim.

— Meu nome é Alberto, tenho catorze anos. Estudo na escola desde... Tipo, sempre. — ele riu alto. Eu encolhi meu pescoço. — Você é novo, né? Pode ficar comigo no intervalo.

— Hum, Adrian. — Eu era meio tímido. — Obrigado.

— Bem, então, Adrian, eu pensei.... — ele passou uma mão sobre meu ombro e foi me desgrudando do canto da sala, me guiando para o centro como se fosse um arquiteto indicando ao cliente onde ficariam as maravilhosas pinturas chinesas que ele havia enquadrado no meu projeto.

Há uma quantidade quase obscena de garotos esquisitões que passam boa parte de sua vida encerrados no quarto gastando seu ciclo celular cerebral com algum RPG, e sendo sensato agora, dois por cento deles conseguirão seguir carreira nesse ramo porque estavam jogando em vez de estudar para trabalhar com tecnologia. Havia uma quantidade significativa de garotos esquisitões na minha antiga classe, eu era um deles. Mas naquele momento, no momento que Al me escolheu, fui diferente. Deixei tudo que me fazia ser eu de lado por um instante e posso explicar isso sem parecer delírio de uma obsessão.

O que leva uma pessoa a ser solitária? Depende, é claro. Um trauma. Personalidade. Depressão. Chamar atenção, oh, sim, carência, esse é um fator bem interessante. Quem nunca teve uma fase emo-gótica-depressiva em sua miserável vida pode não acreditar nisso, mas se isolar do mundo pode significar apenas querer comprovar que é especial o suficiente para o mundo vir atrás de si quando der por sua falta. Imagine uma garota que desconfia que seu namorado, o Sr. Relações Sociais, esteja traindo ela. A mocinha briga com o namorado e o ignora determinadamente, não importa o que ele faça ou fale, não importa o quanto suplique ou peça para voltar, porque a única coisa que ela quer é sentir o prazer de tê-lo se importando consigo, uma massagem no ego e na autoestima.

Claro que certas garotas mundo afora permanecem nessa tática por tanto tempo que Sr. Relações Sociais se cansa e vai embora, deixando-as realmente sozinhas dentro de uma depressão tão profunda que na certa enche a mente delas de “Eu não presto.”, “Ninguém me ama.” e “Sou uma forma a base de carbono desperdiçada nesse universo e não mereço essa miserável vida.” E aí se matam.

Mas agora imagine com toda a fertilidade que tem sua mente: o que acontece quando todos esses caras esquisitos e solitários por causa de uma fase da vida meio violentamente conturbada pela mente fraca para mudanças e pseudo-depressivos por carência recebem atenção? Eles passam a depender das pequenas atenções como se fosse crack e fazem qualquer coisa para consegui-la, tornando-se quase arrogantes e bastante mimados.

Foi assim comigo. Naquele momento em que Al passou seu braço sobre meus ombros eu entendi que nenhuma outra atenção seria como a que eu estava recebendo naquele momento, que aquilo era melhor que a comida da minha avó. Eu soube que precisaria conseguir mais doses daquela morfina relaxante para o resto de minha vida. Mas isso tudo correu pelo meu subconsciente por mísero um segundo, sem chegar em meu conhecimento explicitamente, porque na hora eu resisti até o último segundo para ceder conversar com Alberto, fui bem rude, um verdadeiro ogro.

Sei que ele usou dessa habilidade com os outros também. Com os outros esquisitões, com os outros colegas sociais, com professores, todos, todos mesmo. Essa era a linda cadeia de vítimas da manipulação que Al tecia como uma grande aranha pernuda, peluda, nojenta e de traseiro grande. Era tão viciante, tão doentio, que a cada vez que Alberto falava comigo eu sentia que precisava de mais e mais, mas só para mim... Tinha dias que eu me sentia único; todas as brincadeiras eram a meu respeito, ele estava sempre perto da minha classe, sorrindo, sorrindo com aquelas presas enormes de quem me engoliria algum dia. Tinha vezes que nem bom dia eu recebia, que eu me sentia uma usina de tratamento de esgoto entupida e inútil e me perguntava constantemente o que havia de errado comigo, o que eu havia feito. Hoje sei que fazia tudo parte da teia, da manipulação; solte a linha, deixe ele nadar e então puxe de volta com força que terá o peixe em suas mãos.

Sei que não fui só eu que caí nesse truque, sei que não fui só que eu que me obriguei a socializar mais com a turma, com muitas pessoas para conseguir ficar mais perto da Alberto, que entrei para seu fã clube, que me tornei seu cachorrinho, seu servo para carregá-lo numa liteira a espera de migalhas de sua atenção. Não foi ruim, por mais que eu tenha feito parecer com minhas próprias palavras, teria sido bem pior ter me suicidado por não ter ganhado atenção suficiente, teria sido bem pior não ter começado a me socializar, a estudar, a pensar na vida e no futuro. Al foi um ditador que cortou minha liberdade, mas me evoluiu de uma forma tão linda que seria o melhor treinador de pokemons que a humanidade já teria visto.

Alberto me deu um futuro. E então comecei a pensar demais, em todos os segundos que estava longe dele eu preenchia minha mente com pensamentos sobre ele. Não posso afirmar como foi para os outros, mas depois que criar mil situações hipotéticas sobre o que poderia acontecer ou ter acontecido, me ocorreu, ineditamente, tentar entender o porquê de eu gostar tanto dele. Não, por que de eu depender tanto dele. Eu sequer gostava dele? Quem era ele?

Todos sabem que o pior inimigo de qualquer governo é um povo culto e sabido.

Ideias podres e nojentas vieram seguidas de reflexões e conclusões sobre a natureza, pela primeira vez no meu ponto de vista, negra e sombria de Al. Não perdi meu interesse por ele, pelo contrário, fiquei apenas mais obcecado em tentar entendê-lo e desvendá-lo como se fosse um cubo mágico de rosto anguloso e cintura fina. Mas tudo isso apenas me levou a um nojo terrível de Al e um asco perverso de mim, da minha infantilidade em cair nos braços de estranhos com tanta facilidade. Tudo isso fez com me eu me afastasse de Alberto numa — desta vez verdadeira — depressão reflexiva a respeito de sentimentos. Mas eu já estava ciente de que minhas relações eram necessárias e importantes e não as cortei, continuei um bom garoto social e ativo na escola, pelo menos uma fachada para garantir meus interesses.

E Alberto surtou.

Ele surtou. Não, na verdade apenas gosto de pensar que ele tenha passado noites em claro por minha causa, gosto de imaginar que ele tenha dedicado muito tempo de sua vida me odiando em segredo por ser o primeiro rebelde do sistema escravista que ele montara em sua vida, que ele me desenhara muitas vezes apenas para queimar a folha, que ele chorou em meu nome, apenas porque, no fundo, nunca deixei de ser um esquisitão carente. Tudo porque não o olhava do mesmo jeito, não abaixava mais a cabeça perante ele e o julgava mais severamente.

Passei tempos de jejum de afeto para reflexão, questionei o sistema socialista de divisão igualitária de atenção e carinho em que viviam todos aqueles porcos. Mas não adiantou. Eu não ganhei a exclusividade que como objetivo toda a esquisitice carente me movera a agir.

Alberto veio atrás de mim com toda sua boa vontade e altruísmo, questionou o que havia de errado comigo, como podia ajudar. Quase tive uma recaída ao pensar que ele se preocupava comigo, mas então lembrei que ele de fato se preocupava, mas isso não bastava para mim porque ele se preocupava com todos os outros também. Quando não me abri com meu amigo, senti seus olhos penetrantes e cristalinos nos meus e percebi que fui lido como uma mercadoria passada num leitor de código de barras: ele me compreendeu. Mas isso não fez diferença para o abraço do dia, o primeiro em muito tempo que eu rejeitei. Me tornei então a mercadoria defeituosa que voltou-se contra seu criador, mesmo que não importe o quanto eu tente me sentir um grande revolucionário vitorioso, sempre terei a culpa. Afinal, o culpado de ser um humano ingrato e insatisfeito não é ninguém mais do que minha própria falta de vontade de controlar minha natureza humana, e consigo sentir isso muito bem quando ainda me apoio nesse mesmo garoto em meus momentos de crise. Ainda que não me entenda por completo, me respeita e aceita essa limitação porque mesmo que eu o tenha deixado, ele não me deixou, não é?

Especulo para meu próprio prazer que é apenas pose ele me tratar muito bem. Quando meu prazer é estar com ele, porém, logo minha fé nesse deus volta e tudo que sei desaparece novamente. Talvez eu só me mantenha são nos momentos de delírio porque a verdade de que ele nunca será feliz morrerá comigo, nem ele precisa saber disso.

Este sou eu são. Este sou eu fora de uma crise. Este sou eu cuspindo na cara de Alberto num dia normal de aula quando ele tenta me cumprimentar com um abraço na frente de todos. Este sou eu no dia seguinte de ter humilhantemente derramado lágrimas no pescoço desse garoto, e de ter deixado a marca das minhas unhas na superfície daquela mão bem hidratada com creme de pitanga, de ter esfregado meu nariz naquela camiseta cheirosa e morna, de ter estado em paz e por sentir-me único para ele enquanto sentia o amor emanar daquele peito ronronante. Este sou eu, dono de mim mesmo, sentindo-me muito independente e confiante em meu conhecimento e sanidade mental de hoje. Por que eu guardo um preciso segredo que nenhum outro idiota nesta sala possui, uma propina em atenção que recebo quando estamos sozinhos para me manter calado em relação a verdade suprema que envolve todas as amizades de Alberto.

— Pss, Ad. Ei, ei, Ad, olhe para cá. — Teve barulhos de alguém sem muita paciência se revolvendo na cadeira onde estava sentado, três classes atrás de mim e uma para a direita. — Ad!

Hoje eu estava fiel à minha política de ignorar. Tão fiel que em pouco tempo teria que começar a pagar o dízimo para ela. Já disse que não me arrisco ficar perto demais de Al em público, nunca sei se estou agindo naturalmente ou não. E se parecer que estou feliz demais ao lado desse homem sem nem um mísero pelo na cara?

— Ad, ei, Adrian, olha para cá! Aqui, eu, eu aqui! — Não. A aula parecia muito mais interessante.

Remexi entre meus materiais, um bolo de papéis sujos, riscados e amassados misturados junto com lápis de três centímetros e canetas quebradas, tudo jogado dentro de um estojo velho com meu nome riscado com canetinha em grandes letras de forma, e achei um estilete cuja lâmina estava caindo da proteção de plástico. Qualquer um que me conhecesse apenas há três anos atrás poderia imaginar que eu estava prestes a deixar minha carta de despedida para o mundo antes de enterrar o metal frio e pontiagudo nos meus branquelos pulsos. Mas hoje não. Hoje tomo sol e meus pulsos tem cor de um brasileiro estereotipado bem-nutrido. Até porque, como já disse antes, só não deixo esse mundo por orgulho, mas nada me impede de brincar com a criatividade e a imaginação.

Peguei dois tocos de lápis gastos e risquei com o estilete na madeira seguindo uma ordem: 17:30, lá, fazendo menção ao banco meio remoto de uma praça com parquinho infantil perto da escola. Pedi para a menina de rabo de cavalo cheio de fios soltos atrás de mim passar esses lápis coloridos, nada suspeitos de portarem uma mensagem de tão deprimentemente sujos que estavam. Quem não entenderia um bilhete sem nem mesmo olhar seu conteúdo? Materiais escolares que normalmente se troca e empresta com colegas são bem mais seguros.

Al recebeu a mensagem em suas mãos, olhou para mim, para os lápis, para mim e sorrindo se pôs a revirar a madeira velha em busca de minhas palavras. Alinhou as duas partes do convite na palma de sua mão depois de ter achado as ranhuras malfeitas e leu com visível cuidado, movendo os lábios ridiculamente. Se fosse para os outros verem, meu querido Alberto, não acha que eu teria escrito na lousa ao invés de malditos lápis? Mas a frase travou no limite de meu cérebro enquanto suspirava o ar do arrependimento de ter feito aquilo. Às vezes não chego apenas a achar, mas ter mais certeza que Al se faz de idiota retardado do que garanto minha existência quando penso em, por exemplo, pudim de leite. Nosso amor ocorre melhor quando sou eu a criança da relação, porque não importa o quanto eu critique, ainda há uma dose maior do que eu gostaria de sentimentos entre nós.

Em resposta, Al rabiscou em uma borracha tijolão de duas cores e a pôs em um voo curto e baixo até minhas costas. Juntei, fechando o látex fervido e condensado em minhas mãos, quase com medo de olhar a resposta. Meu lindo amigo aguardava minha reação com olhos maliciosos e queixo apoiado nas costas das mãos, sobre a mesa.  

Antes”. Fiquei sinceramente meio irritado com uma resposta dessas. Quem não ficaria? Faço de tudo para alinhar, com muita dificuldade, minha vida social, escolar e familiar com Al, como um grande homem de negócios, e Alberto parece ignorar isso nos momentos mais complicados para mim. Final de tarde, o dia todo nessa escola, prometi cuidar da Nanda para meus pais, um monte de trabalho de aula atrasado que procrastinei e precisava terminar... Não estava para as gracinhas dele.

“Não”. Breve e muito autoexplicativo. Mandei a borracha de volta, agora com os dois lados riscados, ele recebeu e ficou olhando a borracha com uma cara estranha de sobrancelhas frisadas que só consigo encontrar em Al, o lábio inferior preso entre os caninos, esfregando a mão na lateral do pescoço como se tivesse com torcicolo. Deu-me uma outra olhadela indignada e mexeu a boca num pedido mudo para mim pelo menos esperá-lo no fim da aula. Assenti de mau gosto.

O último período escorreu lentamente pelos meus olhos e tudo que consegui ouvir eram ruídos dos pés de Alberto batendo ritmicamente na lateral da classe, cada batida parecendo contar os segundos para o fim daquela tortura. Quando fomos dispensados joguei meu bem conservado estojo e os cadernos militantes das trincheiras russas na Primeira Guerra Mundial dentro do saco de mochileiro que arrasto diariamente por aí e fui saindo em direção à porta na frente de todos. Meus passos não eram rápidos, os outros que cismam em demorar mais que o normal para ficarem tricotando com os vizinhos de classe em vez de seguirem suas miseráveis vidas e irem para casa.

Estava cruzando pela frente da sala, logo atrás do professor que entendia meus sentimentos de liberdade, mochila pendendo de um ombro, mãos nos bolos das calças de corte reto, olhando Al jogar suas trouxas nas costas, rápido, muito rápido para me alcançar com seu olhar de recriminação por eu não estar esperando como um bom amigo.

Vamos, Al, eu não sou um bom amigo. Não sei de onde tirou essa ideia, de um desenho da Disney talvez, parece provável. Talvez esse mesmo desenho tenha te ensinado a caridade, perseverança, humildade, bondade e todos esses valores puritanos que fazem de você nunca largar ou se cansar de mim. Nunca olhar feio para mim. Nunca retribuir meu tratamento. Obrigado Walt.

Mas fui calado, literalmente, antes de qualquer oportunidade de comentar a respeito disso. Al sempre fora estranho, em muitos e deturpados sentidos, mas naquele dia eu sentia que havia muito mais coisas erradas do que o normal. O meu normal. Nosso normal. O normal para nossa relação doentiamente não natural. Desde que o vi aquela manhã, soube que precisava evitá-lo o máximo que podia, e não apenas pela minha política de proteção à minha integridade moral (também conhecida como “o dia seguinte à minha crise”), havia algo mais que meu muito tempo de observação paranoica estava me avisando para ter cuidado. Infelizmente, só consegui confirmar meio tarde demais que aquele era o último momento para mim estar de frescura perto dele e isso alertou meus mirabolantes miolos para uma possível situação que eu ainda não programara e esquematizara, não tinha catalogada nem sob controle.

Al estava tão... desafiante, sim, meio valentão como um galante corcel resfolegante num vasto campo verde, mesmo que faltasse muita massa muscular naqueles quartos traseiros para ser agradável de montar. Senti-me violentado por aquela atitude, parecia que minha confiança havia sido prensada contra armários de escolas americanas e sacudida até dar o dinheiro do almoço para aquele cara. Um Al rebelde. Não sabia ainda que tipo de sensação isso causava em minha pessoa. Rebelde. Repeti a palavra algumas vezes mentalmente até ele me alcançar na porta para ver como soava e comecei a ficar animado para cobrir o pouco de preocupação com a súbita e desconhecida mudança de humor de meu querido amigo.

E se ele finalmente tivesse se irritado comigo? E se eu tivesse passado dos limites no dia anterior, colocado pressão e peso demais em suas costas? Talvez ele tivesse feito suas contas mentais e calculado que não valia mais a pena me sustentar, continuar vivendo em com minha chantagem, talvez aquele fosse o dia em que ele fosse finalmente, e pela primeira vez desde que o conheço, ser rude comigo. Quem sabe ele cortasse por inteiro nossa relação! Tinha consciência que deveria começar a ficar assustado e amedrontado, mas minha animação só crescia, ao passo que ele, ao meu lado, continuava anormalmente calado, me olhando quase sem piscar.

Ah, e se todos vissem Al, o Grande Alberto, meu, seu, nosso, nosso querido Alberto perdendo o ritmo de Madre Tereza, acabando sem paciência com um dos muitos que ele acolheu e ensinou a ser civilizado, que hipocrisia! Talvez aquela fosse a tão aguardada chance de rolar aquele ditador escada abaixo, aquela que ele nos escravizara para subir tão arduamente apenas para mendigar sua presença. Ah, talvez eu até deixasse ele me socar, dar-me uma surra tão grande com aqueles braços ridiculamente sem definição beirando pernas de galinha alimentada com transgênicos.

Sim! Era isso que eu faria. Apanharia como um bom garoto e a culpa seria dele, não deixaria que Al ficasse com as recompensas se caso fosse acabar de me aturar de vez; não, se era para ser o final de tudo, teria que ser o mais épico de todos os tempos, teria que fazer jus à grandeza que admito que meu oponente tem, teria que honrar toda a preparação que ele estava fazendo naquele momento, ao meu lado, me olhando ansioso, assim como ele teria que respeitar meu rápido aprendizado com ninguém menos do que ele próprio. Assista sua própria criação, meu querido.

Se fosse para nunca mais poder me apoiar em Alberto, se fosse para nunca mais ganhar seu carinho... Então que pelo menos eu pagasse todo o mal que já fizera àquela pobre e infeliz criatura com não apenas uma dor interna. Talvez eu quisesse mesmo arrebentar o nariz para apenas me sentir melhor por todo o estrego que já havia causado, levar minha primeira briga a fundo, deixar marcas as quais sempre que olhasse lembrasse de meu querido Al. Meu precioso Al que agora se rebelava contra mim, mais que com razão. Uma vingança.

Estava animado, uma animação superficial, uma animação nervosa, acabaria tudo, era a hora, aquela hora que, no fundo, sabia que aconteceria, mas nunca admitia porque sabia que sairia de meu controle. Mas no momento eu tinha tudo sub controle. Já sabia o que fazer, acabara de me convencer disso, já sabia o que Alberto faria, já calculara tudo. Não é só você que entende de cálculos psicológicos, ah, não.

Estávamos ainda lado a lado, mais próximo do que eu permitiria num “dia seguinte”, atrasando os passos, sentindo os pensamentos um do outro tencionando nossos movimentos, os estudantes começando a nos ultrapassar e no meio daquela multidão era o local perfeito, nós dois entendíamos isso. Muitos vieram se despedir de Al, alguns poucos menos de mim, mas nossa concentração estava focada apenas em nossa despedida e em nada mais, cada um apostando na própria capacidade social de se virar no ato.

E lá vinha. Senti meu pulso sendo agarrado, as mãos suadas e indelicadas escorregando contra minha pele, mas com força suficiente para me fazer girar no lugar e parado o encarar de frente. Parecíamos pedras impedindo o fluxo de um rio poluído que esbarrava em nossas costas, parando lentamente e desinteressadamente para ver o que fazíamos pregados ao chão.

Percebi bem logo que aquela era sua primeira briga também, ele não tinha a posição que se espera de alguém que vai lutar. Seus olhos, brilhantes, isso nunca mudaria, eu sentiria falta, sentiria. Seu maxilar firme, os dentes trincados, garganta presa, era um novato, sua beleza social que abdicava hoje sempre o poupara dessa experiência... Ergueu sua outra mão em minha direção e apertei meus olhos a espera da dor lasciva que deixaria minha expressão odiável do avesso. Não, não poderia esperar isso de alguém tão inexperiente. A posição de seus membros, notei entre espiadelas, a proximidade que o impedia de pegar velocidade para um golpe forte, seu peito que encontrava o meu, sua mão que subia deslizando pelo meu braço desproporcional até meu pescoço a encontrar com aquela outra, me segurando mais próximo, seus lábios sobre os meus.

E todos prenderam sonoramente a desnecessária respiração que fazem para sobreviver junto comigo quando se deram conta do que estava acontecendo. Seus malditos lábios prendendo os meus como doces garotinhas ruivas e hidratadas com manteiga de cacau humilhando as maltrapilhas bolsistas que com certeza reprovariam de ano por ter pegado a matéria pela metade. Era como me sentia, como se tivesse pego um assunto no fim, meio muito perdido no centro de uma cidade desconhecida, criticando um filme por não ter assistido seu começo.

Uma atmosfera ilusória e instável de sonho engoliu tudo como fazia Alberto ao me encostar contra a parede, espalhando estudantes como um cardume assustado. Meus músculos tão rígidos que tinha medo que quebrassem caso tentasse fazer movimentos bruscos, os membros tão paralisados, mas que não podiam sentir menos do que antes, ao contrário, cada toque era percebido com cada detalhe e recebido com tanto pânico por meu cérebro que trabalhava para entender como e porque, onde foi que havia errado, que vírgula ou expoente colocara de fora da conta... Era tudo tão fantástico que poderia não ser real. Um sonho. Um daqueles em que eu esquecera de vestir-me e todos falavam da cor de minha cueca, um cheio de vozes perseguidoras de fundo, de gritos e gritinhos, tudo disforme, um pesadelo onde o suave toque dos dedos adolescentes de Al entre meus cabelos machucava, onde todos seus movimentos eram errados, onde eu era errado. E eu odeio estar errado.

Não havia motivo. Não havia razão. Não havia explicação plausível para mim estar me engasgando com uma saliva que pela primeira vez estava duvidando ser minha, para mim estar recebendo um ar usado por outra narina, por outro pulmão, estar aspirando o gás carbônico que as células de sabe-se lá de que parte do corpo dele descartaram. Não havia motivo para ele ter se rebaixado tanto assim. Não podia ser verdade, de maneira alguma.

Não sou uma pessoa criativa, longe disso, sou apenas um garoto comum com um pensamento e sonhos iguais ao de tantos outros. Mas sou imaginativo com uma mente curiosa dada a explorar partes desnecessárias dos meus desejos, descobri isso a pouco tempo. Descobri também que o maior defeito de uma mente ampla (não de conhecimento) assim é a exposição radioativa a situações absurdas, inimagináveis, que explodiria como um balão de aniversário as mentes comuns, mas que na minha nem mais cócegas fazem de tão habituada a idiotices e loucuras de pensamento que está. Talvez o maior defeito de meu cérebro seja aceitar e banalizar esses desejos inoportunos, seja acolher a todos essas pobres e necessitadas ideias tratando-as de igual para igual, sendo que se elas se concretizassem, eu morreria. Morto por ideia absurda materializada. Assassinado por um elefante rosa em minha sala, pelo choque de não saber lidar com a situação. Enfartado de preocupação por ter criado asas de demônio em minhas costas por não saber como escondê-las. Sufocado por Alberto por não saber como explicar às outras pessoas o que está acontecendo. Longe de minha mente, não sou ninguém perto da realidade.

Mas a realidade estava ali. Os olhos de Al estavam fechados como se não quisessem me ver, os meus arregalados, encarando aquela pele lisa, perfeita. Aquele momento que parecia não acabar nunca mais, parecia infinito. Havia uma parcela adorável nisso, uma conquista interior de talvez ter o momento único de atenção do meu melhor amigo, do meu mais que melhor amigo, um peso que me aliviou em finalmente não precisar mais esconder minha necessidade afetiva da sociedade, de me livrar finalmente de toda a burocracia social que se tem que passar ao admitir que ama alguém, um certo ar de leoa de quadril largo gabando-se para as outras fêmeas que conseguiu ser a principal do chefe do bando. Mas isso era pressionado para um cantinho minúsculo do dedão da mão esquerda que era o único que pervertidamente continuava a empurrar Alberto contra mim.

Só faltava o motivo. Isso me frustrava, isso me frustra até agora. Ele não seria idiota suficiente para se apunhalar junto comigo sendo que podia apenas me chutar com suas galochas coloridas. Talvez ele soubesse que isso iria doer mais, talvez ele soubesse que esse era seu único plano maquiavélico que eu ainda não havia cogitado. Ah, como ele era inteligente! Mais do que eu podia esperar, uma vingança bem elaborada, quem sabe, uma humilhação pública que levaria tudo que eu tinha, tudo que ele me dera, tudo que me ensinara a conquistar, tiraria de mim meu Al, exatamente, rapidamente e sem barreiras como ele fez com a bala que estava na minha boca momentos antes. 

Com toda certeza subestimei o tamanho do ódio de Alberto por mim. E ainda que existisse uma excitação enorme em saber que pelo menos esse posto eu ocupava unicamente o primeiro lugar, também era um pouco deprimente. O que eu fizera? Como as coisas haviam chegado tão longe? Derrubar socialmente Alberto não parece tão divertido agora. Mas eu consegui e não posso mais me arrepender.

Ele se afastou lentamente de mim, abrindo os olhos apenas quando pode garantir que conseguiria me olhar sem parecer um ciclope. Eu tremia e estava prestes a chorar, mas ele apenas sorriu e foi-se separando de mim aos poucos, ameaçando chegar para perto novamente se eu representasse perigo em alguma maneira. Desceu as unhas bem aparadas pela superfície frontal da minha camiseta até ela acabar numa barra feita à mão.

— Não era isso que você queria? — Maior e de muito mais efeito que qualquer surto psicótico que poderia ter.

Nisso, virou a cabeça como que envergonhado e foi embora ignorando todos que tentavam pará-lo para fazer perguntas, mas não, isso era o prêmio bônus que ele deixaria para mim. Ah, se eu soubesse o que tive que encarar logo depois sua partida, sua fuga, nunca teria desejado que ele saísse da minha frente. Se eu soubesse que aquele cretino tinha deixado um chiclete sem gosto no canto interno da minha bochecha, eu talvez teria criado um pouco mais de coragem para ir atrás dele tirar satisfação. Mas não, eu, como guerreiro vencido, deveria aceitar minha humilhante derrota, aceitar e reconhecer o seu esforço, respeitar todas as feridas e cicatrizes que ele adquiriu para acabar comigo e por isso enfrentar de cabeça erguida toda aquela multidão de adolescentes que acabavam de ganhar o assunto do mês, que já pegavam seus celulares para espalhar a desgraça, que já começavam a avançar para cima de mim. Infelizmente, eu nunca cheguei a respeitar Alberto, caso contrário isso não teria acontecido.

Uma garota, muitíssima apegada a Al, chegou em mim para dizer:

— Eu super apoio vocês, está bem? — ela enganchou seu braço no meu, fazendo-se de simpática, me levando para longe das outras garotas que também tentavam falar comigo — Vocês podem ficar juntos, eu vou ajudar vocês a superarem os outros, está bem? Eu entendo perfeitamente vocês, sei a dificuldade que estão passando, precisam ser fortes, está bem?

Ah, sim.

Somos muito fortes.

Acabamos de sair de uma luta, não está vendo? Não está vendo minhas lágrimas héteras?

Uma pequena confusão no início. Uma ignorância sem tato na lida conosco, uma burrice cega perto de nós, como se dormissem durante uma explicação de matéria de prova e agora, na hora da avaliação viessem pedir a nós a resposta por meio de perguntas desesperadas e objetivas.

Mas assim como dois e dois são quatro não resolvem nossos problemas, posso dizer que sua razão não tem lugar em nossa consideração.

E mais. Buscam respostas, mas sequer sabem a questão. A única que não me permite viver — ou deixar de — por me atormentar, por ser tão tentadora que nenhuma especulação minha foi digna de ser considerada: por que, Alberto? Por que se vingou de mim, de você, de nós tão brutalmente, meu querido?


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Notas finais do capítulo

Ele até me reconheceu, que vontade de socá-lo.



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