Dez horas escrita por Yokichan


Capítulo 5
6 horas




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É meia noite e ele está parado na porta do quarto olhando para a cama. No silêncio e no escuro da noite — porque agora parece que apenas ele em toda a rua está acordado —, Heron olha para aquela cama que sempre foi grande demais para se dormir sozinho e pensa que em algumas horas se deitará ali com Annie e fará amor com ela. Pensa em seu corpo branco como leite na penumbra do quarto e pensa que dessa vez será diferente, não apenas mais uma transa qualquer com uma garota qualquer. Não mais um pedaço de carne.

Annie.

Ele pensa que será gentil com ela.

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Heron passeia pela casa. Não sente sono, apenas a mente meio torpe pela cerveja de antes, e tem consciência de que não será capaz de dormir aquela noite. As tábuas do assoalho estalam devagar enquanto ele caminha sem saber para onde. Ao passar pela sala, as sombras das cadeiras da mesa parecendo duas pessoas sentadas no vazio, ele vê emolduradas sobre a lareira as fotos de família que sua mãe havia colocado ali — sua mãe agora morta, assim como os avós e o pai suicida que ele nunca conhecera. Ele se vê criança, aquele garoto apático, entre a mãe e a tia que sorriem para a câmera. Se vê de terno e gravata no dia de sua formatura da faculdade, as mãos enfiadas nos bolsos da calça e aquele mesmo olhar vazio, impessoal.

Ele se pergunta como sempre pôde ser assim.

Uma vez, há muito tempo, Annie havia feito aquela pergunta — “o que está faltando?” — que ele não soube responder. Na verdade, ele ainda não sabe e pensa, agora, que talvez nunca vá saber. Talvez existam coisas na sua droga de vida que jamais terão alguma explicação e talvez um dia Heron desista de tentar descobrir por que.

Annie.

Talvez essas coisas não importem mais.

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Heron sai para a varanda quando estoura um trovão e o som vem rolando de longe, devagar. Ele sente o ar pesado e um aperto esquisito no peito. Tudo está quieto demais. Sentado nos degraus da entrada, ele perscruta o silêncio em busca dos ruídos que os morcegos geralmente fazem no telhado à noite, mas dessa vez não há nada.

Só aquela angústia sem motivo.

Então a chuva cai.

Enquanto observa poças de água nascendo e se estendendo no gramado diante da casa, imagens de estradas alagadas e metal retorcido vêm a sua mente como uma enxurrada que ele não sabe de onde saiu. “Já vai passar”, ele se pega dizendo a si mesmo, mas em seguida procura o celular no bolso do jeans e abre a conversa com Annie no Whatsapp.

— Annie?

— Onde você está?

— Está dormindo?

Ela não responde.

Heron percebe agora que ela é toda a sua angústia e que, embora esteja sempre fadado a perder tudo, não quer perde-la dessa vez.


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