Vínculo. escrita por Isadora Nardes


Capítulo 2
Katrina.


Notas iniciais do capítulo

Como eu imaginei a Katrina: https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/236x/30/1b/1a/301b1ab929e416c13bbdf6a21f32f50a.jpg
Como eu imaginei a Clarisse: http://www.polyvore.com/cgi/img-thing?.out=jpg&size=l&tid=24572113
Como eu imaginei o Ethan: https://s-media-cache-ak0.pinimg.com/236x/3b/f1/14/3bf11427b85f621510a10c5813fcfd57.jpg (Acho que já coloquei, mas não importa u-u)



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Depois que Irmi acompanhou Melanie, de oito anos e um metro e cinquenta, até a recepção, onde alguém provavelmente ligaria para o Conselho Tutelar, Ethan acabou por fazer parte do silêncio incômodo que reinou na sala.

Observou os participantes do grupo.

Havia um homem louro, de terno cinza e gravata vermelha. Dentes tão brancos que poderia haver uma placa: NÃO OLHE DIRETAMENTE PARA ESSES DENTES, RISCO DE CEGUEIRA TEMPORÁRIA. O cabelo impecável e o jeito arrogante faziam-no parecer ainda mais com um empresário sado masoquista.

Uma mulher de cinquenta e tantos anos, com cabelo castanho-avermelhado na altura das orelhas, enrolado. Vestia uma calça jeans de lavagem escura e uma blusa branca florida. Sapatilhas com dois fechos. Parecia a típica mulher dona de casa, como se houvesse saído correndo da cozinha, deixando o avental em algum lugar pelo caminho.

Havia uma garota de uns aparentes 13 anos, de cabelos castanhos embolados, armados e oleosos, que tinha uma cara de sono. Vestia um jeans quase tão estourado quanto o de Ethan, e uma camiseta escrita: Suicide Silence. Usava fones de ouvido que pendiam no pescoço. Parecia uma daquelas pessoas prestes a cair da cadeira de tanto sono e tédio, e que provavelmente estava ali porque alguém empurrar ela pra dentro.

Um homem mulato, de cabelos enrolados despenteados, estava fitando o nada. Vestia uma calça de construção, azul, com uma camisa de flanela cinza. Chinelos estourados nos pés. Parecia ter acabado de sair da cama. Bem, talvez nem tivesse estado em uma.

Ao seu lado, um homem com traços haitianos conferia o celular com um rosto sério. Vestia um terno preto e tinha o cabelo raspado. Como o homem louro, parecia um empresário: sempre ocupado, como se estivesse ali por pura obrigação.

Havia, também, uma mulher loura-oxigenada de vinte e tantos anos, que batia impacientemente os dedos na bolsa de couro. Vestia uma calça jeans preta e justa, saltos beges, um cardigã da mesma cor e uma blusa rosa clara. Tinha as unhas impecavelmente pintadas de um preto penetrante.

Irmi voltou novamente pra sala, com seu habitual sorriso de velha. Sentou-se numa cadeira, e sorriu como se todos estivessem felizes naquele dia. Ninguém esboçou reação.

–- Quem quer começar? – ela perguntou.

–- Hã? – a garota de 13 anos indagou.

–- Começar o que? – Ethan perguntou.

–- O desabafo – esclareceu Irmi.

Ethan teve vontade de rir. Desabafos, reza, fé em Deus, tudo isso é para pessoas com o psicológico fraco. Pessoas que não aguentavam a verdade. E a verdade era que mundo é uma bosta, e não havia muita coisa para se mudar.

–- Eu – disse a garota loura. Ethan olhou pra ela, que se ajeitou na cadeira e começou: -- Meu nome é Stephanie. Tenho 22 anos. Fiz faculdade de artes cênicas, moro com meu noivo e... Nós temos problemas.

Ethan logo imaginou se era alguém dominador e controlador, que a espancava ou perseguia-a. Mas Stephanie disse:

–- Nós estamos falidos.

Ethan quis rir de novo.

Dinheiro.

Sempre dinheiro.

Algumas notas coloridas que as pessoas diziam que valiam muita coisa. As pessoas faziam qualquer coisa por umas poucas tiras de papel. Esse era o problema do mundo. De tudo. A razão da tristeza e de todas as mortes: dinheiro.

Ethan optou por desligar sua audição até o empresário louro começar a falar.

–- Meu nome é Hans. Sou norueguês. Cheguei aqui faz um ano e... Cara, eu preciso de um terapeuta – a postura do homem mudou, como se, de alguma forma, ele tivesse deixado cair uma segunda pele. – Minha vida é um inferno. Assine isso, repasse aquilo, fale com fulano... – Hans bateu as mãos nos joelhos. – Porra, vai se fuder todo mundo!

Ele se levantou e caminhou até a porta, deixando um riso cômico pra trás.

Ethan comprimiu os lábios. Irmi olhou pra ele.

–- Quer dizer algo, meu jovem? – ela perguntou.

Sim, Ethan pensou, você é uma velha hipócrita, que tem uma vida vazia e que põe sua fé num Deus que só existe na tua cabeça de merda.

–- Não – Ethan respondeu.

–- Você não disse nada.

–- Nem quero, obrigada.

–- Ora, vamos. Ninguém vai te julgar.

Vão, sim. Sempre julgam.

–- Qual o problema? – Irmi insistiu.

–- O problema – Ethan retrucou, com certa irritação. – É que eu estou tendo um péssimo dia. E faz dias e dias que eu estou tendo um péssimo dia.

Os olhares se voltaram nele. Se houvesse um buraco no chão, Ethan enfiaria a cabeça ali.

–- Meu jovem... Quer desabafar? – irmi perguntou.

Ethan revirou os olhos e se levantou, jogando a mochila sob o ombro. Foi até a mesa de doces e pegou um cupcake. Colocou-o abaixo da fonte de chocolate. Depois, enfiou metade dele na boca.

Saiu da sala sem dizer mais nada.

Não tinha paciência para velhas hipócritas.

Não tinha paciência para obcessão por dinheiro.

Não tinha paciência para uma mesa cheia de doces servindo só de enfeite.

Não tinha paciência.

* * *

Depois de sua saída dramática (mas nem tanto) da reunião, ele acabou por ir até o esconderijo de Clarisse.

Clarisse era uma pessoa complicada. Bem, nem tanto. Ok, realmente não era complicada, mas até Clarisse era um ser humano, e seres humanos eram difíceis de se lidar (pelo menos para Ethan).

Ethan saiu da rua e se embrenhou num bosque particular não muito longe da reunião. Era o bosque que Clarisse havia herdado os avós – dois milionários ricos que ela nunca havia visto na vida, e que resolveram recompensar a ausência com três hectares de uma mata pegajosa, cheia de araucárias, com um pequeno chalé bem no meio. O bosque não tinha grade, então era normal entrar por ali e achar uma prostituta chupando o pau de alguém, ou algum viciado em crack numa crise de abstinência.

Ethan entrou pela grade principal sem fazer alarde. A campainha estava estragada e Clarisse se recusava a consertar, mesmo que morasse sozinha naquela casa. O caminho de terra tinha algumas pedras pra marcá-lo, uma vez que Clarisse não queria refazer o caminho que já era disfarçado por folhas e gravetos.

Ainda terminando o cupcake, Ethan ouviu os próprios passos farfalhando contra as folhas de tom sépia e os gravetos secos. Pensou em Clarisse e no que ela fazia num sábado às 10 da manhã. Normalmente, ela não acordava antes do meio-dia, uma vez que já estava com a vida ganha por causa do dinheiro que os avós deixaram a ela dentro da casa.

Não sabia que Ethan estava chegando, então talvez estivesse dormindo. Ou fumando. Ou dormindo e fumando. Ora, Clarisse fumava muito. Não chegava a ser um vício, mas era quase. E, às vezes, Ethan fumava com ela.

Talvez, quando entrasse, o cheiro de maconha já o fizesse esquecer alguma coisa daquela manhã. Ou da noite anterior. Ou de qualquer outra parte de sua vida. Talvez...

De repente, algo arrancou os pensamentos de Ethan de sua mente. Não foi como um pensamento corriqueiro que o distraiu, mas sim como se algo literalmente tivesse arrancado tudo de sua cabeça.

Uma música.

Uma música vinda do chalé de Clarisse.

Ela explodiu nas caixas de som.

Ethan apressou o passo, ouvindo a música aumentar gradativamente. Andou mais e mais rápido, até que aquilo virou uma corrida. Ele parou bem na clareira à frente da casa. Era pintada de vermelho, com uma chaminé e uma cerca de madeira inútil, com alguns arbustos.

Podia ser uma casa fofa, onde moram uma vovó e um vovô, onde seus netinhos correm no jardim, se não fosse pelas pichações no muro, pela cerca apodrecida, pelo cheiro de maconha, pelas garrafas de vidro espalhadas no quintal.

Ethan atravessou o jardim e parou na porta, onde havia um tapete na frente, escrito: “Sejam bem Viados”. Ethan riu e abriu a porta. Clarisse estava jogada no corredor, fumando maconha. Ethan se sentou do outro lado do corredor, de frente pra ela.

–- Oi – Ethan disse.

–- Ethan! – Clarisse sorriu. – Vem com a gente nessa... – Clarisse mexeu os dedos pra cima. --... Viagem?

O corredor estava cheio de peças de lego espalhadas, de livros jogados, de DVDs e de bonecas Barbie. Era difícil andar por ali. Ethan olhou para a garota parada ali.

Clarisse tinha cabelos louros. Olhos castanhos. Um nariz pequeno e arrebitado. Lábios rosados que deixavam escapar a fumaça, que passava entre seus dentes. O cabelo dela estava meio oleoso, e ela havia pegado as mechas mais longas da franja e prendido-as num meio coque frouxo. Fios ainda caíam sob sua testa.

–- Sim – Ethan concordou. Puxou o baseado da mão de Clarisse.

Colocou sob os lábios e puxou a fumaça. Esperou. Observou Clarisse. Ela pegava uma pinha e girava nos dedos, com os olhos meio vesgos e um sorriso maluco no rosto.

O efeito da maconha atingiu Ethan em cheio. Sem erva, Clarisse parecia só mais uma retardada. Com erva, tudo ficava muito mais engraçado. Ethan riu. Clarisse olhou pra ele e riu também.

Uma garota apareceu na porta da sala. Ela era baixinha, tinha cabelos marrom-claros – presos num coque alto, cheio de fios soltos -- e olhos castanho-claros – contornados por lápis de olho e delineador. Parecia ter na beira dos vinte anos, e tinha um rosto bonito: nariz levemente arqueado, lábios bem desenhados, pele lisa, cabelo levemente ondulado.

Ela andou até Ethan e Clarisse. Sentou-se ao lado de Ethan e puxou o baseado de suas mãos. Sem motivo aparente, Ethan riu. Aquela garota era muito bonita. Estava séria, mas logo deu risadinhas quando a maconha fez efeito.

Ethan sentiu uma fome enorme. Não como se tivesse botado tudo pra fora... Como se nunca tivesse comido nada na vida. Ansiava apor uma pizza ou, pelo menos, um sanduíche. Clarisse girava nos dedos uma peça de lego, analisando-a de todos os ângulos como se ali tivesse a resposta para o enigma do universo.

A garota de cabelos castanhos encostou a cabeça na parede, soprando a fumaça da maconha. Pela luz que se infiltrava pelo buraco da caixa de correio na porta, Ethan pôde ver as formas da fumaça subindo em espiral pelo ar.

Aquilo, de certa forma, era a coisa mais mágica que ele já havia visto.

Ethan grunhiu de fome.

–- Tem alguma coisa aqui? – perguntou. Sua língua pesava e seus membros também, mas a fome o impulsionava pra frente.

Clarisse apontou debilmente para a porta da cozinha, no seu lado do corredor. Ethan pela primeira vez, reparou no que Clarisse estava vestindo. Um vestido amarelo com algumas prendas de cores variadas, junto com um par de sandálias vermelhas. Estava meio frio, mas Ethan não percebia.

Já havia transado com Clarisse algumas vezes. Por diversão. Em geral, quando estavam bêbados ou chapados. Nada sério; ou melhor, era sério que não teriam nada sério. Haviam feito até um trato que, se um sentisse algo mais forte pelo outro, ia se afastar. Pra ninguém se machucar.

Ethan se levantou e foi até a cozinha. Tinha paredes de lajotas brancas, mas nem tanto, já acumuladas de sujeira e gordura. Os armários eram de madeira azul, e uma mesa redonda de madeira amarela estava no meio do aposento, com quatro cadeiras cercando-a. Nas cadeiras, depositavam-se roupas e entulhos de Clarisse. Um celular ou outro estava jogado por ali.

Ethan foi até a geladeira. Abriu. Havia sorvete, geleias, sopas prontas, pão, pedaços de bolo... Mas Ethan focalizou seu pensamento apenas nas sobras de pizza. Pegou, tirou da geladeira e olhou, sem se incomodar em fechar a porta.

De repente, sentiu uma mão em seu ombro. Virou o rosto. A garota de cabelos marrom-claros estava parada, na sua frente. Ela virou o corpo de Ethan inteiramente pra ela, depois se aproximou.

Ethan ainda estava morrendo de fome, mas deixou a caixa de pizza cair no chão. A garota passou os dedos pelos cabelos castanhos de Ethan, depois colou seu corpo no dele. Ethan ficou espantado, mas estava débil demais pra fazer alguma coisa.

A garota foi beijando seus lábios, e Ethan, meio em transe, beijava de volta depois parava pra respirar. A garota levou os lábios até a orelha de Ethan, e passou os lábios secos por ali.

–- Qual seu nome? – Ethan perguntou, enquanto passava as mãos pelas costas da garota.

–- Katrina – ela disse. A voz dela era meio rouca e meio abafada. Ela puxou os cabelos de Ethan pra baixo e beijou-o de novo. Ethan achava que aquilo parecia algum tipo de alucinação por causa da maconha, mas, quanto mais sentia os dedos dela em seu cabelo, e quanto mais sentia o corpo dela espremido contra o seu, percebia que não estava alucinando.

Katrina.

Era um nome seco, forte, marcante, gelado, penetrante. Parecia ser tudo isso junto. E, naquele momento, parecia inebriante. Ethan subiu as mãos até a nuca de Katrina, e colocou-os entre seus fios de cabelo. Puxou-a pra perto.

Katrina.

* * *

Ethan acordou com fome e dor de cabeça.

Uma dor latejante que cortava sua cabeça como uma faca. E uma fome que deixava um vazio enorme dentro dele. Ethan se sentou no chão, onde estava deitado. Ao seu lad, Katrina ressonava suavemente, esparramada ao lado de uma mesa de centro cheia de garrafas de bebida.

Ethan olhou pra si mesmo. Ainda se sentia meio lerdo. Mas conseguiu ver que havia algo errado. Estava com a camiseta, e com as meias, mas...

Calças.

Onde estavam suas calças?

Olhou ao redor. Encontrou-as jogadas em cima da TV. Na mesa de jantar, havia um garoto alto, magro, negro e bêbado jogado, de bruços. Ele estava vestido, mas parecia que não havia dormido há dias.

Ethan vestiu suas calças, e quando ia procurar sua mochila pra ir embora, viu que Katrina estava se espreguiçando. Ele não soube o que dizer. Provavelmente ela estava tão ou mais chapada quanto ele.

–- Oi – Ethan cumprimentou, vasculhando a sala com os olhos.

–- Oi – Katrina disse, colocando uma blusa preta com decote canoa. Vestiu seus jeans apertados e colocou as botas. Virou-se para Ethan. – Você não disse seu nome.

–- Ethan – ele disse, finalmente achando a mochila.

–- Hum, Ethan – Katrina esfregou a testa. – Você é amigo de Clarisse, né?

–- Algo assim.

Katrina pegou uma bolsa transversal, pendurou no ombro e olhou-se no espelho em forma de óculos que Clarisse tinha na sala. Ela refez seu coque alto, sempre deixando mechas lisas caindo pelos lados. Depois, se encostou na parede e fitou Ethan.

–- Hum... – ela murmurou. – Você estava bem chapado, né?

–- Digamos que sim – Ethan admitiu.

–- Eu também. Mas pelo menos não peguei ele – Katrina apontou para o garoto estirado na mesa de jantar.

–- Quem é ele? – Ethan perguntou.

–- Timothy. Mas a gente chama ele de Tim Vagabundo – Katrina colou os olhos em Ethan. – E você? Tem um apelido, Ethan?

–- Ethan Escudo de Carvalho – ele admitiu, rindo da piada particular. – Um... trocadilho com meu sobrenome.

–- Carvalho?

–- É.

–- Verídico – Katrina assentiu. Abriu os braços, indicando o ambiente inteiro. – Bem vindo ao Clube dos Viados!

Ethan assentiu. Esse era o nome que Clarisse havia dado para o “clube” que formara. No geral, eram as pessoas que frequentavam a casa de Clarisse e que se drogavam junto com ela.

Estar ali fez Ethan se sentir parte de alguma coisa, pelo menos. Era só um bando de adolescentes vagabundos, mas, não importava o que Ethan dissesse, eles estariam drogados demais pra entender uma só palavra, e aquilo proporcionava certa liberdade de expressão.

–- Eu to faminta! – Katrina reclamou. Se virou e foi até a cozinha. – Você vai comer?

–- Não aqui – Ethan disse. Botou a cabeça pra dentro da porta da cozinha. Havia uma pessoa se balançando perto do fogão, mas Ethan ignorou. – Eu tenho que ir, na verdade. Era pra eu estar em casa às... Duas.

–- Ah – Katrina murmurou. – Sei. Mas... As quatro um cara vai chegar com umas pílulas.

–- Não, valeu. Acho que amanhã.

–- Amanhã é segunda.

Ethan sorriu.

–- Por isso mesmo.


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