Vínculo. escrita por Isadora Nardes


Capítulo 1
Cômico, se não fosse trágico.




Este capítulo também está disponível no +Fiction: plusfiction.com/book/604008/chapter/1

Ethan não fingiu um sorriso no carro.

Não era necessário. Sua mãe sabia que ele não estava animado. Sua irmã sabia que ele não estava animado. E ambas sabiam que ele achava aquilo tudo um porre.

O carro parou. Ethan pegou sua velha mochila cinza – socada, arrebentada, pisoteada, rasgada, descosturada, recosturada, suja – e jogou sob o ombro. Nela, só levava um livro, a carteira, o celular, fones de ouvido e uma blusa de manga comprida, para caso sentisse frio.

Ele realmente achava que frio era a última coisa que iria sentir – pelo menos no fim de março. Embora Curitiba fosse uma das capitais mais frias do país, a cidade ainda estava sujeita a mudanças devidas as estações do ano.

-- Não vai dizer tchau? – a mãe perguntou, quando Ethan abriu a porta sem dizer nada.

Ele olhou pra mãe. Era gorda, com cabelos castanho-escuros ondulados que estavam falsamente pintados de um louro-ovo desbotado. Ethan a detestava. Não sabia como era possível detestar a própria mãe, apenas a detestava. Às vezes, ela nem precisava falar nada – embora fosse um milagre quando ela ficasse quieta.

-- Já tem hipocrisia o bastante por aqui – Ethan retrucou, virando o rosto. Saiu do carro, ignorando as repreensões da mãe, e bateu a porta atrás de si. Quando estava a alguns passos da porta, o carro arrancou e saiu, em alta velocidade, pela rua vazia.

Ethan pensou que deveria sair correndo dali. Afinal, correr era o que ele sempre fazia. Corria de sua mãe, de sua irmã, de seu psicólogo, de seus colegas, de seus professores, de sue pensamentos.

Mas não podia correr de si mesmo.

E não podia correr da recepcionista que deu um sorriso falso e abriu a porta.

-- Deseja algo, meu bem? – ela perguntou, numa voz doce, quase um falsete.

Ethan podia simplesmente sair andando sem dizer uma palavra. Ele já havia pensado várias vezes em fazer isso. Ninguém realmente sentiria sua falta. Sabia que o mundo era repleto de possibilidades, e cada átomo, cada célula, era só mais um amontoado de possibilidades.

Mas Ethan não estava entre elas.

Então, ele poderia simplesmente sair andando, com a mochila nas costas, sem rumo, sem preocupações, sem nada pelo qual realmente valha a pena lutar. Ele poderia sair e não voltar mais. Poderia se jogar de algum lugar ou poderia arranjar uma arma. Poderia ter uma overdose ou simplesmente morrer de fome.

Mas ele optou por dizer:

-- Estou aqui pra reunião.

* * *

A sala era pintada de um bege claro inexpressivo. Uma linha de madeira escura traçava a sala inteira, alguns centímetros acima da linha da porta. As janelas eram grandes, quadradas, e estavam abertas. Totalmente abertas. Cortinas abertas, ventarolas abertas e cortinas abertas.

Ethan se sentiu exposto. Não era muito fã de ambientes claros. No escuro, as coisas ficavam melhores. A dor podia se esconder nos cantos. Mas, na luz, era bem fácil achá-la. E, embora aquela reunião fosse realmente algum tipo de “claridade mental”, Ethan preferia engolir a dor e depois descontar em outro lugar.

Num extremo da sala, uma mesa de madeira com uma toalha branca de renda abrigava alguns doces e salgados. Bem, não alguns: muitos. Havia cozinhas, pasteis, risoles, brigadeiros, mini pizzas, tortas, bolos, beijinhos, bombons, e, de quebra, uma pequena fonte de chocolate escorria. Parecia mais um encontro para estimular a obesidade do que um encontro para pessoas com problemas.

Ethan se contorceu com o pensamento.

“Pessoas com problemas”.

Ethan não tinha problemas. Quer dizer, ele tinha, tinha muitos problemas. Problemas na escola, problemas em casa, problemas de concentração, problemas sociais, problemas de autoestima... Sua vida era um bolo de problemas, se acumulando, um atrás do outro, como uma enorme bola de neve.

Mas, na concepção de mundo que Ethan tinha, aquilo não era nada. As pessoas supervalorizavam a aparência e o convício social. Assim como tudo, sempre, parecia rodar em volta do dinheiro. “Vamos para tal lugar?”. “Não”. “Por quê?”. “Custa dinheiro”.

Ethan se recusava a ser assim. Sua vida não ia se acabar em éons por causa de algumas tiras de papel que as pessoas diziam que valiam muita coisa.

-- Meu bem? – uma voz chamou Ethan. Ele se virou.

Era uma velhinha de uns bons setenta anos, um sorriso meigo, olhos cinzentos, cabelo branco, pele palidamente rosada e enrugada. Vestia uma calça preta, uma blusa branca e um cardigã de lã rosa. Nas mãos enrugadas, segurava uma prancheta.

Parecia muito normal.

Pessoas normais eram, no geral, estúpidas.

-- Hã... Oi – Ethan cumprimentou. A velhinha parecia esperar que ele dissesse mais alguma coisa, então ele completou: -- Meu nome é Ethan.

A velhinha sorriu e consultou o papel preso à prancheta. Ela passou a caneta pelo papel, sem encostar. Depois, levantou o rosto para Ethan.

-- Ethan Carvalho – a velhinha disse.

Ethan lembrou-se que seus colegas o chamavam – carinhosa ou zombeteiramente – de Ethan Escudo de Carvalho.

-- Sim – Ethan disse. – Eu vim pra... Reunião.

-- Claro – a velhinha concordou. Estendeu a mão enrugada. – Meu nome é Irmi Gallifrey.

Gallifrey?, Ethan pensou.

-- Você conhece o Doutor? – perguntou, sem pensar.

-- Desculpe, quem?

-- Ninguém. Deixa pra lá – olhou em volta e virou-se novamente para Irmi. – Tem um banheiro que eu possa usar?

-- Claro, bem ali – Irmi apontou para uma porta perto da mesa de doces. Ethan agradeceu, e foi até a porta que ele não sabia que existia.

Ethan bateu na porta, mas ninguém veio atender, então ele abriu. Entrou e trancou a porta. Sentia-se bem melhor com as portas trancadas, com ele trancado, com a dor trancada.

Não ligou a luz, pois a luz que vinha da ventarola era suficiente para iluminar parcialmente o banheiro. Olhou-se no espelho. Cabelos castanhos cacheados. Olhos castanhos. Um rosto esculpido. Um pomo de adão que ia pra cima e pra baixo conforme suas palavras pulavam por seus lábios finos e compridos.

Sorriu.

Por fora, parecia totalmente normal.

Só parecia.

* * *

Ethan estava sentado na roda, por mais que quisesse sair dali.

Não olhou para as pessoas. Quem comandava a conversa era Irmi, e Ethan ficou olhando dela para o chão, depois para o teto, para as paredes, para as janelas, para a porta, pra si mesmo, depois para Irmi novamente.

A dor em seu peito sempre retornava, mas naquele momento parecia mais avassaladora do que nunca. Ele queria pular da janela e correr, mas suas pernas não obedeceram.

A única coisa que fez Ethan quebrar o ciclo de olhares para o nada foi uma voz infantil.

-- Hum... Eu me lembro de um homem.

Ethan virou abruptamente o rosto para a direção da voz. Era uma garotinha de cabelos marrons claros, de olhos castanho-escuros e de uma pele saudavelmente corada. Tinha bochechas rosadas, e vestia um vestido azul até os joelhos, junto com uma sapatilha verde e uma tiara da mesma cor. Ao lado da cadeira, havia uma bolsinha verde.

-- Ele era estranho – a garotinha continuou.

Ethan, pela primeira vez, olhou para o resto das pessoas. Todas pareciam abismadas pela garotinha ter falado. Não porque ela estava quieta, mas porque era uma garotinha falando sobre um homem estranho.

Ethan teve um mau pressentimento.

-- E quando ele chegava perto de mim, eu sentia dor – a garota disse.

Ethan prendeu a respiração. Nunca sentia pena de garotinhas, mas estava um pouco óbvio o que havia acontecido.

-- E ele era mau. Todo mundo disse que ele era mau – a garota não esperava respostas para suas frases.

-- Q-quem? – Irmi indagou.

-- O homem, dããã – a garotinha abanou as mãos, como se fosse óbvio. Em outra situação, Ethan teria rido, mas aquilo era meio macabro demais até pra ele.

-- Que homem?

-- Ninguém sabe o nome dele. Mas ele foi embora, e ficou tudo bem.

O silêncio parecia comprimir tudo e todos. Ethan sentiu algo se formando em sua garganta, Só sentia aquilo depois de uma discussão com a mãe – em geral, aquelas em que ela não se importava de soltar pra fora toda a merda em sua cabeça. E, em geral, essas merdas tinham algo a ver com o fato de Ethan simplesmente ser como era.

-- Ah... – Irmi murmurou. – Hum, e onde estão seus pais, meu bem?

-- Eles vêm quando eu ligar – a garota disse.

-- Quando você ligar?

-- Com meu celular – a garota tirou um Iphone 5 da bolsa, e balançou-o no ar.

Ethan se surpreendeu. De repente, parecia bem cômico: a garota não podia ter mais que nove anos, e tinha um celular melhor que o dele. Mas Ethan ainda não conseguia rir, porque, apesar da graça, aquilo continuava a ser macabro.

-- E qual o seu nome? – Irmi perguntou.

-- Melanie – a garotinha disse, sorridente.

Ethan arregalou os olhos. Ela parecia ainda mais nova com o sorriso infantil estampado na cara.

-- Quantos anos você tem? – Irmi voltou a perguntar.

-- Oito – a garota disse, enrolando uma mecha de seu cabelo.

Aquilo era o clássico.

Seria cômico, se não fosse trágico.


Não quer ver anúncios?

Com uma contribuição de R$29,90 você deixa de ver anúncios no Nyah e em seu sucessor, o +Fiction, durante 1 ano!

Seu apoio é fundamental. Torne-se um herói!


Notas finais do capítulo

Comentem.
Papai do céu manda pro inferno quem deixa no vácuo.