Vínculo. escrita por Isadora Nardes


Capítulo 3
Você não é estagiário?




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Ethan enfiou as mãos no bolso do moletom.

O frio havia aumentado consideravelmente. Provavelmente já estava frio quando Ethan estava chapado, mas a maconha não o deixava perceber. Ele colocou o capuz, coisa que quase nunca colocava, porque ficava parecendo um marginal, mas o frio era muito.

A rua era verde, fria e deserta. Não era muito longe de sua casa. Ethan olhou pro céu. Estava cinza, com ocasionais nuvens brancas, mas sem uma pitada de céu azul. Não parecia que ia chover, e não parecia que nada ia mudar.

O morro íngreme começou, e Ethan resolveu contorná-lo. Com o tamanho de sua fome, poderia até cair de fraqueza no meio do morro. Então, sairia rolando e rolando, ao infinito e além...

Ethan só percebeu que era muito cômica a cena em sua mente quando riu audivelmente. Ele fez o caminho mais longo pra casa. Ruas e ruelas, cachorros latindo, carros parados, casas arrumadas, casas desarrumadas, pássaros voando baixo, pássaros voando alto...

Lembrou-se de Katrina. O cabelo liso cor de mel, os olhos castanho-claros, a pele levemente bronzeada... Ela era incrível. Provavelmente não transaria com Ethan se ambos não estivessem chapados, mas isso não anulava o fato de que ela era incrível.

O barulho começou na rua que cruzava a de Ethan.

Ele apressou o passo, sem motivo aparente. Barulho significava pessoas, e pessoas significavam multidão, e multidão significava olhares, e Ethan não gostava de olhares.

Ao avistar as viaturas policiais em sua rua, os músculos de Ethan se contraíram. Ele tentou se tranquilizar, dizendo pra si mesmo que não era em sua casa. Podia ser na casa vizinha. Marlene, a mulher gorda e ruiva oxigenada da casa ao lado, poderia ter tido um ataque cardíaco.

Mas, quanto mais ele se aproximava de casa, menos acreditava naquilo.

E a descrença o invadiu quando sua mãe entrou na linha de visão. Ela estava sentada numa viatura de porta aberta. A mãe dele tremia compulsivamente, chorava, de rosto vermelho, com a boca afundada num lenço branco de pano.

Ethan olhou em volta. Três viaturas policiais. Duas ambulâncias. Os vizinhos haviam saído para xeretar. Alguns conversavam com policiais, outros preferiram fofocar entre si. Ethan voltou seu olhar para as viaturas.

Algo estava faltando.

Não, não algo.

Alguém.

Ethan vasculhou, com os olhos, o perímetro. Nem sinal de sua irmã, Marcela. Ethan deu alguns passos, alongando o pescoço, mas a garota não foi vista. Uma policial parou Ethan. Tinha cabelos pretos como breu, olhos cinzentos, uma expressão severa.

–- Quem é você? – a policial perguntou.

–- E-Ethan – ele respondeu, ainda procurando marcela.

–- Quem é você?

–- Filho d-dela – Ethan apontou debilmente pra mãe.

A policial olhou para a mãe de Ethan depois examinou Ethan. Fungou, e sua expressão piorou.

–- Você andou fumando? – ela perguntou.

–- Onde tá a Marcela? – Ethan respondeu com outra pergunta.

–- Não te interessa.

–- Onde ela tá?

–- Você fumou, rapaz?

–- Mãe! – Ethan gritou, driblando a policial, apenas para dar de cara com outro policial, duas vezes mais alto e com ombros mais largos. A mãe de Ethan levantou o rosto, se levantou, e correu com seu corpo gordo na direção de Ethan. – Mãe...

–- Ethan! – ela gritou. Foi abraçar o filho. Ethan levantou os braços, como se quisesse fugir do abraço da mãe, mas não fez nada. Apenas ficou olhando da policial para a mãe, incrédulo.

–- Onde tá a Marcela, mãe? Mãe? Mãe, onde que ela tá?

Uma conversa, entre todas as outras, se destacou:

–- E a autópsia?

–- Não é necessário. Ela morreu por causa do tiro.

–- Claro que sim. Mas é procedimento padrão. Assim como o teste de balística.

–- Isso também é óbvio.

–- Fugir da burocracia não vai te ajudar muito.

–- Poupa tempo.

Ethan se virou para a conversa. Os dois homens olharam pra ele. Um deles era negro, com cabelos repicados, e olhos castanhos. O outro tinha cabelos castanho-avermelhados e olhos verdes opacos.

–- Autópsia? – Ethan perguntou. O de olhos verdes deu de ombros, e disse:

–- Sim, daquela menina lá – ele aprontou para um pano estendido no chão do outro lado da calçada. Ethan seguiu o olhar. O negro deu um cutucão no amigo, e se virou pra Ethan:

–- Você é estagiário? – perguntou.

–- Não – Ethan respondeu, sem olhar para ele.

–- Você é da família?

–- Aquela é a Marcela?

–- Er, bem... Hã... Acho que é o nome dela, né? Bem, é. Marcela. Marcela Carvalho.

Ethan driblou policiais, escapou de olhares e ignorou vozes. Parou, em pé, ao lado do pano na calçada. Havia sangue escapando do lado do pano, como se este não fosse grande o bastante.

Ethan se ajoelhou, perto demais do sangue, que exalava um cheiro ácido. Ele não usou tocar no pano, apenas levantou os olhos para uma mulher negra, de lábios cheios e olhos levemente puxados, com um cabelo cacheado cheio, num Black Power descontrolado.

–- Mar... Cela? – Ethan perguntou, incrédulo. Não conseguiu formar uma frase completa.

A mulher se ajoelhou ao lado dele.

–- Receio que sim – ela disse. – Morreu rápido. Um único tiro na artéria aqui, ó – ela apontou para o próprio pescoço, sem precisar descobrir o corpo. – Sangrou em questão de minutos. Se tivéssemos sido mais rápidos, não adiantaria, nem com todo coagulante do mundo.

A mulher olhou para Ethan, como se finalmente percebesse com quem estava falando.

–- Você não... É estagiário?

Ethan não respondeu.

–- Marcela – foi tudo o que ele conseguiu dizer.

Ficou sentado na calçada. Encolheu as pernas, encolheu os ombros, ficou olhando para o sangue. Não conseguia se mexer. Numa hora, Marcela estava lá, arrogante e ríspida, viva, e na outra, estava estirada na calçada, sendo comentada por pessoas e mais pessoas.


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Notas finais do capítulo

Meio pequeno em comparação aos outros, né?