Uma canção de esperança escrita por Lu Rosa


Capítulo 39
Trinta e Nove




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Hanna encontrou Lucille enrodilhada numa cama. Viu um dos tornozelos preso por uma corrente e não pôde acreditar. Seu marido enlouquecera!

– Lucille!

A jovem ergueu-se e se deixou abraçar pela alemã. As lágrimas das duas misturavam-se.

– Vou tirar você daqui. Consegui encontrar esse molho de chaves no escritório de Otto. Uma dessas deve abrir a algema.

– Rápido, Hanna. Ele disse que não ia demorar... - avisou Lucille com voz fraca.

Enquanto testava cada uma das chaves, Hanna via o estrago no corpo da amiga. Vergões e mordidas avermelhadas destacavam-se na pele branca.e os lábios estavam cortados na tentativa dela conter a dor na hora das chicotadas ou por ele ter mordido os lábios de Lucille.

Finalmente uma das chaves abriu a algema e Hanna conseguiu fazer Lucille se levantar.

Mas, quando estavam prestes a alcançar a porta, o sargento Kroll surgiu na frente delas.

As duas gritaram de medo, pois ele carregava uma pistola.

– Voltem já as duas para dentro.

Enquanto elas recuavam, uma sombra ergueu-se sobre o sargento derrubando-o. No momento da queda, ele soltou a pistola que carregava. Hanna pegou a pistola, para evitar que ele a reavise.

O sargento levantou-se e viu seu agressor.

– Então é chegada a hora de acertarmos nossas contas herr capitão.

Lucille e Hanna viram que era o capitão Vaan Sucher.

– Hanna, tire minha esposa daqui. Eu e o sargento temos que conversar.

– Não, Gerard. Não vou sem você. - disse Lucille.

– Vá! - ele ordenou - Eu voltarei para você. Eu sempre volto para você, minha querida. - prometeu Gerard, contudo sem tirar os olhos do sargento.

Ela teve a impressão que era a última vez que olhava seu marido, imponente em no uniforme nazista . Queria chorar, queria ficar ao lado dele e queria lhe dizer uma última coisa.

Se Hanna ficou surpresa do capitão chamar Lucille de sua esposa, ela não perdeu tempo com isso. Com certeza quando aquele pesadelo terminasse, ela teria suas respostas.

Puxando a enfraquecida Lucille pela mão, elas saíram da cabana.

Quando as mulheres saíram da cabana, Gerard tirou calmamente o quepe e o paletó. Esperara por aquele momento desde que vira o sargento chicoteando o pobre soldado. E sabia que muitos daqueles vergões em Lucille eram obras do sádico nazista. E ele pagaria caro por ter tocado em sua mulher.

– Você gosta de bater em mulheres e em jovens indefesos, não é Kroll? Naqueles que não tem como se defender. - pegou o chicote sobre a mesa e o jogou para o sargento. - Quero ver você usar isso em mim.

O sargento pegou o chicote no ar e sorriu sardonicamente.

– Eu sempre soube que você era um sodomita miserável. Mas eu vou fazer o que você quer. Quem sabe nós podemos terminar a noite juntos ou nos divertindo com aquelas duas. - ele simulou um beijo com os lábios.

Os dois começaram a se mover em círculos e o sargento estalava o chicote no ar. Quando ele moveu o braço para dar o primeiro golpe, Gerard segurou o chicote e puxou o sargento para si. O homem não esperava essa reação e foi puxado sem resistência. Gerard desferiu um golpe certeiro no rosto do nazista fazendo com que ele soltasse o chicote.

Sem perder tempo, Gerard estalou o chicote nas costas do alemão. Uma, duas, três vezes. A fina camisa rasgou-se em tiras. O inglês jogou o chicote longe.

– Isso é para você provar do próprio remédio.

Mas o nazista era empedernido e levantou-se.

– E você acha que eu nunca senti o chicote entre os ombros, capitão? Isso para mim não é nada! - ele agarrou a camisa fazendo-a rasgar em duas partes. E então avançou para cima do inglês.

Os dois lutaram trocando socos e pontapés. Gerard nutria um ódio profundo do alemão. Mais até do que por Von Gorthel, que estava cavando a própria sepultura ao tentar roubar o Terceiro Reich. Mas o sargento continuaria a propagar seu sadismo se escapasse. Isso ele não iria permitir.

Depois de pegar uma cadeira e jogar em Gerard, Kroll aproveitou-se e pegou novamente o chicote.

Gerard aparou a cadeira com ombro e os braços. Logo em seguida sentiu o golpe do chicote. Na segunda vez, porém, ele o segurou e lançando-se sobre o alemão enrolou o chicote no pescoço dele e apertou.

O nazista sacudiu-se, mexeu-se, balançou-se, mas Gerard segurou-o firme apertando cada vez mais o laço. Com um último espasmo, Kroll amoleceu-se nos braços da morte.

Jogando o corpo para o lado, como quem afasta um saco de lixo, Gerard levantou-se do chão. Olhou o corpo aos seus pés. O sargento tinha os olhos abertos, mas vítreos, e a boca escancarada como se procurando o ar, contudo sem recebê-lo. Uma morte feia para uma pessoa que fora horrível em vida, Gerard pensou.

Quando ele saiu da cabana, o som de um tiro chegou aos seus ouvidos, vindo da casa principal.

Temendo pelas mulheres, ele correu para lá. Von Gorthel estava louco e acuado, poderia ser capaz de qualquer coisa.

***

Hanna e Lucille subiam as escadas da casa em direção aos quartos principais.

– Deixei Nannau arrumando minha mala, enquanto fui procurar ajuda. Ela já deve ter... – a jovem interrompeu-se ao ver a ama caída no chão.

As duas ajoelharam-se sobre a anciã.

– Nannau! Nannau! – Hanna chamou mexendo na senhora.

Nannau abriu os olhos e virou-se para Hanna.

– Ah minha filha... – ela disse com voz sussurrante. Uma mancha de sangue espalhava-se pelo imaculado avental. A velha senhora respirava com dificuldade, indicando que um dos pulmões havia sido perfurado. – eu tentei impedi-lo... As joias de sua mãe... Sua herança...

– Clara, não fale. – Lucille pediu acariciando os cabelos da senhora. – Já está vindo ajuda.

– Não tenho mais tempo... Deus as abençoe... – e Nannau fechou os olhos, deixando de respirar.

– Nannau! Nannau! – Hanna sacudiu o corpo, chorando.

Lucille colocou a mão no ombro da amiga.

– Deixe, Hanna. Deixe ela ir. Ela está com Deus agora.

Hanna depositou a cabeça da velha senhora no tapete. Levantou-se enxugando as lágrimas com as costas da mão.

– Ela disse que tentou impedi-lo... Só pode ser o Otto.

As duas se aproximaram cautelosamente do quarto. A primeira coisa que Lucille viu, foi a arma sobre a cama. Von Gorthel revirava o conteúdo de várias caixas sobre a mala. Eram as joias de Hanna.

– O que está fazendo Otto?

– Minha amada esposinha! Quando o canalha de Rosenberg chegar para me prender, já estarei longe. Suas joias garantirão isso.

– Você não vai fugir levando minhas joias. Eram da minha mãe.

Ele parou o que estava fazendo. Sua expressão era de loucura absoluta. Os olhos azuis injetados, a face vermelha, a farda, que ele sempre mantinha alinhada, agora estava suja e amarrotada. Von Gorthel estava destruído. Mas o sorriso em seus lábios ainda provocava um arrepio de medo em Hanna.

– Elas são meu pagamento por ter dado meu nome a uma judia imunda como você.

As duas paralisaram ante a violência das palavras dele.

– Do que você está falando? Eu não sou judia.

– Então seu papai escondeu suas verdadeiras origens? Bem, eu também esconderia se fosse um judeu. Se eu não tivesse ouvido uma conversa ente meu pai e o seu, eu também teria sido enganado. Seu pai ofereceu uma fortuna ao meu para que eu me cassasse com você. E assim, se algo acontecesse a ele, você estaria salva pelo peso do meu nome.

Hanna o olhou, estarrecida.

– Não vai me dizer que você não percebeu o quanto eu estava carinhoso na nossa noite de núpcias. Mas eu me vinguei de cada um deles. – ele riu diabolicamente.

Lucille percebeu que Hanna iria sofrer com o desfecho daquela história.

– Hanna, vamos embora. O coronel Rosenberg já deve estar chegando.

Foi então que Von Gorthel percebeu a presença de Lucille

– Ah, Hanna... Você soltou meu rouxinolzinho... Queria que ele cantasse para mim durante minha fuga.

Lucille se empertigou ao ouviu o tom melífluo dele. Mas Hanna queria saber mais.

– Como foi a sua vingança, Otto? – perguntou ela com voz suave. Ela viu que ele estava descontrolado. Tinha que passar calma para ele, senão Otto pegaria a arma e isso não podia acontecer. Só Deus saberia o que ele faria com as duas.

– Eu joguei meu pai da escada. Ele morreu gritando como o porco que era. Com seu pai foi mais divertido.

Hanna ficou pálida, mas mesmo assim não perdeu a calma.

– E?

– Eu fui até ele. – Von Gorthel sentou-se na poltrona ficando um pouco deslocado em contraste com a estampa branca com rosas e ramagens. Até parecia que ele estava falando sobre o tempo. – Falei para seu pai que sabia do segredo dele e que havia escutado alguns rumores no Comando Alemão sobre alguns empresários e industriais que se diziam alemães, mas tinham origens judaicas. Que eles iriam ser investigados. Seu pai sabia o que isso queria dizer. Naquela mesma noite ele reuniu sua família e eles fugiram para Suíça. – ele deu outra risada. – Ou eles tentaram fugir. Eu fiz a denúncia e antes que eles pudessem sair dos arredores de Berlim, foram presos e escoltados até [1]Sachs de onde, e isso até eu sei, só sairão mortos.

Lucille e Hanna ficaram paralisadas escutando a história. Hanna sabia que seu marido era cruel, mas não esperava tanto. Ele sabia durante todo esse tempo que seus familiares estavam em um campo de concentração. Ele mesmo os havia mandado pra lá. Seu pai e sua mãe, seus irmãos Charlotte que tinha a saúde frágil e Karl e era um garotinho de cinco anos?

– Você mandou minha família para um campo de concentração?

– E o que mais se pode fazer com essa escória? Todos devem morrer e considere-se uma pessoa de sorte por eu ter te salvado.

Hanna o olhou. Viu a loucura nos olhos dele. Toda sua vida estava ruindo. O sonho de voltar a ser o favorito do Führer ruía à medida que o grupo enviado para prendê-lo se aproximava. Nada mais importava. Ele tinha que fugir de Paris o mais rápido possível e aquelas idiotas o estavam atrasando.Num átimo de segundo, Lucille, Hanna e Von Gorthel tiveram a mesma ideia e os três voaram para cima da cama pegar a arma. Num embolo de mãos, Hanna teve mais sorte e ficou com a arma.

– Você não vai fugir! Você vai pagar pelos seus crimes! – ela estendeu as duas mãos pra frente segurando a pistola. Sua mão tremia. Nunca fora uma pessoa nervosa ou violenta. Mas aquele miserável havia mandado sua família para um campo de concentração nazista e havia assassinado sua segunda mãe. E a moça ainda se lembrava da noite de núpcias violenta que tivera com ele e de como encontrara Lucille quase destroçada pela mesma violência.

– Hanna... – ela escutou Lucille ao seu ouvido. – Eu ajudo você. – Lucille colocou as mãos sobre as de Hanna. Estavam geladas como as da amiga. E pareceu a Von Gorthel que ela abaixava a mão de Hanna com a arma.

– Sim, meu rouxinolzinho. Leve essa fraca pra longe de mim. Eu tenho coisas mais importantes para fazer do que ficar lidando com o histerismo dela.

Lucille era uma pessoa temente a Deus. Mas, para ela, Deus havia fechado seus olhos naquele exato momento.

– Não. Eu vou ajudá-la a fazer isso.

E descendo um pouco a pistola, Lucille e Hanna atiraram no joelho de Von Gorthel. O homem deu um berro e caiu sentado no chão.

– [2]Ihr Schlampen! Atiraram em mim.

– E fique satisfeito por não termos acertado mais para cima, Von Gorthel. – Lucille declarou com a voz sufocada de raiva. – Você não deve morrer. Não agora. Primeiro você será humilhado, espezinhado por seus inimigos e então terá uma morte lenta, enforcado pelo Terceiro Reich.

Enquanto ele urrava de dor, calmamente Hanna recolheu as joias de sua mãe, as colocando numa maleta.

– Isso é o tesouro da minha família. Não é para suas patas sujas de nazista.

As duas saíram do quarto e encontraram Gerard que estava abaixado junto ao corpo de Nannau.

– Lucille! – ele levantou-se e abraçou a esposa. – Hanna! Vocês estão bem?

– Sim, meu amor, nós estamos. Hanna?

Ela ainda deu uma olhada para trás, endireitou os ombros e disse.

– Vamos embora. Vamos deixar que a justiça se cumpra.

Os três saíram da casa. Enquanto se distanciavam, ouviram um grito.

Eles viraram a tempo de ver o corpo de Von Gorthel saindo pela janela e caindo até o chão.

O chão pareceu tremer quando o corpo atingiu o solo com um baque surdo.

– Ele sempre foi um covarde em vida. Com certeza o seria na morte. – Hanna declarou simplesmente.


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Notas finais do capítulo

[1] Sachsenhausen foi um dos primeiros campos de concentração construídos na Alemanha Nazi. Funcionou entre os anos de 1936 e 1945. (fonte Wikipedia)


[2] Suas vagabundas!



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