Uma canção de esperança escrita por Lu Rosa
1941
Dois meses. Foi o tempo necessário para a poderosa máquina de guerra alemã transpor as defesas francesas. E enquanto Lucille e Gerard treinavam para representar seus papéis, os alemães avançavam pela França. Na manhã do dia 14 de junho de 1940, os alemães adentraram Paris. Por uma questão de horas, o governo francês fugiu para Bordeaux.
Os franceses tiveram que resignar-se e assistir a máquina alemã desfilar gloriosa pela principal Avenida de Paris. Os mais velhos, com lágrimas nos olhos, lembravam os anos difíceis da Primeira Guerra.
Lucille viu o desfile diário dos alemães enquanto se encaminhava para o orfanato onde deu aulas. Com o emprego no Moulin Rouge, ela não poderia mais dar aulas para as crianças. Isso lhe doía, mas ela tinha certeza, que era o melhor.
Ela empurrou o portão de ferro. Como sempre, ele rangeu devido à movimentação. Lucille adentrou o prédio, ouvindo o alarido das crianças. A inocência das crianças era um balsamo. O mundo desabava lá fora e as crianças continuavam vivendo em seu mundo. E assim deve continuar.
Um homem vestindo uma batina veio ao encontro dela.
– Madame Vermont! Que alegria vê-la.
– Olá, Padre Honoré. É um prazer vê-lo também.
– Ouvi dizer que é o novo sucesso da noite de Paris. Mademoiselle Angelique Fortuné.
– É. Mal consigo acreditar em tudo que aconteceu. Uma hora eu era uma simples professora viúva. Na outra me tornei a sensação de Paris. É uma pena que o talento que meus pais me deram agora tenha que ser apreciado pelos nazistas também.
Padre Honoré segurou as mãos da moça.
– A sobrevivência também cobra seus tributos. Veio ver nossas crianças?
– Sim. Eu arranjei um tempinho nos ensaios para vir vê-las. O senhor já soube?
– É claro, minha querida. Eu vi as tropas logo que elas chegaram. Toda a movimentação dos tanques.
– E as crianças? Não se assustaram.
– Não, graças a Deus. As crianças se mantêm acima disso. As mais velhas perguntam, é claro. Eu tento informar o mínimo possível. Mas agora preciso de sua ajuda. Venha comigo. – o padre começou a caminhar pelo corredor.
Agora dentro do edifício, Lucille escutou com mais nitidez o som das crianças. Os menores brincavam de roda no pátio, ela viu através das janelas. As crianças maiores repetiam a lição dada pela professora nova.
– E mademoiselle D’Argent como vai? As crianças gostam dela?
– Ah sim! Ela é tão doce quanto você. As crianças se adaptaram bem a ela.
– Que bom, Padre Honoré. Só fiquei depois de entrevistar cada candidata. Lina D’Argent me conquistou no primeiro olhar. É como se ela tivesse sido feita para ser professora.
– O magistério é um sacerdócio, madame Vermont. Mas ainda não me sinto à vontade para dividir com ela alguns segredos. – ele chegou até uma porta dissimulada debaixo de uma escada.
Ao abrir a porta e permitir a entrada de Lucille, Padre Honoré revelou a presença de uma senhora que balançava um berço.
Lucille olhou para o padre a espera de uma explicação.
– Esta, Lucille, é madame Golbstein. Não preciso dizer o que o nome dela representa.
Lucille acenou com a cabeça em entendimento. Aquela senhora era judia, o que representava um grande perigo para todos no orfanato se a polícia francesa resolvesse aparecer.
– E este no berço é o pequeno Benjamim. Ele é neto dela. Olga não saiu de Paris junto com sua família. Ela possui artrose nos joelhos e só iria atrasá-los. A família Golbstein foram os maiores beneméritos desse orfanato. Quando ela apareceu aqui à noite carregando o bebê nos braços, eu nem pensei em não ajudá-la.
– Eu já vivi o bastante Padre. Queria somente que você ficasse como o Benjamim. – a senhora pegou uma bengala próxima ao berço para se apoiar e veio até eles. – Eu teria dado um jeito, mas o bebê... Ele não tem culpa de nada, pobrezinho.
– E a mãe dele? Fugiu e deixou o filho?
– Não. Pobre Maya, ela morreu no parto. Meu filho não teria conseguido lidar com o bebê. Então ele foi com outros parentes e eu fiquei.
– Foi muita coragem da senhora. – disse Lucille.
– Mas cedo ou tarde, a polícia vai começar as buscas nos orfanatos atrás de órfãos judeus e possíveis fugitivos. O que eu preciso é que Olga consiga documentos que digam que ela é de outra nacionalidade.
– Desculpe Padre, mas não vou renegar a minha fé.
– Não estou pedindo isso, Olga. Temos que dar outro sobrenome a você. Para que alguém possa tirar você de Paris.
– Se a polícia nazista descobrir a senhora aqui, todos sofrerão, madame Golbstein.
– Eu sei mademoiselle.
– Só se... – uma ideia se formava na cabeça de Lucille. – a senhora pode ir morar comigo.
– Com você?! – Olga e o padre perguntaram ao mesmo tempo.
– Sim. Podemos dizer que a senhora é parente minha. Da fronteira com a Alemanha. Perdeu seu filho e veio morar comigo que fiquei viúva . Mas infelizmente não vou poder levar Benjamim. Toda a vizinhança sabe que eu tive uma menina e a idade também não combina. Clarisse teria dois anos agora.
– Não posso me separar do meu neto.
– Então... – Lucille cruzou os braços e começou a andar pelo quartinho. – O melhor esconderijo é à vista de todos. Vamos transformar Benjamim em menina. A senhora fica sendo mais uma ama contratada. Eu consigo os documentos.
– Como?
– Tenho alguns contatos. Vamos transformar a senhora numa francesa de alguma aldeia na fronteira com a Alemanha. E Benjamim vira Bettina.
– Agora, padre, temos que fazer todos acreditar que Olga é francesa. E a senhora não pode demonstrar nenhuma preferência por Bettina. Ela é uma criança como qualquer outra. Mesmo com funcionários reduzidos, os franceses não resistem a uma boa fofoca. Qualquer deslize, e a policia nazista estará aqui.
– Sim, mademoiselle.
– Mas Lucille, - interpôs o padre – Olga precisa dedicar-se exclusivamente à Benjamim ou Bettina. Se qualquer outra ama descobrir que um menino foi acolhido como menina haverá confusão.
– Nisso padre Honoré tem razão mademoiselle.
Lucille esfregou a testa, pensativa.
– Vocês têm razão. Padre, existe alguma possibilidade de alguma ama saber o que é uma circuncisão?
– Acredito que não, Lucille. São boas mulheres, mas totalmente ignorantes em relação a algo que não seja católico.
– Então está resolvido! – a jovem bateu palmas – Olga Golbstein vira Olga Chanot e Benjamim Golbstein vira Jean Xavier. Vou encontrar meus contatos e preparar os documentos.
Ela se aproximou da senhora e a beijou no rosto.
– Vamos fazer todo o possível para que a senhora e o bebê fiquem em segurança.
– Mademoiselle é um anjo. Vou colocá-la em minhas orações.
– Obrigada, madame Golbstein. Bem, acho que devo ir agora.
Padre Honoré se levantou e entreabriu a porta devagar.
– Venha, Lucille. Ninguém a vista.
Ela acenou para a senhora e despareceu atrás do padre.
Logo que eles desceram as escadas perceberam uma movimentação estranha.
– Padre! Padre! – uma mocinha aproximava-se deles. Ela viu Lucille. – Olá madame Vermont. Que bom vê-la – a jovem abraçou Lucille.
– Olá Nanette. Como você está?
– Mademoiselle D’Argent me deixou encarregada das crianças menores. E eu estou contando a elas todas as histórias que a senhora nos contava.
– É uma responsabilidade enorme cuidar dos menores, Nanette. Mas tenho certeza que você é capaz disso.
– Obrigada, madame. Não vou desapontar.
– Nós temos certeza disso, não é Padre Honoré.
– Nanette só tem nos surpreendido com sua precocidade. – comentou Padre Honoré. – Mas você estava me procurando, Nanette?
– Oh sim, padre. Madame Gaisgnet quer saber o que deve fazer para o almoço.
– Fale pra ela fazer os filés de peixe que recebemos de monsieur Francourt.
– Sim senhor. Até logo, madame Vermont. – ela beijou Lucille, fez uma reverencia ao padre e correu em direção à cozinha.
Lucille e o padre começaram a caminhar em direção à saída.
– E nenhuma notícia sobre Julian? – a moça perguntou.
– Não, nenhuma. – Padre Honoré balançou a cabeça negando. Ele abaixou o tom de voz. – Sabe o que eu temo? Que ele tenha ingressado na Resistência. Atendido ao pedido do [1]General.
Lucille ficou pensativa
– Julian sempre foi um rebelde. Eu acho que mesmo sem o pedido do General ele haveria de combater.
– Sou obrigado a concordar. – o padre segurou as mãos de Lucille. – Lucille, você tem contatos do lado esquerdo do Sena. Se tiver noticias sobre ele nos avise.
– É claro, padre. – ela olhou no relógio de pulso – eu tenho que ir agora. Tenho ensaio e vou providenciar os papeis de Olga. – ela beijou a mão do padre. – Sua benção, padre.
– Deus te abençoe. Vá em paz.
– Obrigada.
Lucille saiu do prédio, agora um pouco mais preocupada pelas suas novas atribuições em relação ao Orfanato.
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[1] O apelo de 18 de junho foi o primeiro discurso do general de Gaulle1 na rádio de Londres, a 18 de junho de 1940, na qual apelava à continuação dos combates contra a Alemanha nazi e previa a mundialização da guerra. (nota da autora)