Uma canção de esperança escrita por Lu Rosa


Capítulo 3
Três




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Lucille chegou ofegante à porta dos fundos da casa noturna. Ela encostou-se na parede tentando ordenar suas ideias. A jovem levantou a mão direita à altura dos olhos ainda sentindo o toque sutil dos lábios do desconhecido.

Ela colocou a mão sobre o peito como se quisesse acalmar as batidas de seu coração. Porque se sentira tão estranha desde que ouvira ele falar?

Por alguma razão, recordações começaram a ser formar em sua mente.

Era setembro e ela estava sentada no sofá, cobrindo os olhos com as mãos e chorando toda a sua tristeza. Seu marido Gerard acabara de sair pela porta e ela não sabia se ele iria voltar. O momento era de tantas incertezas com a Europa em guerra novamente

Mas Lucille ainda teria muitas lágrimas para chorar, por que naquele mesmo ano, em dezembro, enquanto as igrejas soavam os sinos tentando demonstrar um otimismo imaginário, ela, acompanhada de sua irmã e seu cunhado, voltava do cemitério onde tinha ido enterrar sua filha.

Ao chegar em casa, eles avistaram um carro preto parado na calçada. Ela sentiu um arrepio agourento percorrer seu corpo e segurou com mais força o braço da irmã. Quando eles se aproximaram, dois homens saíram de dentro do carro. Ela os reconheceu imediatamente.

“- Madame Vermont, nós temos a obrigação e o pesar de lhe comunicar que o avião em que seu esposo estava foi abatido sobre...”

Lucille não conseguiu escutar o final da frase. Mergulhou na escuridão antes.

Quando ela voltou a si, estava deitada no sofá. Sua irmã segurava sua mão. A piedade estampada no rosto. Ela ergueu-se e viu seu cunhado Pierre conversando com os dois homens. Os homens que haviam levado seu marido para a morte.

“- Malditos!” – o autocontrole que ela sempre tivera estilhaçara-se. “- Saiam! Saiam da minha casa!”

Pierre correra para segurá-la, por que Lucille havia pegado uma faca de cozinha e avançava para os homens.

A fleuma britânica não se abalou perante a explosão da moça.

“- Madame Vermont. Seu marido foi um soldado valoroso e morreu no cumprimento do dever.” – respondeu Cavendish.

“- Gerard não era soldado... Ele era professor...” – Lucille lamentou-se. A faca caiu de sua mão.

Ela abraçou-se a Pierre chorando descontroladamente.

“- Por favor senhores, vão embora. Minha irmã já sofre demais.” – pediu Colette.

Os homens encaminharam-se em silencio para a porta. Mas Huntingdon voltou-se ainda para dizer.

“- Vermont era mais do que um soldado para nós, madame. Ele era meu aluno, meu amigo. Havia coisas na vida de seu marido que a senhora não podia saber, mas eu tenho certeza de uma coisa: o serviço que ele prestou foi de incalculável valor. Seu marido foi um dos primeiros heróis dessa guerra.” – ao dizer isso ele passou pela porta e foi embora.

Lucille não poderia responder por que justamente essa lembrança lhe voltou à mente, mas a dor que ela trouxera ainda era bastante vívida.

Ela empurrou a porta e caminhou pelo corredor escuro até onde ficavam os camarins.

Lá, estava sua amiga Elise, sentadinha pacientemente esperando. Quem não a conhecesse nunca acreditaria a atriz talentosa que ela era. Elise, quando subia no palco, transformava-se. Podia ser uma donzela indefesa, ou uma mãe sofredora ou ainda uma vilã maquiavélica. Muitas vezes ela levou Lucille às lágrimas com suas interpretações.

– Oi, desculpa a demora. – ela pendurou o casaco no cabide. – Fui visitar Colette e Pierre.

– Não se preocupe, querida. Eu mesma só terminei há poucos minutos. Mas, vamos ter que ficar mais alguns minutos. Claude quer falar com você.

– O que o seu patrão quer comigo?

Elise simplesmente ergueu os ombros num gesto bem parisiense. As duas subiram as escadas em direção ao escritório do gerente da casa noturna.

Um homem de cabelos brancos estava sentado atrás de uma mesa de madeira escura. Aparentava uns sessenta anos, mas tinha um rosto jovial. Um sorriso enorme abriu-se quando as duas moças entraram na sala.

Claude Favel assumiu a gerencia do Moulin durante os anos difíceis do final da primeira guerra. Tinha apenas trinta anos, sendo o mais novo gerente da casa desde a fundação em 1889. Precocemente grisalho, Claude transmitia seriedade e confiança. Ele não decepcionou seus contratantes. Inicialmente ele modernizou os shows, descobrindo novos talentos e trazendo de volta os áureos tempos da Belle Époque.

Agora, o Moulin era novamente o centro do entretenimento na noite do lado esquerdo do Sena.

– Entem, entrem. – ele convidou. – Madame Vermont... Posso chamá-la de Lucille? Ótimo. Você é exatamente como Elise a descreveu.

Lucille olhou estupefata para a amiga enquanto sentava-se.

– Falou de mim para ele?

– Escute o que ele tem a dizer.

Claude abaixou-se perto dela, segurando sua mão.

– A senhora poderia me fazer um grande favor? Cante para nós.

Lucille arregalou os olhos.

– Cantar?! – perguntou.

– Sim, por favor... – ele pediu mais com os olhos do que com os lábios.

Elise colocou a mão sobre o ombro da amiga.

– Cante, Lucille. Como cantou para as crianças semana passada. Aquela música sobre o mar.

Lucille olhou de um para o outro. Então, respirando fundo ela cantou La mer, de Charles Trenet.

Enquanto cantava, Lucille se lembrou de outra vez que cantara aquela mesma canção...

No verão de 1938, Lucille e Gerard percorria de carro a distância entre Paris e Le Havre. Canções populares tocavam no rádio e uma delas ficou na cabeça de Lucille.

Mais tarde, quando eles chegaram ao hotel, ela olhava o mar pela janela do quarto, quando a música veio novamente em sua mente e ela começou a cantá-la.

Quando os versos finais da musica ainda ecoavam em seus ouvidos, ela sentiu as mãos de Gerard sobre seus ombros.

“- Você tem uma voz bonita, meu amor.”

“- Meu pai era músico e minha mãe cantora. Era de se esperar que eu e Colette fôssemos do meio artístico. Mas isso nunca nos atraiu. Colette sempre foi tímida e eu...”

“- Você o quê?” – perguntou ele beijando a curva suave do pescoço dela.

Ela sentiu-se aquecer por dentro.

“- Você já olhou para mim? Eu não tenho...”

Gerard colocou o dedo sobre os lábios dela.

“- Você tem o rosto mais bonito e desejável de toda a França. E o corpo... Ah, meu Deus... Esse corpo...” – ele percorreu o corpo dela com as mãos.

Cheio de desejo, Gerard suspendeu Lucille em seus braços e a depositou sobre a cama...

– Não! Não posso! – desculpou-se ela parando de cantar – Não sou cantora. Sou professora, Claude.

– Mas tem talento, ma belle. Isso está dentro de você. E você não pode ignorar. Por favor ajude-me.

– Ajudá-lo? Mas em que?

– Margaritte, [1]cette petit canaille, foi embora com um ricaço americano. E nos largou, assim, sem nenhuma cantora. – esclareceu Elise.

– Já que a invasão alemã é uma realidade, temos que pelo menos tentar fazê-los mais amigáveis conosco. E como fazemos isso? Boa música, champagne e mulheres! – riu-se ele.

Lucille olhou desconfiada para Claude.

– Se eu aceitar sua proposta... Eu só irei cantar, não é?

– É claro, ma belle. A não ser que você aceite um galanteio aqui, uma ceia ali. Mas isso será critério seu. E se precisar seremos ótimos acompanhantes, se é que você me entende.

Ela levantou da cadeira e começou a andar pela sala.

– O dobro do que você pagava a Margaritte.

O gerente tirou o cigarro da boca e exclamou:

Êtes-vous fou? Ficou louca? São mil francos! Você acha que é [2]Mistinguett?

Lucille cruzou os braços.

– Lhe dou setecentos francos. – propôs Claude.

– Mil. – respondeu Lucille

– Não. Mas não estou vendo ela aqui pra ajudar você.

Elise deu um sorrisinho.

– Oitocentos.

Ela balançou a cabeça. – Elise, vamos.

– Novecentos. É o que eu posso fechar.

– E cinquenta? – ela perguntou.

Claude suspirou vencido.

– Está certo, petit malin, espertinha. Novecentos e cinquenta francos. Mais alguma exigência? – Claude perguntou dando a volta na mesa e pegando papel e caneta.

– Sim. Incorporarei uma personagem. Não me apresentarei como Lucille Vermont. Usarei uma peruca.

– Ruiva ou loira.

– Ruiva. E cantarei a meia luz.

– Está se escondendo de alguém?

– Não. Mas eu acho que é sempre bom um pouco de mistério.

Elise se aproximou dela, abraçando-a pelos ombros.

– Agora precisamos achar um nome pra você.

– Que tal Angel? Já que você é meu anjo de salvação.

Elise bateu palmas.

– Angelique. Angelique Fortuné. Que acham?

– Oh... È bem... Teatral. – disse Lucille.

– Adorei! Angelique Fortuné. O novo rouxinol de Paris. – declarou Claude pegando nas mãos de Lucille – Você será a nova sensação de Paris, querida. Agora vamos conhecer sua banda.

E assim Lucille Vermont tornou-se Angelique Fortuné.


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Notas finais do capítulo

[1] Aquela pequena canalha
[2] Mistinguett foi uma atriz e cantora que atuava no Cassino de Paris e no Moulin Rouge no final do século XIX e inicio do século XX. (nota da autora)



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