O Grande Palco da Vida - Live escrita por Celso Innocente


Capítulo 22
Criança: A idade do perigo.


Notas iniciais do capítulo

Este capítulo continua forte



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Quase dez horas daquela manhã, na mesa do café, ele estava sério e nada falava. Não cumprimentou a nenhum de nós. Eu ainda preocupado, apenas cumprimentei a todos, mas também permaneci calado. Marcos, porém cortou o silêncio:

— Hei Regis, que bicho o mordeu? Você está com uma cara de bravo!

— Não foi nada! — negou ele levantando-se. — Com licença!

— Se não quiser conversar não é preciso, mas pode continuar no café.

— Não, obrigado! Não estou a fim de tomar café!

E se retirou, retornando ao apartamento.

— Willian, acho que nosso garoto de ouro está doente — alegou Jardel que não sabia do ocorrido. — É melhor você ir verificar.

Levantei-me e pedi:

— Me dão licença!

— É melhor você maneirar a barra — pediu Pinduca.

— Que nada! — negou Marcos. — Vá falar com ele.

Segui até o quarto, onde o encontrei deitado. Aproximei-me e perguntei:

— Você está doente?

— Estou muito bem! — respondeu-me secamente.

— Levante-se, eu quero falar contigo.

— Não quero conversar!

— Mas eu preciso falar!

Ele se levantou igual burro bravo, dizendo:

— Pois então fale com as paredes!

E se retirou, batendo a porta do quarto, me deixando sozinho.

Desocupamos o hotel próximo ao meio dia e seguimos para Rolândia, também no Paraná, onde logo mais à noite daquele sábado faríamos show. Paramos para o almoço em um restaurante à beira de estrada, por volta das treze horas.

Embora Pinduca tivesse dirigindo o carro e eu seguindo com Regis no banco traseiro, durante todo esse percurso da viagem e o almoço, ele não mencionara sequer uma palavra com nenhum de nós.

À tarde, como muitas vezes fazia, ele se negou a ensaiar e fazer teste de palco com os músicos.

Vinte horas, o ginásio de esportes superlotado e apesar de minhas tentativas em puxar assunto, ainda não havíamos conversado. Quando resolvi entrar em seu camarim, ouvi Marcos falando com ele, então, embora não seja educado parei na porta e fiquei ouvindo:

— Garoto, você não pode ficar tanto tempo com raiva de Willian. Ele é seu empresário! Vocês precisam se falar!

— Ele me deu um tapa na cara! Nem papai nunca fez isso...

Mudou rapidamente de fisionomia, para ainda mais triste. Acho que se lembrou de quando seu pai lhe fora muito cruel, na época do circo.

— Mas ele está arrependido! Foi num momento de nervosismo. Você sabe melhor do que ninguém que Willian jamais faria você sofrer.

— Ninguém tem o direito de bater em mim! Nem Willian, nem meu pai... Nem ninguém! — começara a chorar.

— Mesmo que você, com dez anos de idade leve uma garota pra sua cama?

— Ele já foi fofocar pra você, é?

— Fofocar não! Ele foi contar o ocorrido e pedir meu conselho, minha opinião! É diferente de fofoca.

— Por acaso ele disse que eu já estava dormindo quando a menina me beijou na boca e que quando eu acordei ela já estava quase nua?

— Não! Isso ele não disse! Mas ela era boazuda? — riu Marcos.

— Não interessa!

— Tudo bem! Desculpe! Mas você não pode ficar com raiva dele! Acima de tudo ele te ama.

— Eu não sou mulher pra ele me amar!

— Mas ele te ama! Como a um irmãozinho!

— Que irmão! Hem?!

— Depois, você não é tão inocente assim! Já que queria estar com a garota, por que não a levou ao banheiro? Ou pelo menos não fechou a porta com chaves? Nesse caso, quando chegasse alguém e fosse abrir a porta ela estaria trancada, então você se assustaria com o barulho, pediria pra esperar, jogaria a garota pela janela, vestiria uma roupa, abriria a porta e diria que a trancou porque estava com medo de ficar sozinho.

— Não tenho medo de ficar sozinho!

— Mas diria que tem! Apesar de que estava muito bem acompanhado.

— Por favor, Marcos. Preciso me aprontar pro show.

— Está com vergonha de se despir na minha frente? Aposto que na frente da garota não teve vergonha.

— Me deixe em paz, por favor!

— Só quando você me prometer que não está mais com raiva de nosso empresário.

— Não vou prometer nada!

— Orgulhoso você, não? Por causa de um leve tapa que nem sentiu, não pode mais ser amigo de quem lhe ajudou tanto!

— Não sou orgulhoso! Por favor, eu quero me trocar!

— Pois que se troque enquanto a gente conversa! Ou vai me tocar daqui?

— Estou sendo educado. Deixe-me em paz!

— Já pensou se fosse seu pai que tivesse visto tal cena?!

— Já pensou se fosse seu pai... — repetiu ele com sarcasmo. — Vitrola enroscada? Todo mundo fala isso? Até parece que meu pai é o capeta!

— Ele pode não ser o capeta! — insinuou Marcos, nervoso. — Mas que lhe daria umas merecidas cintadas, isso ele lhe daria com toda certeza!

Marcos se retirou, porém ainda parou na porta e concluiu:

— Além do mais, toma decisão sozinho de criticar organização de eventos. Tem coisas que precisa de aval de outras pessoas pra não complicar o grupo!

— Não sou ator e não sei fazer shows com trechos decorados!

— Falar o que pensa sem pensar direito, pode prejudicar toda a equipe!

— A equipe vai ter que se acostumar! — insistiu o menino, com raiva.

— Quando o nome diz equipe, significa um grupo unido. Uma pessoa não pode falar sozinha em nome da equipe sem uma consulta prévia. Mesmo que você se julgue o dono da equipe, nunca mais faça isso!

Acabou de se retirar, sem, contudo me ver, pois quando notei que ele iria se retirar, me afastei rapidamente.

Um minuto depois, ao retornar para falar com o garoto, tornei a me esconder, ao avistá-lo se encontrando por acaso com Pinduca no corredor. O músico tirou um frasco do bolso, abriu-o, despejou duas pequenas bolinhas prateadas na mão direita e levou rapidamente à boca, depois estendeu o frasco para Regis dizendo:

— Quer uma?

— O que é isso? — especulou o menino surpreso. — Droga?

— Que isso, garoto?! — ironizou Pinduca. — É apenas um estimulante. Pegue uma.

— Pra que serve isso? — especulou ainda desconfiado o menino.

— A gente que trabalha à noite e dorme tarde precisa de algum estimulante. Pode tomar. Vai lhe manter ativo.

Regis, se mostrando mais ativo do que sua verdadeira pouca idade, franziu o nariz e tentou se afastar. Pinduca ainda insistiu:

— Pode tomar, menino! Você está nervoso por causa da briga com Willian. Ajudará a se acalmar.

— Não tomo remédios! — negou ele visivelmente assustado.

— Confie em mim! Fará bem para ti durante o show.

Percebendo o perigo da situação, me aproximei, praticamente ordenando.

— Regis, volte a seu camarim. Tá na hora de se aprontar.

O menino, sem contestar se retirou. Pinduca guardou o frasco e eu praticamente com ódio lhe adverti:

— Nunca mais ofereça isso ao menino!

— Eu só estava brincando! — desconsertou-se o músico. — Caso ele aceitasse eu negaria.

— Nunca mais faça isso com o menino! Nem brincando! Nem agora e nem quando ele deixar de ser menino!

— Não é droga!

— Não! É bolinha pra deixar doidão! Se você quer usar drogas e acabar com sua vida, problema seu! Mas deixe crianças fora disso!

— É apenas um tipo de energético.

— Nunca mais nem tome isso perto do menino! Deus do Céu será que tenho que protegê-lo até dos próprios companheiros?!

Entrei no camarim, onde encontrei Regis sem camisa, sentado no sofá, se preparando para o show que iniciaria a pouco. Sentei-me em uma cadeira e tentando puxar assunto, falei:

— O ginásio está lotado. Você já viu?

— Lotado ou vazio pra mim tanto faz, o trabalho é o mesmo — o alegou sério.

— Regis, você não percebe que eu quero pedir desculpas, poxa!

— Você bateu em mim! Jamais esperava que isto fosse acontecer!

Levantei-me da cadeira e sentei-me junto a ele, tentando colocar o braço direito sobre seu ombro, mas ele se levantou, recusando-me.

— Foi um grande erro, eu sei! — continuei. — Jamais bateria em você!

— Mas bateu! — insinuou aflito. — Você fica nervoso e sou eu quem apanho? Se eu ficar nervoso posso bater em você?

— Regis, isto jamais tornará a acontecer! Prometo! Você sabe que sou contra o espancamento de crianças.

— Se eu lhe denunciasse à polícia, você poderia ser preso e processado.

— Sem dúvidas. E deixaria de ser seu tutor.

— Mas eu jamais faria isso. Devo-lhe tudo o que sou hoje, meus discos, minha carreira, meu sucesso, minha riqueza…

— Você não me deve nada! Tudo o que você é, é fruto de sua vocação e dedicação. Nunca pense desse jeito! Só quero de você sua amizade. Quero ser seu amigo pra sempre! Por favor, não tenha ódio de mim!

— Eu não tenho ódio de ninguém! — negou com lágrimas sentidas. — Só estou magoado.

— Magoado eu aceito — insinuei rindo. — Afinal aconteceu algo muito chato mesmo! Mas vou esperar você me perdoar.

— Por favor, não conte nada ao papai, pois provavelmente ele me baterá e mesmo que não bata, ficarei com muita vergonha.

— Deixe de ser bobinho! É claro que não sou doido de contar a seu pai! Problemas que acontecem conosco ficam entre nós. Nós só contaremos a seus pais as coisas boas, pois assim estaremos compartilhando. Além do mais, se eu tivesse a sua idade e meu pai ficasse sabendo que aconteceu isso comigo, ele me castraria.

— Willian, eu já lhe disse, aquela mulher entrou em meu quarto sem eu querer. Eu já te disse uma vez também, que quando eu tiver sua idade vou gostar muito de garotas; se puder vou sair com uma diferente a cada dia! Mas por enquanto eu não gosto! Tenho até vergonha quando tocam nesse assunto comigo. Só gosto de mulheres por amizade! — sentou-se na cadeira de frente à janela que mostrava uma linda visão da rua, devido à cortina entreaberta. — Do mesmo modo que gosto de homens… de crianças…

— Eu acredito. E você está certo, tem que ser criança!

— Isso que eu quero ser! Criança! Não quero sexo!... Nem drogas!

— É isso! Você corre um grande risco na vida, menino — insinuei triste. — Até pessoas que convivem com a gente tentam quebrar sua inocência. Você precisa ser esperto e forte.

Ele se levantou, dobrou o braço esquerdo forçando seus bíceps e com a outra mão, batendo em seu pequeno muck de um músculo em formação, insinuou:

— Sou bem forte e muito esperto!

— É! Que Deus te proteja! Você não precisa ser forte aqui! — bati a mão direita em meu próprio muck esquerdo, depois elevei-a sobre a cabeça. — Você tem que ser muito forte é aqui.

— Eu sou! — riu ele. — E Deus é meu protetor.

— E você não está mais com raiva de mim? Só magoado?

— Não estou nem magoado mais! — afirmou ele, com certo sorriso maroto.

— Puxa! Obrigado! — exclamei contente. — Eu estava com tanto medo!

— Medo de mim?

— Medo de você deixar de ser meu amigo!

— Isso nunca vai acontecer! Sabe, eu amo você! Amo meu pai... minha mãe, amo Tony! Jardel, Daniel, Lucas, Felipe, o Marcos… Pinduca...

— Acho que teremos que demiti-lo.

— Nããão! — falou com muita convicção. — Devemos ajudá-lo!

Puxou-me pela mão.

— Venha cá.

Levou-me até a cortina do palco e por uma fresta me mostrou o público, dizendo:

— Amo a todos eles.

— São todos seus fãs — aleguei.

— Não! — negou ele. — Não tenho fãs! São meus amigos!

— Você conhece a todos?

— Infelizmente não! Mas eles me conhecem e gostam de mim. Vieram todos nos visitar. São amigos seu também!

— São poucos os que me conhecem.

— Não se precisa conhecer pra ser amigo! Nós no fundo não conhecemos Jesus Cristo, mas o queremos como a um amigo e irmão.

— Você é muito inteligente.

Ele me abraçou com o mesmo sorriso bonito de sempre, que deixava aparecer à covinha que tinha nas bochechas.

— Nunca mais brigarei com você — alegou. — Prometo!

Assim que me deixou, olhei firme em seus olhos e lhe questionei:

— Pinduca já lhe ofereceu aquelas bolinhas prateadas antes?

— Não! Foi a primeira vez.

— Nunca aceite coisas de ninguém — pedi preocupado. — Mesmo que jurarem ser remédio.

— Não se preocupe, amigo Willian! — riu ele com ironia. — Só pareço uma criança inocente.

Achava que o show daquela noite seria horrível, devido o acontecimento da noite anterior, mas graças à reconquista dessa bela amizade, o show foi ainda mais bonito. Nossa felicidade, o menino retransmitia também com muita euforia ao público presente.

Na manhã seguinte, o próprio Regis, como grande conselheiro conversou com Pinduca, dizendo que não se brinca com crianças e adolescentes, lhe oferecendo drogas, pois estes dois seres indefesos são muito fáceis de convencer e uma vez preso ao tal submundo, não haverá mais retorno e que ele, mesmo adulto, deveria abandonar este lixo e perceber que teria então mais qualidade de vida. Pinduca só retrucou, insistindo de que aquilo não era bem uma droga e sim um estimulante. O menino, porém, ainda insinuou convicto:

— Até água é droga! Se ela se tornar um vício!

©©©

Ainda naquela manhã, quando já nos preparávamos para deixar o quarto do hotel com destino a São Paulo, minha consciência continuava sentida, devido os acontecimentos daquela viagem.

— O que há Willian? — questionou-me o pequeno. — Você parece assustado!

— Sente-se aqui comigo — puxei-o até a cama, sentando-nos lado a lado.

— Esqueça o que aconteceu. Está tudo bem agora.

— Uma vez em uma palestra religiosa o pastor disse assim, cuidado com sua língua, pois uma palavra proferida jamais voltará atrás. Mesmo que você peça perdão e a pessoa que foi ofendida lhe perdoe, ela jamais se esquecerá da palavra que ouviu.

— Tá bom.

— Regis, o que aconteceu conosco nesta viagem, passará dezenas de anos e você nunca esquecerá.

— Eu sei! Mas nossa amizade é mais forte que isso.

— Quando eu era criança sempre apanhava de minha mãe. Ela nos batia com uma varinha verde fina, que levantava calombos em nossas pernas nuas, costas, bunda... Onde quer que acertasse. Isso nunca me marcou psicologicamente. Um dia, quando eu tinha sete anos de idade e ainda morava no sítio, nem sei direito por qual motivo, meu pai me deu um tapa na cara. Foi a única vez na vida que ele me bateu, mas aquele tapa de leve, dói até hoje em meu ser.

Regis me abraçou e embora com sorriso triste, insinuou:

— O tapa que você me deu, nunca vou esquecer eu sei. Nunca esperava isso de quem admiro tanto. Mas prometo que não doerá pra sempre.


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Notas finais do capítulo

Drogas e prostituição, eis os perigos de um passarinho quando deixa o ninho antes da hora.



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