E Se O Céu Fosse Azul? escrita por Casinha de Cachorro


Capítulo 3
Terça à tarde


Notas iniciais do capítulo

Este é o fim. O estranho fim.



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É Terça à tarde. Meu Deus, já é Terça à tarde. Se eu resmungar por uma terceira noite seguida à minha mãe que estou doente demais, febril, que juro que se tivesse um termômetro em casa ela veria como estava com pelo menos trinta e oito graus e meio, como estava fraco, com dor de cabeça e olhos pesados, ela não vai acreditar. Na primeira noite, ela nem entrou em meu quarto, me deu boa noite da porta e ofereceu um chá, dizendo que era melhor eu faltar aula no dia seguinte. Eu faltei. Passei a Segunda como tinha passado o resto de Sexta, Sábado e Domingo, deitado na cama com o olhar vago, sentado à escrivaninha com os pensamentos perdidos, jantando com a cara voltada para o prato e alheio ao que estava acontecendo ao meu redor. A cena se repetia e se repetia, de novo e de novo, sugava minha concentração como um acrobata nu no meio de um movimento particularmente difícil diante de uma plateia delirante, e esse era eu, eu estava delirando.

Segunda à noite minha mãe veio sentar ao meu lado para pedir se estava tudo bem. Obviamente ela notou que havia algo de errado em eu passar três dias sem brigar com Nanda, sem discutir com o pai, muito menos sem questionar nada. Talvez ela tenha notado o pedaço de mim que foi arrancado da realidade e designado especialmente para reviver constantemente o que havia acontecido no fim da aula Sexta-feira, para manter Alberto em minha mente. Respondi que apenas estava indisposto, um resfriado, quem sabe, que tinha muita dor de cabeça, uma fraqueza de corpo terrível. Ela fez um olhar de reprovação e me deixou faltar aula novamente. Agora já é Terça à tarde e se eu ainda estiver de frescura ela me levará ao médico e ele fará perguntas, e de perguntas para responder eu não preciso de mais nenhuma além da que está me jogando na cama com o peso do mundo contra meu peito: por quê?

Eu ainda não acredito. Não quero acreditar e é por isso que não fui à escola todos esses dias, porque tenho medo de passar a crer depois de ver Alberto na minha frente depois do... do seja lá o que ele fez comigo. Pegar no sono tem sido difícil, desacelerar meu coração, conseguir relaxar meus músculos para fechar os olhos, é tão difícil que tenho medo de tentar. Esse é mais um dos porquês vindo do porquê maior e mais avassalador, o porquê de toda vez que apoio a cabeça no travesseiro, tiro lentamente a tensão dos músculos e respiro fundo deitando as pálpebras, uma dor venenosa e aguda toma conta do meu peito, me trazendo todo o pânico que eu deveria ter sentido naquele momento... E mesmo quando, depois de muito me revirar na cama entre sucessivas injeções de angústia lasciva, consigo pegar no sono, Aberto me persegue.

De olheiras feitas e cansaço para dois dias, faço bem meu papel de doente. Infelizmente descobri que passar dias vegetando não me levaria a conclusão alguma sobre o motivo que levou Alberto se destruir socialmente, na frente tanta gente que garanto que nunca mais olhará em sua cara por isso, apenas para me dar um tapa tão bem dado. Lógico, é tão encantadoramente inteligente que sabia que me dar um tapa de verdade não seria tão eficiente quanto... quanto... eu ainda não acredito. Alberto me beijou.

Não acredito que ele me odeie tanto assim. Tenho vontade de jogar pela janela tudo que aparece pela minha frente, inclusive eu mesmo, só de pensar que o rancor que ele sentia por eu ter que ficar impondo regras tolas ao nosso relacionamento, por se arrepender de me mimar tanto, tudo de ruim que eu trouxe a sua vida embolado cuidadosamente para ser pago de uma maneira tão violenta e bem planejada.

E apesar de estar muito provavelmente sozinho e incompreendido alheiamente, com um arrependimento maior que Alberto está sentindo agora, se é que está, e uma tristeza infinita por finalmente ter sido largado, eu me sinto bastante orgulhoso dele. Ele atuou muito bem. Uma forma descomunal de convencer a todos a seu redor, menos a mim, claro, pois ele precisava me fazer sentir mal. Estou orgulhoso do empenho dele, estou orgulhoso de mim por ter conseguido fazer ele se empenhar tanto em uma única pessoa, por ter pelo menos feito ele dar uma parte verdadeiramente única dele apenas para mim. Mesmo que para isso eu tenha aberto mão do pouco, mas frequente Al que tinha até então.

Mesmo com todas essas considerações e conclusões, permanece: por que ele se rebaixou junto comigo? Se fechar os olhos e tocar a ponta dos dedos em meus lábios, consigo sentir a boca macia de Alberto ainda na minha, como se ainda estivesse aí para me dar um calafrio pela espinha e arrepiar os pelos do meu braço. Fiz questão de manter bem viva essa sensação como forma de não esquecer o sacrifício dele.

Estou sozinho agora. Matei o único que me entendia.

Matei em mim, claro, pois o real deve estar agora em sua casa, mais que satisfeito por ter me feito ficar e depressão por sua causa, por ter me rebaixado a nada novamente. Acho até que pode ter feito as coisas exatamente desse jeito para me deixar afogado nessas incertezas da causa que o moveu a fazer coisas dessa maneira, ele é mais manipulador que eu sequer posso imaginar.

Nanda sai pela porta de frente e saltita até mim na sarjeta na frente de casa.

— Que te aconteceu?

Nanda tem oito anos e uma compreensão de mim que se limita às coisas que ela rouba do meu quarto. Às vezes tenho vontade de sufocá-la a noite para que ela não precise crescer nem sofrer com as amarguras que a vida vai aos poucos largando para cima de nós. Ela senta ao meu lado, bem viva.

— Nem vem com essa história de que está doente, só a mãe que cai nessas. — Oito anos de pura inteligência, que orgulho.

Paro para pensar um pouco no que responder. Não é uma questão de confiar ou não em Fernanda, é que ela não compreende o fato, não conhece a história toda. Mas sendo apenas uma criança, não se interessa sobre a história dramática do seu irmão adolescente, não me questiona sobre algo desinteressante. E é isso que eu preciso, diminuir as perguntas que até hoje só foderam com minha vida.

— Briguei com um amigo. — Afasto os cabelos que me caíam sobre o rosto. Estou sentado no meio-fio, queixo apoiado nos joelhos unidos ao peito. Mato formigas que passam com um graveto.

— Alberto? Brigou com Alberto, sério?

Olho com o canto dos olhos para ela. Ela me encara incrédula.

— Adrian, você é muito bobo, viu? — Ela agita uma mão me repreendendo infantilmente. — Ele é seu melhor amigo, não pode deixar que uma briguinha estrague a amizade de vocês.

Solto um riso seco, olhando para o céu, desta vez. Viu? Para início de conversa, nunca tivemos uma amizade, depois, não foi apenas uma briguinha. Foi uma batalha final que eu induzi e perdi de modo humilhante.

— Eu sei que você gosta muito dele. Ele gosta um monte de você também, eu sei disso, sabia?

— Nanda, eu não.... Olha, eu e Alberto.... Não.... —Não há como explicar isso para uma terceira pessoa.

— Você acha que só porque eu tenho oito anos você entende mais das coisas do que eu, né? — Ela se encosta em mim, passando a me abraçar. — Mas eu te vejo melhor que você.

Isso, por algum motivo, crava mais fundo a agulha que estava presa às minhas costelas esses últimos dias. Puxo ela contra mim notando como estou confuso e andando sobre afirmações sem bases. Um toque de desespero motivador começa a agitar meu sangue.

— Minha professora disse que quando temos problemas temos que compartilhar porque é por isso que vivemos com a família e vamos à escola com um monte de amigos. Quando temos dúvidas temos que perguntar para quem sabe e quando ninguém sabe a gente mesmo imagina a resposta. Mas nem sempre uma resposta inventada é certa, sabia?

Ouço meu coração martelando em minha cabeça. Eu nunca deixarei a sensação quente e aconchegante do abraço de Al para trás, nunca conseguirei esquecer como ele me olhava de modo carinhoso, como colocava meus cabelos para trás quando caíam sobre minha face. Nunca tirarei isso de minha mente e carne se ainda tiver motivos para lembrar de tudo. E enquanto eu mantiver essa dúvida cruel, esse porquê, nunca afastarei Al de mim. Não posso desfazer o ato que o levou a acabar com tudo, nem me arrependo de reivindicar exclusividade, mas posso pelo menos tirar o gostinho doce do espírito daquele porco arrancando dele os motivos. Ainda não perdi a luta por completo, não vou deixar que ele continue me manipulando mesmo depois do fim do nosso relacionamento. Acabará não só para ele; vou tirar o resto de mim também.

— Entende? É por isso que eu zerei minha última avaliação de matemática. Eu inventei as respostas e não estava certo. Aí a Gabriela brigou comigo porque ela não queria amiga burra, mas então a gente fez as pazes porque a professora mandou.

Sinto uma brisa morna passando entre nós e entendo que mesmo que eu e Nanda não estamos falando da mesma coisa, ela ainda sabe mais do que eu sobre mim mesmo.

— Tem razão, mana. Vou falar com ele. Agora mesmo.

Mando ela entrar para casa e avisar nossa mãe caso ela chegar em casa antes de mim que estou na casa de Alberto. Corro mesmo me sentindo fraco e assustado, um covarde completo, e sinto também uma animação crescer dentro de mim. Afasto a euforia que seria encontrar Al, tento lembrar a mim mesmo que não vou lá para nada mais que fazer uma pergunta. Deus, como meu coração fica pesado a cada passo que dou, como é difícil convencer a mim mesmo que Alberto me odeia e que eu devo odiá-lo também para não sentir-me uma barata.

A casa grande, de cerca cinza, lá está ela. Penso em tocar o interfone, mas nas Terças-feiras sua mãe tem folga e não quero que ela ouça nossa conversa. Pego meu celular e com dedos trêmulos digito seu número, eu o excluí, mas nada adianta quando se sabe os dígitos de cor. Penso em chamá-lo para fora e então conversarmos aqui mesmo na rua, terreno neutro. Sinto que não conseguiria me manter firme num ambiente perfumado com o cheiro hipnotizante de Alberto. Ponho o celular contra a orelha, ansioso, não sei por que, mas ansioso demais. O medo toma conta das minhas pernas.

Ouço o toque dele da janela do segundo andar, onde é o seu quarto. Logo para e a ligação é encerrada.  Afasto o celular do rosto e como nada acontece, ligo novamente, o medo subindo para meu tronco. O toque vem novamente daquela janela, dura dessa vez um pouco mais, aquela música modinha que só Alberto mesmo para pôr de toque do celular, mas logo cessa e mais uma vez a chamada é finalizada.

Engulo a saliva de maneira arranhada, talvez meu resfriado não seja de todo mentira, e ajeito meus cabelos para trás com as mãos começando a suar. Decido então tocar o interfone. Ele tinha que me ouvir, não podia ser tão cruel a ponto de me ignorar por completo.... Não ainda.

A mãe dele abre a porta da sala e colocando a mão sobre a testa vem até mim. Desenchaveia a porta, tem rugas em sua testa e ela parece preocupada, o que me deixa preocupado, mais ainda, o medo sobe sobre meu estômago e sinto um enjoo que me faz engolir a saliva que não tenho.

— Meu Deus, Adrian, que bom que veio. Ele ligou para você?

Faço que não com a cabeça, não entendo o que essa senhora quer dizer.

— Passou a tarde de ontem e hoje todinha trancado no quarto, não sei o que fazer com aquele menino, está me assustando tanto! Nunca ficou assim antes.

Ela me puxa pelo braço para dentro me guiando pela sala, corredor e escadas, parando lá em cima. Eu sei o resto do caminho.

— Ele não quer me contar o que ouve, mas você deve saber. — Um gelo percorre meu corpo, ele está subindo, o medo, está começando a me machucar. — Mas não me interessa se ele não quer me contar. A sua companhia deve melhorar o ânimo dele, vá lá. — Ela dá meia volta torcendo as mãos na blusa fina, soltando o ar preocupadamente. Desce as escadas e eu fico sozinho encarando a porta do quarto dele no fim do corredor.

Vou até lá, estou decidido. Paro em frente ao cômodo, sinto-me desconfortável, há algo de errado nisso tudo. Retomo a mim mesmo o motivo de estar ali para afastar mais dúvidas além das que eu trouxe e endurecendo a postura bato na porta. Um “entra, mãe” veio de lá de dentro e eu abri a porta depois de um momento de hesitação.

Al está encolhido em sua cama, com as cortinas fechadas, o lugar está escuro. Tem metade dos livros de sua estante jogados pelo chão e suas cobertas estão emboladas em um canto do quarto. Ele está de costas para mim e quando me aproximo vejo que seu peito sobre e desce de maneira irregular. Alberto está chorando.

O medo chegou até meu peito e por alguns momentos de horror esqueço de como respirar. Estou em desordem, já estava, agora é um pandemônio interno que me estapeia com a ideia de Al chorando, me estrangulando então por vê-lo frágil daquele jeito.

— Alberto... — sussurro indo em sua direção com passos vacilantes. Doía andar até ele.

Ele se vira para mim, assustado com minha presença e se encolhe contra a parede desta vez. Segura suas pernas esguias entre os braços, mãos que rapidamente varrem os olhos e bochechas para limpar as lágrimas. Parece que se prepara para dizer algo, mas nada sai de sua boca, de seus lábios, foco neles e Sexta-feira volta, estou diante de Alberto, Senhor, como posso tentar retribuir o ódio de uma criatura dessas?

Respiro fundo, paro diante da cama dele. Não posso me deixar levar. Não consigo encará-lo também, então foco nos desenhos do Mickey Mouse que saltitam por seu lençol.

— Alberto, por que você....

— Me desculpe. — Ele interrompe. Sua voz está falha e se vê claramente que luta para não cair no choro soluçante novamente. — Eu não devia ter feito aquilo. Fui longe demais.

Isso me confunde e embaralha as palavras do discurso já pronto que tinha em minha mente, me fazendo ficar com os lábios entreabertos por alguns segundos, sem sair som algum, esperando ele continuar, esperando que algo lógico venha à minha cabeça para dizer. Aspiro o ar do ambiente fechado pensando em oxigenar o cérebro num grande suspiro, mas inalo junto o cheiro tão agradável de Al que está presente por todas suas coisas, por todo seu quarto e isso não me ajuda a refletir. É único. Algo forte, de garoto e desodorante, mas também algo carinhoso e aconchegante. Tem aroma de árvores de folhas finas, de uma floresta de pinheiros ao sol, só que frio e misterioso. Talvez como abraço e outono ou um abraço no outono. Talvez tenha apenas o infinito contido em sua essência e eu esteja captando pequenas partes de um todo mais complexo.

— É sério, eu... eu não sei o que pensei naquela hora. Foi além do meu controle, quando vi, fiz. — Esfrega a palma na face, terminando levando os dedos até os cabelos, enterrando eles no meio dessa cabeleira lisa e clara, espetada de tão desarrumada e despenteada. — Me desculpe.

Balanço a cabeça sem entender. Ele não devia estar reagindo assim.

— Não, Alberto. — Coço a nuca, respiro, sou invadido pela essência de Al, Al está em todo lugar. — Não se desculpe. Só me responda. — Olho em volta, capturo aqueles grandes olhos azuis claros e úmidos, ah, Deus, estão me encarando tão profundamente, com tanta expectativa, com tanta fervura, ele só pode querer me ver dessa maneira, pressionado, desconfortável, sem palavras. — Por que fez isso?

Ele deixa cair o braço que antes apoiava sobre a cabeça, largando-o sobre o colo, flexionando os dedos. Parece treinar estrangular alguém. Fica uns instantes quieto, apenas me encarando fixamente, analisando cada milímetro de mim, físico e metafísico.

— Como é que vou saber? — Diz por fim, irritado com minha pergunta talvez inconivente, desviando os olhos. Levanta da cama com dificuldade e eu tenho o impulso de ajudá-lo, parece que nem forças para se levantar sozinho tem. Começa a recolher os livros que estão jogados pelo carpete. — Como caralhos eu vou saber, Adrian?

Suspira sonoramente, parecendo uma velha. Nunca me senti mais ignorante em toda minha vida. Um completo inútil, ainda por cima, nem consigo entender a pessoa que mais me importa. Para diminuir essa sensação começo a ajudar na coleta dos livros. Fico uns instantes em silêncio, mas minha vontade é tagarelar infinitamente sobre o motivo do porquê vim aqui e fazer isso ser entendido, coisa que... parece que não estou conseguindo muito. Talvez meu Al apenas esteja jogando comigo novamente. Meu não. Al não é mais meu. Nunca foi, na verdade.

— Adrian — começa, mas logo para. Está hesitante, parece confuso, ainda meio irritado. Do jeito que franze as sobrancelhas, o conheço bem, parece mesmo irritado. Mas Al nunca fica irritado de verdade. Ou pelo menos nunca demonstra. — Olha só, não sei bem se entendi por que você está aqui.

Prendo a respiração. Determinação, determinação.

Ponho os livros empilhados na borda da prateleira onde ficam normalmente, eu sei, eu conheço a ordem por assunto que ele criou, sei listá-las na ordem em que ficam postas, livros da escola, livros de idiomas, livros de leitura obrigatória, livros da infância, livros de heróis, modinhas infanto-juvenis, depressivos, de autoajuda, crônicas, nonsense, sagas medievais gigantescas, clássicos pequenos e monstruosos e sua modesta coleção de mangás.

— Ou talvez — continua, vendo que me entreti com os livros e deixei sua pergunta sem resposta. —, simplesmente tenha sido você que não entendeu alguma coisa aqui ainda.

Rio. Me viro para ele, desta vez sim sabendo que tenho resposta. Oh, e como eu sei.

— Eu entendi bem o que aconteceu, bem até demais, Alberto. Entendi que você me salvou, lá naquele dia que nos conhecemos, na oitava série, na atividade de integração, eu me lembro. Entendi que nunca em toda minha vida encontraria uma pessoa como você, e entendi também que você sempre foi tão incrível que nunca ninguém encontraria alguém como você e por isso todos gostam de ti.

— Do que você está falando, seu idiota? — Sua voz começa a ficar embaraçada novamente, seus olhos úmidos me afetam, mas não posso mais parar.

— Então entendi que por você ser a pessoa mais bondosa e carinhosa de todas, nunca rejeitaria o afeto de ninguém que salvou também, nenhum dos seus amigos, ninguém mesmo. Entendi que queria cuidar de todos de uma vez só como fazia comigo. Entendi que não era o único que dependia de você. Não era o único que te queria, nem o único que você queria.

— Você por algum acaso está me chamando de puta? ­— Sim, ele está começando a chorar de verdade, chorando e gritando, ele está mesmo zangado agora, pela primeira vez na vida, mas não consigo mais parar.

— Entendi que sua crueldade era boa e sua bondade era cruel e que isso era viciante. Entendi que você ia atrás de mim para me fazer depender de você, então quando eu me voltava a ti, você me dava as costas apenas para me ver indo atrás. Entendi que tudo isso não passava de um joguinho para você. Um joguinho social.

— Adrian, meu Deus, do que você está falando, pare com isso... — Seu choro me corta, ele me abre, o medo já passou, ou simplesmente tomou conta de todo meu ser a ponto de eu não mais discerni-lo do resto do meu corpo. E agora tudo que eu quero é responder minha pergunta e ir para casa chorar tanto e com tanta vontade como Al está fazendo por minha causa agora.

— Entendi tudo isso de você e ainda sim continuei necessitando de ti, porque você se tornou tudo para mim. Mas também entendi que apenas sua atenção, a mesma que você dava para todo mundo não era suficiente para mim, e sei, eu realmente sei, como fui cruel contigo. Porque minha raiva de mim mesmo por te querer era do tamanho da repulsa que tive por ti. — Nesse momento, Al se apoia na parede, como se ouvir o próprio sistema sendo posto em palavras, desmascarado por seu principal alvo, fosse demais para suportar. — Entendi que isso talvez tenha ido longe demais, que eu tenha ultrapassado os limites da sua paciência infinita, talvez fosse isso mesmo que eu queria. E entendi, por último, que, depois de tanto tempo sofrendo pela minha rebeldia você quis me largar de vez, pois eu era uma ameaça a você. Mas fez isso de uma maneira que podia se vingar de mim também, para que saísse vitorioso no fim. — Al me encara com olhos arregalados e vermelhos, me acusando, chorando com a face desfigurada, que beirava ora o furioso, ora o confuso, ora o atônito. Eu? Não sinto mais nada, nem se vivo ou se já morri para ser a assombração que agora atormenta Al em seu quarto. Talvez seja por isso que me olha assim. — A única coisa que não entendi, meu querido Alberto, é o motivo de eu estar aqui. Porque eu preciso seguir em frente, por favor, apenas me dê esse favor, porque eu respeito demais a ti, eu me orgulho da sua inteligência para todas essas estratégias que você bola, para toda essa organização e manipulação. E eu que pensava que estava a par de todas as suas ideias! — Rio sem achar graça de verdade. — Só me diga por que para acabar comigo em frente a todo mundo você teve que se afundar junto comigo? Se rebaixar a tanto?

Quando acabo de falar, fica um silêncio desconfortável. De fala, claro, porque meu coração martela em meus ouvidos e tento recuperar o fôlego (por falar tanto) da maneira menos ruidosa possível, sem muito sucesso. Além dos grunhidos secos de choro sendo reprimidos por Al, que está me olhando mais pendendo para o desorientado agora. Me encara demais, ele, e começo a me sentir meio idiota por ter feito todo esse discurso para talvez sair daqui sem uma resposta.

Espero Al se acalmar na expectativa dessa resposta. Preciso da resposta. Ele respira fundo, engole o choro e, Deus, ele estende a mão para a Dona Ira, essa vagabunda, que está ao seu lado.

— SEU. IDIOTA. — Ele pega o primeiro livro que consegue alcançar e atira em mim, era O Pequeno Príncipe. — Como é que pôde pensar numa coisa dessas? — Os Treze Porquês. — Você é louco? Você é retardado? Tem problemas? — Memórias do Subsolo. Engraçado que na versão da L&PM foi traduzido como Notas do Subsolo. — Dos grandes, né? ­— Quando roça a mão na Dança dos Dragões, ao lado da versão integral dos Irmãos Karamazóv de capa dura, sei que não vou desviar e vai doer, vai doer mais que perder meu Al, mas não mais que sair sem saber o que vim saber.

Pulo meio abaixado para frente e agarro seu pulso antes que consiga atirar o monstro literário em mim. Al se debate como uma bonequinha de pano, enquanto grita para mim soltá-lo, mas aqueles pulsos branquelos são gravetinhos em minhas mãos, me sinto rude e agressivo, mas não diminuo a pressão. Estou tocando Al, meu Al, mas não importa agora, eu só quero que ele fale para mim ir embora para sempre de sua vida.

Ele só para de me xingar quando a força que faço, sem perceber direito, em seu pulso se torna tamanha que precisa me dar um soco para se soltar. Ele também não mede forças, aquele grande filho da puta, minha cabeça voa para trás e bate na porta. Finalmente solto seu pulso, está vermelho e não consigo me importar. Só quero que me diga. Não me importo com essa dor lasciva que arrebenta meu crânio e fica se chocando contra meu cérebro, fazendo um grande milk-shake cor-de-rosa. Só preciso saber.

— Escute aqui, Adrian, — Ele massageia o pulso, face corada pelo choro e raiva, me encara profundamente, os olhos cristalinos e ensolarados agora tempestuosos, apesar de limpos, sempre limpos. Meu Deus, o que estou fazendo. — Você quer tanto saber essa merda de pergunta, tudo bem, eu lhe respondo. — Dá uma grande puxada de ar, e solta. — Porque eu te amo, imbecil. Eu gosto de você, você sempre foi meu amigo mais especial, mas eu não te vejo só como amigo, está bem?

Não, não faz sentido.

— Mas... — Hesito, esse poderia ser mais um de seus truques. — Sexta-feira passada você fez aquilo porque queria me destruir, foi nossa batalha final...

— Batalha final, garoto? Você está doido? — Joga as mãos para cima, pasmo comigo. Não entendo o que ele diz, começo a me sentir confuso, perdido, nada comparado a antes. Minhas certezas que tinha certeza que eram certas começam a oscilar e só quero saber minha resposta, a resposta final para tudo acabar, não gosto quando contrariam minha versão das coisas, minhas verdades são sempre verdadeiras. — Eu te beijei simplesmente porque eu queria, porque eu desejo você. As pessoas se beijam quando amam, sabia?

Minha cabeça dói da pancada agora, ainda por cima, estou começando a sentir dor cada vez mais forte e não gosto disso, e nada, nadinha faz sentido. Começo também a me sentir idiota, o sangue sobe minha face e queima, sobe a culpa, sobe o medo, sobe o arrependimento e não sei o que fazer. Embasbacado paro olhando Al declarar-se para mim em nossa despedida final.

— Mas contigo foi sempre assim, não é? — Ele passa a mão no rosto, esmagando o nariz, ainda está zangado, mas parece se conter. Lágrimas começam a descer novamente por sua face. — Sempre foi difícil. Você não parece aceitar as coisas como elas são, simples, práticas, sem explicações, você sempre tem que problematizar toda a sua vida, e, adivinha? Você me puxou junto para esse buraco negro que você criou.

— Mas você....

— Sim, Ad, sim — Al me corta. — Eu tenho amigos, eu trato eles bem porque sou uma pessoa normal tentando ser simpático. Mas você... Puts, eu me apaixonei por ti. E você parece uma criança fantasiando mil e uma estratégias para negar isso não importando o quando eu deixe claro para ti. — Põe as mãos nos meus ombros, ele está quente, quente como um dia de verão, com o aroma de outono, me sinto em março, mas estamos em outubro e isso não ajuda a organizar as coisas. — Eu sabia desde o início que talvez você não sentisse o mesmo por mim, mas você sempre me tratou tão... com tanta...  Eu não sei, Meu Deus, você me deixa confuso, ora me abraça e sinto que gosta de mim, ora vira as costas e me sinto um lixo.

Ele faz uma pausa, analisando cada centímetro do meu ser. Era mentira. Al não sabe tudo sobre mim e eu não sei nada sobre ele. E ao que parece agora, também não sei nada sobre mim. Ou da realidade.

— Sei que esse tipo de relacionamento não é fácil. Pensei que era por isso que não queria ficar comigo na frente dos outros. Mas poxa, Adrian, você sabia que eu era gay! E você não falava nada, não dizia nem sim, nem não, apenas ignorava completamente e isso me deixava louco.

Oh, meu Deus, Alberto é gay. Eu não sabia disso, mas de um jeito sabendo, creio. Minha cabeça dói tanto e eu sou tão idiota.

— Então, se quer que eu seja mais específico, depois de tanto esperar, e esperar e esperar por ti, apenas sendo ignorado, Sexta eu resolvi deixar o mais claro que achei que conseguiria. Na frente de todos porque senão você iria me ignorar do mesmo jeito!

Cai em soluços, esforçando-se para falar. Ele está tão perto, tão frágil, tão outra pessoa do que me lembro. Sequer consigo me lembrar direito do que me lembro, dói tanto....

— Não sei, Adrian, juro que não sei. Parece que você tem uma memória seletiva, deleta tudo que não presta para seu joguinho doentio de criar historinhas. Quando vi que você não veio para a aula Segunda pensei estava passando um tempinho para tentar se esquecer disso também. Sério. Eu te amo. Mas você é uma máquina de sofrimento alheio, meu Pai. Eu não posso continuar com isso. Não dá mais. Não tem como. Não tem como se vivemos em realidades, em universos tão diferentes apesar do mesmo mundo.

Então... Nossa relação não era complicada? E.... eu sou especial para Al?

Assinto lentamente, percebo que lágrimas estão escorregando por minhas bochechas, mas não entendo o motivo. Não, hoje não há comparações, elas me fugiram e eu também não entendo. Alberto tira suas mãos de meus ombros, há uma expressão de dor em seu rosto. Deve estar doendo para ele também. Al me parece uma pessoa tão comum agora, não entendo o que aconteceu.

— Então... se você puder ir agora, por favor, seria bom. Me desculpe por tentar amar você, cara. Agora por favor, eu preciso chorar amargamente.

Me inclino para frente, seguro seu queixo entre o polegar e o indicador e ponho meus lábios sobre os dele, Alberto nada faz para me impedir. Afasto meu rosto um pouco, o suficiente para conseguir vê-lo. Al está horrível, choroso, e eu estou confuso. E nem pude sentir sua saliva. Me aproximo e experimento seus lábios novamente, dessa vez entreabrindo-os, e não encontro nenhuma resistência. Ele não escovou os dentes esta tarde.

— Eu não sei, Al. Eu só... não sei.

— Eu sei. Por isso estamos aqui, Adrian. — Ele me afasta delicadamente, parecendo se dilacerar por isso. Al, no fim das contas, ainda continua muito gentil, mesmo depois de me atirar parte de sua pequena biblioteca. — Este é o grande problema.

— Mas eu queria saber.

— Você sabe. Demais e muito, mas aquilo que não é necessário saber. Você pensa demais. — Dá um beijo em minha bochecha e como isso seca minhas lágrimas não sei dizer. — Agora vá embora, e tente explicar para minha mãe no caminho o que foi essa gritaria aqui dentro que ela deve estar, além de preocupadíssima, arrancando os cabelos de curiosidade.

Hesito. Minha pergunta já foi respondida. Prometi que depois disso iria para casa e então tudo teria acabado.

— Você ainda é meu amigo, Al?

Ele sacode a cabeça e se vira de costas, juntando novamente os livros voadores.

— Vá para casa, Ad. Não me machuque mais.

— Mas você me ama ainda?

— Muito. Agora vá embora antes que eu faça Crime e Castigo entrar fisicamente em seu cérebro.

Sorrio, e dando meia volta vou embora. Tinha razão. Esse foi o fim de tudo, tudo acabou, terminou. Nossa relação complicada acabou e tudo deve mudar agora.

Sinto-me ansioso para ver o que começa de agora em diante. O tudo que acabou, mas tem que começar de novo, apesar de diferente. O tudo mudou porque eu mudei, instantaneamente, e noto isso agora. Ai, Alberto, depois de tudo que faço por ti você ainda tem coragem de reclamar? Tsc, vou viver para cair nesses seus joguinhos, seu manipulador. Mas esse, agora, eu não vou perder.


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Notas finais do capítulo

Brigadão por lerem meu trabalho, pessoas, Al nunca saberá disso, mas garanto que se entendesse um pingo da verdade ficaria contente.



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