Uma canção de esperança escrita por Lu Rosa


Capítulo 23
Vinte e três




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Hanna e Lucille se abraçaram longamente.

– Otto ficou louco depois que vocês saíram correndo. Ele nunca tinha sido afrontado assim.

– Ele iria tentar me raptar na sua presença? Ele é detestável.

– E tome cuidado Lucille. Porque ele não vai desistir. – alertou Hanna

– Não se preocupe com isso, Hanna. Eu sei me cuidar. Além do mais, ele não sabe como eu sou de verdade. Eu me precavi continuando com a peruca ruiva.

– Você foi esperta dessa vez. Mas ainda sim eu digo: Tome cuidado. Não suportaria se ele colocasse as mãos em você. Eu já lhe disse o que ele me fez em nossa noite de núpcias.

– Eu estarei preparada para ele. – então Lucille pegou na mão de Hanna. – Pronta para assumir Ana Vert?

Hanna soltou os cabelos, prendendo-os em seguida em um rabo de cavalo. Parecia uma jovenzinha.

– Agora sim. Estou pronta.

As duas seguiram mais uma vez pelo corredor que ligava a igreja ao orfanato.

Quando as crianças viram as duas chegando, correram ao encontro delas

Mademoiselles! Mademoiselles!

Hanna deu um pacote de balas e outras guloseimas para Lucille e as duas começaram a distribuir entre as crianças.

Madame Gaisgnet ficará brava com as duas por darem doces às crianças.

– Mas padre... O almoço já passou e o jantar ainda está longe. – respondeu Lucille continuando a dar as balas. – Eu levo algumas para ela também. Duvido que ela resista.

– Eu levo para ela. – prontificou-se Hanna correndo em direção à cozinha.

O padre e Lucille ficaram vendo a jovem se distanciar sendo seguida pelas crianças. Ela interagia com eles rindo e brincando, completamente à vontade.

Mademoiselle Vert se sente bem vindo aqui, não acha Lucille?

– Ela ama as crianças. E com a vida que ela leva, essas visitas são como um bálsamo em suas feridas.

– É. – o padre concordou. – Não deve ser fácil ser a esposa do homem mais detestável da França.

Lucille estancou fitando o padre, empalidecendo.

– Como... Como o senhor soube? – ela gaguejou.

– Como um homem que também guarda segredos, Lucille, não é difícil perceber um. Eu percebi desde a primeira vez que vocês vieram aqui. Os olhos dela vermelhos como se tivesse chorado muito e a sua maneira maternal em relação a ela. Vocês se diziam amigas de colégio. Ora, se ela era de Estrasburgo e isso fica do outro lado da França, vocês não poderiam ter o grau de intimidade que tinham. E ela tem medo de falar, só ficando à vontade com as crianças. Isso, mais o fato da foto dela ter saído no jornal de hoje.

– Alguma das amas sabe, ou leu o jornal.

– Não. Ninguém aqui tem o hábito de ler jornal. Notícias ruins demais. E mademoiselle D’Argent nunca a viu. Então fique tranquila. Somente eu sei do segredo de vocês.

– Quando eu a encontrei, ela estava desesperada, pronta para dar fim à sua vida e...

Lucille contou tudo ao padre o que acontecera naquele dia. Quando Hanna voltou da cozinha, Lucille a pôs a par da descoberta do padre.

– Fique tranquila, minha filha. – o padre a tranquilizou quando Hanna começou a tremer, nervosa com a descoberta de seu segredo. – Aqui, você estará segura. Mas nunca mais pense em tirar sua vida, entendeu. A vida pertence à Deus. Dada por Ele como um presente para nós. Usar nossa própria mão para tirá-la é recusar esse presente. Você tem a Ele e a nós para seu alento. Entendeu, Hanna?

Ela acenou com a cabeça afirmando, incapaz de pronunciar uma só palavra que fosse. Um ruído de veículos chamou a atenção dos três.

– São soldados. – Lucille alertou. – Há um oficial. Ele talvez já tenha visto Hanna.

– Rápido! Lucille, leve-a para o quartinho da escada. Lá ninguém encontrará vocês.

Lucille pegou Hanna pela mão e a levou para dentro do edifício. Elas subiram um lance de escadas e no patamar entre o térreo e primeiro andar havia uma porta disfarçada. Lucille a abriu e entrou com Hanna.

– Hanna fique aqui até eu vir vê-la. – Lucille disse já fechando a porta.

– Mas e você?

– Vou ficar com as amas para tranquilizar as crianças. Volto já.

Lucille trancou a porta e correu para o salão comunitário onde as amas costumavam ficar costurando as roupinhas das crianças.

– Senhoras, os soldados estão aqui. Vamos ficar com as crianças.

As mulheres levantaram-se rápido deixando seus afazeres de lado. Cada uma sabia como agir, já haviam conversado a respeito. Mas quando uma delas passava por Lucille em direção à porta, a jovem postou-se na frente da senhora.

– Olga, você não. Vá para a cozinha e fique lá com madame Gaisgnet. Vai saber o que eles vieram fazer aqui. Onde está Benjamim?

– Está no berçário.

– Ótimo. Com sorte, ele ficará dormindo. Agora, por favor, vá.

A senhora saiu, dentro de suas condições físicas, o mais rápido possível. Lucille olhou em volta para ver se não esquecera de algo e foi juntar-se às outras amas.

***

Três soldados desceram do veículo. Outro soldado continuou no jipe.

Padre Honoré foi ao encontro dos soldados aparentando uma serenidade inabalável.

– Boa tarde. Em que posso ajudá-los?

Gerard tirou o quepe inclinando-se respeitosamente.

– Eu sou o capitão Aleksander Vaan Sucher, ajudante de ordens do Gen. Otto Von Gorthel, comandante das tropas de ocupação. Estamos atendendo a um comunicado do Comando Alemão que diz que todos os jovens com idade a partir dos quinze anos deverão ser conduzidos ao centro de treinamento.

– Treinamento? Para quê? – perguntou padre Honoré.

– Para serem soldados. Combater no exército alemão.

– Ah entendi! Morrer sem possibilidade de escolha.

– Padre... Meça bem suas palavras. – Gerard advertiu, rezando para todos os santos que Padre Honoré moderasse seu tom de zombaria. Se não ele teria que tomar alguma atitude.

– Sim. Desculpe-me. Mas nós não temos nenhuma criança nessa idade.

– Eu tenho que ver os registros, Padre.

– Capitão, eu sou um religioso. Acha que eu estou mentindo?

– Não, padre. Mas eu tenho que ver os registros. O senhor compreende, não é?

Padre Honoré olhou atentamente para o capitão. Teve a nítida impressão de que o conhecia. Mas de onde? Sem outra alternativa, os permitiu entrar.

– Heine, verifique as instalações e veja se há algo que se precise consertar. Kroll fique aqui de prontidão.

– Sim, senhor! – os dois assentiram.

– Vamos ao seu escritório padre.

Enquanto os dois homens se dirigiam ao interior do edifício, o sargento Heine seguiu para a lateral direita do prédio para a vistoria.

O sargento Kroll ficou ali. Dois meninos o observavam à distância. Querendo um pouco de diversão, ele sacou de sua arma e apontou na direção das crianças. Os dois meninos saíram correndo assustados. O sargento deu uma risada e continuou a sua ronda. Andava para a direita. Ia para a esquerda. Voltava até o carro. De repente, ele começou a se sentir entediado. Quem sabe dentro do prédio, ele não encontrava algo pra se divertir?

***

Nanette amava ficar na cozinha ajudando. Queria trabalhar em um grande restaurante quando crescesse. Achava que o período que passara na rua junto ao irmão influenciara nessa decisão. Os aromas, as cores dos condimentos eram fascinantes para ela. Agora, ela se ocupava em cortar alguns legumes para fazer uma sopa. Madame Gaisgnet tinha ido até a horta buscar algumas verduras e madame Chanot foi dar uma olhada nos bebês que dormiam.

Ela sentiu como se estivesse sendo observada e quando levantou a cabeça, um soldado alemão estava parado na porta a observando com os braços cruzados. Nanette levantou-se assustada. Não tinha nem como escapar, já que ele bloqueava a única saída.

– Olá! – disse ele em um francês com forte sotaque. – Onde estão todos?

Madame Gaisgnet saiu para pegar verduras... – ela respondeu com voz baixa.

Ele se aproximou, afastou a faca que ela havia deixado em cima da mesa e deu mais um passo na direção dela.

– Qual é o seu nome?

– Nanette.

– Sabe, Nanette. Eu costumava ter uma amiguinha assim como você, lá em Berlim. Mas eu tive que deixá-la, por que sua família não me aceitou muito bem. Quantos anos você tem?

– Quinze.

– Ah, ela era um pouquinho mais velha. Tinha dezesseis. Mas você deve ser tão ou mais apetitosa do que ela. Será que você é, Nanette?

– Eu não sei do que o senhor está falando. – Kroll a havia encurralado na parede, junto a alguns sacos de farinha.

– Ah, você é francesa! Sabe muito bem do que eu estou dizendo. – e então ele a imprensou na parede. Com uma mão ele tampava a boca dela, impedindo-a de gritar. Com a outra começou a subir o vestido dela enquanto forçava seu joelho entre os dela, obrigando-a abrir as pernas.

A menina não sabia o que o sargento tentava lhe fazer, mas sabia que era errado. Num ato reflexo, abriu mais a boca e mordeu a mão dele. E gritou o mais alto que pôde. Tentou correr, mas o sargento a segurou jogando-a no chão. O impacto a deixou sem fôlego dando tempo para Kroll a prendesse com o seu corpo.

E ele continuou a tentar despi-la e a tentar abrir sua calça.

Lucille ouviu o grito abafado e correu pelos cômodos tentando descobrir de onde ele tinha vindo. Uma criança que caíra ou um bebê que acordara. Mas o som estava nítido o bastante para não ter vindo do primeiro andar, onde ficavam os dormitórios. Só restava a cozinha.

Lá chegando, ela viu um soldado tentando violentar Nanette e, sem pensar nas consequências, avançou para cima dele, batendo-lhe e arranhando-lhe o rosto.

– Saia, saia de cima dela seu verme! Saia já!

Kroll se voltou para ver que furacão era aquele. Lucille afastou-se dele e pegou a faca que estava sobre a mesa. Enquanto a moça e o soldado avaliavam-se, Nanette arrastou-se pelo chão.

Lucille viu a hora em que ela se levantou e ordenou:

– Corra, Nanette. Corra!

A menina saiu da cozinha aos prantos correndo histérica.

– Ora, vejam ... – zombou o sargento vendo a faca trêmula na mão de Lucille. – Você vai tentar usar isso, ou só vai apontá-la para mim, mademoiselle Fortuné?

Lucille arregalou os olhos quando Kroll a chamou pelo seu nome artístico e distraiu-se por um instante dando a chance para o sargento segurar sua mão e torcê-la. A faca caiu retinindo no chão de pedra.

Lucille gritou com a dor, mas mesmo assim tentou acertar um soco na cara do alemão. Ele desviou-se com agilidade e segurando o pescoço da jovem, bateu-lhe a cabeça contra a parede, deixando-a tonta. A moça escorregou pela parede até o chão.

– Então, já que não tenho a virgem, vou me divertir com a rameira.

Lucille recobrou um pouco a consciência e começou a bater nas costas dele e a se debater no chão, impedindo-o de violentá-la.

Uma voz potente quanto à de um trovão ecoou sobre eles.

– O que está acontecendo aqui?

Kroll levantou-se revelando seu desalinho. Gerard olhou para Lucille tentando se recompor e estreitou os olhos.

– Sargento, explique- se! – seu olhar era assassino.

Nanette correu e abraçou a sua antiga professora.

– Meu Deus, capitão! E para esse exército que o senhor quer os jovens da França? - perguntou Padre Honoré também indo até Lucille e a ajudando a se levantar.

Gerard ignorou a todos. Estava com os olhos fixos no sargento.

– Sargento...

O sargento sorriu cinicamente.

– Elas são francesas. Um homem não pode resistir e...

Mas Kroll não chegou a terminar a frase. Gerard o atingiu com um soco fazendo que ele fosse ao chão.

O sargento Heine chegou com outro soldado, chamados por um dos garotos.

– Sargento Heine, o sargento Kroll está detido por minha ordem. Tirem-no da minha frente antes que eu o mate.

Os dois soldados levaram o sargento praticamente desacordado. Só então, o capitão voltou-se para os outros na sala.

– Desculpem- me por isso.

– Desculpá-lo por um sargento que tenta violentar crianças e mulheres? - Lucille perguntou olhando para ele. Ele se encolheu perante o olhar dela.

Madame, por favor. Eu mesmo vou apresentar uma denúncia contra o sargento Kroll. Isso não é o exército alemão. Mas, devo acrescentar que a senhora deixou sua marca nele. Acho que aquele arranhão vai deixar uma cicatriz. - ele comentou pra aliviar um pouco. - E padre, não se preocupe com os registros. Eu acredito no senhor. Mas eu tenho que manter uma postura de comando na frente dos meus homens.

– Eu entendo - respondeu o padre. - Obrigada por nos poupar.

– O senhor pode achar isso estranho padre, mas eu queria muito poupar a todos os orfanatos e talvez um dia eu possa contar o porquê ao senhor, mas por hora é só o que eu posso fazer.

Se o padre ficou surpreso com as palavras do capitão nazista ele não revelou. Apenas acenou com a cabeça.

Gerard se inclinou perante Lucille.

– Madame, a senhora ficará livre de qualquer acusação, não se preocupe. Mas, aceite um conselho: Não continue brincando com fogo assim. Não é sempre que estarei por perto para salva-lá.

Quando Lucille fitou os olhos dele e ele lhe piscou, ela sentiu seu corpo se aquecer. Ela já ouvira aquele conselho antes. Por duas vezes, e isso queria dizer somente uma coisa: ela estava ficando louca!


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