Uma canção de esperança escrita por Lu Rosa


Capítulo 6
Seis




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Lucille entrou na casa noturna e cumprimentou o porteiro.

– Olá Henri.

Mademoiselle Fortuné... – ele tocou a boina a guisa de cumprimento.

Lucille ainda estranhava os funcionários do Moulin a tratarem por mademoiselle Fortuné. Os únicos que sabiam seu verdadeiro nome eram Claude, Elise, Elsie, sua camareira e Sergei, o maestro da banda. Além de Armand, o sommelier a quem ela ia encontrar, Antoine e sua esposa Justine. Todos do primeiro escalão da casa noturna.

Ela desceu as escadas em direção à adega sentindo frio na medida em que aproximava.

– Armand? Armand, você está ai? É Lucille.

– Estou. Entre, Lucille.

Ela empurrou a porta e viu um homenzinho de cabelos brancos retirando algumas garrafas e as colocando em uma caixa.

– Oh, você está ocupado. Mas serei breve. Armand, precisamos marcar uma nova partida de pique.

Ele a olhou atentamente sobre os óculos de aro dourado.

– Uma nova partida?

– Sim. Quando você poderia ir. É claro que com os parceiros de sempre.

– Claude, Elise, eu, você, Antoine e Justine.

– Como sempre. – ela concordou com um sorriso.

– Amanhã na saída do ensaio, então.

– Perfeito. Vou avisá-los. Obrigada Armand. – Lucille agradeceu num tom que dizia mais coisas do que um simples agradecimento.

Ela subiu as escadas. Encontrou Antoine e Justine, que separavam e dobravam guardanapos.

– Boa noite! – ela os cumprimentou.

– Boa noite, Lucille. Pronta para hoje à noite?

– Estou sim. Uma noite com qualquer outra.

– Preciso dizer a vocês. – ela baixou a voz num tom conspiratório. – Amanhã á noite, eu combinei com Armand uma partida de pique lá em casa.

Antoine e Justine se entreolharam. Ambos acenaram com a cabeça concordando.

– Vou falar com Claude agora. – ela saiu andando.

– Espere, Lucille! Ele está... – Justine deixou cair a mão estendida. – com visita. – completou.

Lucille chegou ao escritório de Claude e bateu à porta já entrando.

– Claude, eu queria falar algo com você... – empalideceu ao ver a pessoa que estava com Claude. Era um oficial nazista.

O oficial voltou-se ao ouvir a voz de Lucille. Os dois se encararam por alguns minutos. Lucille sentiu, por alguma razão, como se uma mãos lhe apertasse o peito. O oficial a olhou de cima a baixo. Mantendo uma pose arrogante, ele perguntou

– O que deseja?

O sangue ferveu nas veias de Lucille. Ela não admitia desdém de ninguém e não o admitiria de um nazista desgraçado.

Erguendo a cabeça o mais humanamente possível, ela abriu a boca para responder, mas Claude foi mais rápido.

– Essa é uma de minhas estrelas. Lucille. Lucille, este é o Capitão vaan Sacher, secretário do General Von Gorthel comandante das tropas de... – ele parou, procurando uma palavra menos agressiva. Com um suspiro resignado ele completou. – Ocupação.

– Hum! – toda agressividade de seus antepassados gauleses estava impressa naquele som.

– Meu comandante gostaria muito de conhecer sua principal estrela, monsieur Favel. Dizem que ela canta divinamente. Meu comandante quer comemorar o aniversário dele. Embora eu dissesse a ele que uma boa solista alemã seria mais apropriada.

– Nenhum cantor seja qual a nacionalidade se compara a um bom musicista francês, monsieur capitain. – ela ignorou os sinais de Claude para que ficasse quieta.

Mademoiselle é muito clara em sua oposição à nossa presença. – disse ele com voz perigosamente suave. – Deveria ser mais tolerante...

– Eu me esforço, herr capitão. E como me esforço.

– Er... Lucille, você não tem que ensaiar? Queremos mostrar o nosso melhor para Herr comandante.

– Não vamos precisar nos esforçar muito, Claude. Capitão. – ela fez um aceno com a cabeça que tanto tinha de rápido quanto de insultuoso e saiu da sala.

– Nossa! Isso foi... Interessante. – Claude sentou-se enxugando a testa com um lenço.

– Eu preciso de um whisky.

– Eu também. – Claude levantou-se e foi até um barzinho. Ele serviu dois copos de whisky com gelo.

– Ela me odeia... – concluiu Gerard.

– Não. Ela não te odeia. Ela odeia o capitão nazista. Ela nem te reconheceu, Gerard. – estendeu o copo ao outro.

– Ela está linda. – Gerard falou consigo mesmo.

– Eu ainda não consigo acreditar que a francesinha com quem você havia se casado é a minha estrela. Uma professora viúva que eu retirei de um poço de tédio eterno para brilhar nos palcos da minha casa noturna.

– É. E eu ainda não aceitei muito essa história...

– Mas, no momento mon ami¸ você não pode dar palpite nenhum. – Claude deu uma risada bem humorada.

Gerard tomou um gole do whisky em silencio.

– Ela me lembra muito de mamãe... – Claude comentou.

– Papai me falou dela, quando estive em Londres antes da guerra.

– Sério?! Ele evita tanto tocar no nome dela. Pelo menos enquanto eu morava na Inglaterra.

– Papai amou muito mamãe, Claude. Quando eu contei que havia encontrado o amor de minha vida, mostrei uma foto de Lucille para ele. Nunca vi o velho tão abatido.

– Oh! – Claude levantou seu copo como num brinde. – Mademoiselle Grangier conseguiu romper a armadura do velho. Ela merece um brinde.

– Claude... Ele já não é tão irredutível assim. Você veio para França e eu sempre as voltas com missões da Inteligência. O velho se sente sozinho em Londres. Por que você não vai procurá-lo?

– Ele me afastou, Gerard. Disse que nunca iria admitir um filho que não fosse cem por cento homem. Ele disse isso, Gerard. Ele me renegou. E eu era seu filho mais velho.

– Papai pertence à outra geração, Claude. Mais... – Gerard procurava a palavra certa – Sufocante. Mais opressiva. Em nossa sociedade não se declara abertamente as preferências sexuais.

– Eu sempre fui autentico, Gerard. Ninguém pode me culpar de mentir, de enganar.

– E é por isso eu admiro você, meu irmão. E eu vivo uma mentira a cada dia. – Gerard se lamentou

Claude se aproximou do irmão.

– Assim é vida. Vivendo verdades e mentiras a cada momento. Você esteve há centímetros de sua mulher, mas não podia sequer pensar em tocá-la. E para estarmos próximos, você teve que vir até aqui como se desempenhasse uma missão.

– Logo isso vai terminar. Como eu já disse ao Huntingdon, essa é minha última missão.

Algo na voz de Gerard fez com que Claude olhasse penalizado para o seu irmão caçula.

– Eu nem imagino o que você já deve ter visto.

– Não imagine, Claude. Não imagine... – Gerard tomou o restante do whisky como se o calor da bebida pudesse expurgar a culpa que sentia.

Lucille desceu as escadas como se fosse perseguida por demônios. Ela escutou o som dos instrumentos que já começavam a ser afinados. Parou em frente ao palco onde a banda já estava.

– Serguei, - ela chamou. Um senhor distinto de cabelos brancos deixou o instrumento que afinava e caminhou na direção dela.

– Olá, Lucille, querida. O que vamos tocar hoje?

– Você pode tocar uma música no piano para mim? Eu preciso muito cantá-la.

– É claro.

Lucille se posicionou junto ao microfone e Serguei ao piano. Todos ali pararam seus afazeres e esperaram.

Logo, os acordes iniciais de Je suis seule ce soir se fizeram ouvir. Lucille fechou os olhos, pegou o microfone a começou a cantar. Sua voz era baixa, rouca, como num lamento.

[1]“Je suis seule ce soir

Avec mes rêves,

Je suis seule ce soir

Sans ton amour.”

O toque de Seguei no piano era acariciante, quase erótico. As dançarinas que se alongavam para ensaiar, pararam e foram para frente do palco. Muitas ali tinham maridos, namorados, irmãos que lutaram na batalha da França e seus destinos eram incertos. Algumas eram abraçadas pelas outras por que nem a esperança de rever seus amores elas não tinham mais. Seus amados repousavam agora em túmulos frios. Naquele momento, a voz de Lucille cantando a saudade das francesas era a voz de todas elas.

Claude e Gerard chegaram ao salão a ponto de pegarem as últimas estrofes da música. Gerard ficou impressionado com a presença de Lucille no palco. Onde estava a sua Lucille tímida que nunca imaginava ter a beleza da irmã e o talento dos pais?

No final da música todos os presentes bateram palmas para Lucille. Serguei se levantou do piano e levou a mão da moça aos lábios. A moça se curvou reverenciando o músico.

Gerard esperou que as palmas dos outros acabassem e, assumindo seu papel, bateu palmas com a mão enluvada. Acompanhado de Claude ele foi até o palco.

– Mademoiselle, eu me rendo em frente ao seu talento. – ele se inclinou como se a reverenciasse.

Mas Lucille, talvez ainda sob o efeito melancólico da música, olhou-o por alguns instantes como se procurasse algum sarcasmo em suas palavras.

– Obrigada. – e sem nenhuma outra palavra, saiu correndo do palco.

Claude virou-se para ele.

– Essa canção mexe com as mulheres, não acha, capitão? Espero que seu comandante aprecie nosso espetáculo.

Gerard, agindo como um oficial nazista, foi arrogante ao responder.

– Só espero que a atuação de seus profissionais seja melhor que a educação, herr Favel. Boa tarde.

Ele saiu pisando de forma marcial. Quando ele passou pela porta, todos soltaram o ar que haviam prendido.

Claude bateu as mãos energeticamente:

– Vamos! Vamos! O que estão esperando? Vamos divertir Paris!

Todos voltaram aos seus afazeres. Claude se dirigiu aos camarins.

Lá Lucille estava debruçada sobre a penteadeira, chorando sendo consolada por Elsie, sua camareira. Claude a olhou penalizado. Ele poderia acabar com o sofrimento da pobre moça, mas jurara guardar segredo sobre o trabalho do irmão.

– Ei, o que está acontecendo aqui? Este é um lugar de alegria, não de tristeza.

Ela levantou a cabeça. Os olhos vermelhos de tanto chorar.

– Eu tento ser forte... Mas eu não vou conseguir... A dor ainda tão grande.

– E é por isso que você é fantástica, quando está naquele palco, minha querida. Você é a voz da França. A voz das mulheres que perderam seus maridos, pais e irmãos. Da França que perdeu sua liberdade. E é por isso que você vai subir naquele palco e cantar pela liberdade. Dar aos franceses que nos procuram por alegria, por amor, uma canção de esperança.

Ela ouviu o apelo de Claude sentindo seu coração bater no peito, como se ele se libertasse das amarras da dor. Sua pele adquiriu um tom róseo. Elsie observou a transformação de sua jovem dama. Ela amava a jovem que fora colocada aos seus cuidados. Elsie já atendera as maiores atrizes e cantoras da França, mas a jovem viúva conquistara seu coração. Cuidava dela com desvelo de mãe. E como mãe, seu coração doía ao notar a tristeza do jovem coração. Apenas no palco, Lucille esquecia a solidão. Por várias vezes, Elsie havia convidado-a para morar com ela, alegando que eram tempos perigosos para uma mulher morar sozinha. Mas a jovem permanecia irredutível. Era a sua casa e ali era o seu lugar.

Claude agora abraçava Lucille.

– Agora, enxugue essas lágrimas e prepare-se para brilhar naquele palco. Elsie cuide dela, ma cherie.

– Sim, monsieur Favel.

Lucille sentou-se em frente à penteadeira iluminada olhando seu reflexo.

– Elsie, você acha mesmo que eu me transformo em cima daquele palco?

Elsie pegou o vestido que Lucille usaria naquela noite e o colocou sobre uma cadeira. A mulher inclinou-se sobre o ombro de Lucille.

– Você é o anjo da esperança, mademoiselle. Faz jus ao seu nome artístico: Angelique. Mas já não está na hora desse anjo descer dos céus e se encantar por um bom rapaz? Você provou que amava seu marido. Um luto de dois anos é uma prova é tanto. Muitas mulheres não esperariam nem seis meses para um novo envolvimento. Mas não é bom ficar sozinho. Arrume um bom rapaz, Lucille e seja feliz.

Lucille ouviu outro discurso sentindo que seu coração arrebentava outra amarra. Mas as palavras penetravam em seu cérebro como sementes. Mas elas floresceriam em seu coração iniciando uma primavera depois de dois anos do inverno da viuvez?


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Notas finais do capítulo

[1] Estou sozinha esta noite/Com meus sonhos,/Estou sozinha esta noite/Sem o teu amor. – Je suis seule ce soir de Leo Marjane foi uma musica de 1941 que descreveu bem o sentimento de separação em tempos de guerra. (nota da autora).



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