Nós estamos juntos escrita por Joana Guerra


Capítulo 3
Capítulo 3


Notas iniciais do capítulo

Ainda tem alguém aí? Tardou um pouco, mas voltei. Capítulo acabadinho de sair do forno, com uma revisão feita à pressa. Here we go!



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Nova Iorque, Verão de 2002

Debaixo de um sol escaldante, a multidão de fãs estava agitada. O motivo: a inesquecível Princesa Shelda era esperada para uma entrevista num conhecido talk-show. Centenas de pessoas se espremiam, desde o início do dia, na fachada do prédio pela oportunidade de ter um vislumbre de um ícone.

A referida Princesa Shelda, epíteto para sempre grudado ao de Pamela Parker-Marra, se encontrava nesse momento dentro da sua espaçosa limusine dando os últimos retoques na sua maquiagem.

Ao seu lado, vestida com o mais recente modelo da Chanel, cortesia de sua avó francesa, Megan tentava a todo custo ter a atenção da sua mom:

I was thinking that we could go to Central Park and

–Em português, my dear. Seu Dad pediu para falarmos mais em português.- retorquiu Pamela, olhando no espelho.

Megan se lembrou da razão do pedido de seu pai. E que dentro de poucos dias essa razão estaria embarcando no Rio de Janeiro para desembarcar diretamente na vida dos Marra, quem sabe causando turbulência pelo meio.

Espantando seus pensamentos Megan prosseguiu:

– Estava pensando que podíamos ir no Central Park. Last time, uncle Peter me levou, mas nunca fui with you, mom. There´s a lake and we can...

– Ok, sweety. Depois da interview vemos como vamos fazer.

A Marra-Girl percebeu o no por detrás da resposta materna. Era o tipo de acordo implícito entre as duas. Megan fingia acreditar que, um dia, os adultos a colocariam em primeiro lugar porque ela era suficientemente importante para eles e Pamela acreditava ser uma verdadeira Wonder Woman, capaz de fazer tudo o que quisesse, sempre perfeita, imaculada e sem deixar nada nem ninguém para trás.

Tinham acabado de chegar ao destino. Pamela colocou os óculos escuros e esperou que o seu fiel Edmilson lhe viesse abrir a porta, para encarar as feras.

Feras essas que não se refrearam na tentativa de e aproximarem da sua diva. Megan, que era levada pela mão da mãe, se viu engolida por um mar de gente, flashes e gritos. Habituada desde as fraldas a encarar turbas agitadas, não deu mostra de ter medo, mesmo se sentindo apertada pela multidão, mal conseguindo respirar e sem conseguir ver direito por conta dos flashes incessantes.

Megan teve sim medo quando sentiu que a mão da mãe a largava e um desespero profundo tomou conta dela. Por sorte ou experiência o motorista Edmilson já tinha pegado nela ao colo e se dirigiu para dentro do edifício.

Ainda cá fora, Pamela, que havia parado para responder a uma pergunta de um jornalista da Parker-TV, olhou para trás e, vendo a filha entregue, voltou de novo a sua atenção para o jornalista.

São Francisco, Verão de 2002

Davi ainda se encolhia na poltrona do jato que tinha acabado de aterrar. Sentia-se a tremer involuntariamente, em parte porque tinha sido a sua primeira viagem de avião, mas principalmente porque se via sozinho num ambiente que mais do que desconhecido lhe parecia hostil.

Sentado à sua frente estava Brian, que tinha sido incumbido de ir buscar Davi ao Brasil, de forma discreta, para que o garoto pudesse passar as férias com Jonas e conhecer a sua família.

Sentado como um buda, em posição de meditação e de olhos fechados, a mente de Brian já não se encontrava neste mundo. Eis quando, sem aviso, Brian começou a recitar os seus mantras alternando uma imitação pífia do cacarejar de uma galinha com “Debaixo dos Caracóis dos Seus Cabelos” de Roberto Carlos.

Davi abanou a cabeça de olhos arregalados, sem conseguir articular uma palavra e amaldiçoou a sua sorte silenciosamente.

No caminho para a mansão Marra, Davi olhava pela janela procurando encontrar algum ponto de referência, mas como a noite já se tinha instalado, continuava se sentindo um náufrago numa ilha deserta. Uma profusão de luzes iluminava a cidade e lhe dizia que afinal ainda se encontrava na civilização.

Quando entrou na mansão Marra não pode deixar de abrir a boca. Afinal só naquele hall luxuoso cabia a sua casa toda. E a do seus amigos Vander e Mosca. E a da sua vizinha Luene. Se bobeasse talvez toda a Gambiarra coubesse dentro da mansão Marra. E ainda sobrava espaço.

Uma senhora estranha veio ter com Davi e o abraçou efusivamente. Uma senhora como Davi nunca tinha visto. Ela tinha se identificado como Dorothy, mãe de Brian e madrinha de Pamela.

Dorothy explicou a Davi que Jonas estava atrasado, pois tinha tido um contratempo na empresa e que Pamela e Megan não se encontravam, já que haviam ficado retidas em Nova Iorque por conta dos compromissos profissionais de Pamela. Pela milésima vez naquele dia, Davi se sentiu arrependido por ter aceitado a ideia maluca de conhecer aquela gente que não lhe dizia nada.

Quando Jonas finalmente chegou para jantar o ambiente não melhorou. Ainda que Jonas e Davi tivessem muito em comum, ainda teriam que percorrer um longo caminho até se sentirem confortáveis na presença um do outro.

Cansado, por conta da viagem e das emoções do dia, Davi desabou quando caiu na cama.

Davi passou o dia seguinte se sentindo num planeta estranho. Afinal de contas quem é que considerava normal ter em casa um cinema e duas pistas de kart que ninguém usava ou eletrodomésticos que falavam com ele. Agradeceu, contudo, as aulas de inglês que havia tido nos meses anteriores e que o ajudaram a navegar por entre o batalhão de empregados da propriedade.

No final da tarde, Davi resolveu dar uma volta pelo jardim, rezando a todos os santos para não se perder naquela imensa floresta amazónica transportada para os States. Passou pela ponte que atravessava o lago artificial e tinha caminhado um pouco quando foi surpreendido por… uma girafa? Aquela gente era doida varrida, só podia. Quem mais tinha um zoológico em casa?

Esgotado, Davi sentou-se numa porção de gramado, olhando para o grande sol laranja que se posicionava no seu horizonte, anunciando um dia prestes a acabar. Meditava no que estava acontecendo com ele quando ouviu uma voz infantil atrás dele. Voltando-se deu de caras com uma garota de cabelos castanhos-claros que o encarava com cara de poucos amigos:

– Hi, I´m Megan.

– Eu sou… eu sou…. Davi. – respondeu titubeante.

I know. Você vai ser like, my brother?

– Não. Mas se quiser posso ser seu amigo.

Megan ficou surpreendida com a resposta de Davi. Ela já se tinha preparado para o encarar como um inimigo e um concorrente pelo amor de Jonas.

Ela, que já se tinha mentalizado que tinha que se ver livre de Davi de qualquer maneira, sentiu qualquer coisa que a incomodava dentro de si. Se ela fosse sincera talvez fosse o fato de Davi lhe parecer tão familiar. Como se o conhecesse de uma outra vida.

Não, ela não podia voltar atrás. Rapidamente deu as costas a Davi e caminhou em direção a casa dizendo:

Mom e Jonas estão esperando for you para jantar. Se fosse você não demorava, não vá o lion que vive here te pegar.

O jantar transcorreu com a agitação habitual aos Marra. Megan medindo Davi e preparando o seu plano para se livrar dele, Davi evitando contato visual com Jonas, Dorothy regando tudo a champanhe e admoestando Brian que se encontrava mais uma vez num estado de regressão e Pamela exuberante como sempre, cometendo sucessivas gaffes em português.

O quarto de Megan era contíguo ao de Davi. Quando ela se deitou se preparou para ouvir gritos ou xingamentos, mas acabou apenas por ouvir bater à porta. Era Davi, com a iguana de estimação de Brian nas mãos.

– Desculpa incomodar. Achei isso dentro da minha cama. É seu? – disse no seu jeito meio passivo.

– Oh, no. É de Brian. Give it to me. Eu devolvo.

Raça do garoto que não se tinha assustado. 1-0 para Davi. Se ela não se assustava com nada (a não ser talvez com a possibilidade de arruinar um bom outfit), depressa percebeu que a natureza algo mansa do garoto também não o deixava assustar-se ou zangar-se com muita coisa.

Apesar da atitude arredia que Davi tinha para com Jonas era no fundo um bom garoto. Megan constatou o fato quando ele não se irritou, nem quando ela colocou óleo no chão do quarto dele e ele deu um tombo monumental, nem quando ela encheu o tubo de dentífrico dele de pimenta e ele urrou com o ardor, nem quando ela colocou cola na cadeira dele e Davi teve que andar aos saltos pela casa, com a bunda colada na cadeira, até encontrar alguém que o ajudasse.

Já se tinham passado semanas e Megan não se encontrava nem um passo mais perto de convencer Davi a ir embora de vez. Se alguém estivesse contabilizando o jogo era provável que Davi estivesse batendo Megan 100 a 0.

Contudo, ainda que ela não quisesse admitir nem a si própria, sentia-se bem por, pela primeira vez, ter alguém a quem arreliar. Alguém com quem correr pela casa, com quem brincar na piscina, até (e só por insistência dele) alguém com quem jogar videogame.

Alguém que não tinha outro sítio para estar, outras coisas para fazer. Mesmo que fosse um alguém de semblante carrancudo, mesmo que só ela conseguisse arrancar dele uma gargalhada ocasional.

Até ao dia em que Jonas resolveu apresentar a sede da empresa para Davi. Com o disfarce de ser filho de uns amigos, Jonas levou Davi para conhecer aquilo que ele esperava ser o futuro do seu filho. A comunicação entre pai e filho continuava a ser algo rudimentar, ainda que agora já muito mais pacifica e cordial.

Megan, claro, não quis ficar em casa e se auto-convidou para ir também. Se aquele garoto ia ser convidado de honra na Marra, ela também seria.

Os olhos de Davi se iluminaram quando, no final da visita, Jonas lhe mostrou os novos aplicativos e os novos modelos em desenvolvimento. E se os olhos de Davi brilhavam de entusiasmo com os gadgets, os de Jonas brilhavam de orgulho, pois não só tinha percebido ter em Davi um futuro sucessor digno, como tinha compreendido que tinha encontrado um caminho seguro para o coração do filho.

Se sentindo mais uma vez posta de parte, Megan sentiu o bicho da inveja a entranhar-se nela. Não sendo má por natureza, sentia-se ameaçada.

Naquela noite, após saber por Brian que Davi morria de medo de fantasmas, resolveu voltar às suas partidas.

Apesar do perigo e da ameaça de tempestade, Megan saiu pela sua janela, para se pendurar na janela de Davi. Envergava uma capa negra e um aparelho que distorcia a voz:

– Uhhhhhhhhhhhhhhhhhh!!!- ouviu Davi.

Se apercebendo que aquele ruído não era de vento, Davi imediatamente enfiou a cabeça debaixo do cobertor. Só que de seguida ele ouviu:

– Aiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiiii!!!!!!

A caça se tinha virado contra o caçador quando a chuva começou a cair forte, sem aviso, levando a que Megan Lily escorregasse e ficasse só com uma mão fincada no parapeito da janela de Davi.

Vencendo o seu medo, Davi abriu a janela para descobrir a origem daqueles gritos aflitivos, só para encontrar a versão pintainho molhado de Megan Lily, arriscando uma queda potencialmente fatal.

– Me dá tua mão. Eu te seguro. – disse Davi.

– I´m gonna fall! I´m gonna fall!

– Confia em mim garota. Eu não te deixo cair.

A custo, Davi conseguiu içar Megan, caindo os dois exaustos no chão do quarto dele.

– Thanks.- disse ela, ainda ofegante.

– De nada.- disse ele olhando nos olhos dela.

– Só please …não conta para os meus pais.

– Tá… Porquê é que você tá sempre se metendo em problemas?

Why? Porque eu sou Megan Lily, of course. That´s why, silly boy.

Se levantando e retomando a pose altiva, Megan saiu do quarto.

Davi não sabia de todo o que pensar de Megan. Naquelas semanas já tinha convivido de perto com o génio difícil de Megan, mas também já tinha tido vislumbres do seu jeito doce de Lily.

Doce na maneira como ela abraçava o avô quando ele aparecia, doce como quando ela gostava de ajudar a mãe a se arrumar, até doce no jeito de tentar arrancar um sorriso dele.

Mas depois vinha surgia o furacão Megan, o monstro verde de ciúme que o atacava sem dó nem piedade.

Megan também se sentia dividida. Por um lado, à medida que ia conhecendo Davi, ia gostando de como ele era um bom moço e sentia ela também vontade de ser uma boa mocinha. Por outro lado continuava a sentir que o único modo de ter a atenção dos pais era continuando a ser Megan Lily, bad little girl incorrigível.

No final daquele mês o quadro familiar de Davi ganhou mais um membro.

Sandra aproveitou uma viagem do marido para se escapulir feito criminosa para encontrar Davi.

Confuso, mas disposto a tentar perdoar e aceitar, Davi tentava agora conciliar as lembranças dos seus pais Rosa e Jorge com a ideia de Sandra e Jonas na sua vida.

E aquela família pouco convencional começava, com a convivência, a encontrar um equilíbrio.

Numa tarde o furacão Megan entrou pelo quarto de Davi sem aviso:

Let´s go, silly boy!

– Vamos onde?

Carregando uma mochila, Megan arrastou Davi pela casa e pelo jardim até chegarem perto de uma árvore centenária.

– Chegamos.- disse ela triunfante.

– Chegamos onde sua doidinha?

– À minha treehouse. Minha casa na árvore. Olha para cima.

De fato, escondida na copa da árvore, lá estava ela. Megan não perdeu tempo e começou a subir, incitando Davi a fazer o mesmo. Chegando lá em cima tinham uma vista privilegiada de toda a propriedade:

– Isso é muito bonito. Como é que eu não vim aqui antes?- perguntou Davi.

– Este é o meu secret place. Eu venho cá quando quero estar sozinha.

– Então porque é que você me trouxe aqui?

– Because eu quero te pedir desculpa pelo que eu te fiz e because…. eu não quero estar mais sozinha.

Para quebrar o desconforto, Megan abriu a mochila e tirou dela refrigerante e duas sanduíches de manteiga de amendoim, entregando uma para ele:

Here, uma oferta de paz. É a minha sanduíche favorita.

– Ué. É boa mesmo.

A partir daí a conversa correu fluída. Ela falou dos pais, do avô, das viagens que iriam fazer naquele ano. Ele falou dos tios e do primo, da vida dele na Gambiarra. Aproximando-se o final daquele verão e eles sabiam que brevemente Davi iria voltar para a vida dele no Brasil.

Combinaram então que iriam falar todos os dias pelo telefone, por carta, por sinais de fumo, o que fosse. Ele começava a se sentir responsável por ela e ela permitia-se sentir que podia confiar nele.

Davi viu Sandra passar em amena cavaqueira com Dorothy debaixo da árvore. Pensou na relação estranha que eles tinham, ela escondendo ele do próprio marido.

She likes you, you know? - Megan disse num sussurro.

– Ela quem?

– Sua mom Sandra. Ela gosta de você. De um jeito torto, but she does.

– E é possível gostar de alguém de um jeito torto?

I´m starting to believe que sim.


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Notas finais do capítulo

Chegamos finalmente no final dos capítulos para o ano de 2002 (aleluia irmãos!). No próximo capítulo teremos uma passagem de 6 anos. Alguma sugestão de algum elemento da mitologia Megavi que queiram incluir na trama?