Uma canção de esperança escrita por Lu Rosa


Capítulo 15
Quinze




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Hanna entrou no quarto, trancou a porta e jogou-se na cama. Percebeu que estava tremendo. Mesmo depois de três anos de convivência, ela ainda tremia na presença de Otto, como se ele pudesse a qualquer momento agredi-la.

Ela levantou-se da cama e foi até a janela. Uma vista de Paris descortinava-se diante de seus olhos. Se não fosse a presença constante do medo dentro daquela casa, ela teria adorado viver ali. Era uma casa confortável, provavelmente de alguma família judia abastada que fugira diante da invasão nazista. Como comandante das tropas de ocupação, Otto tinha direito ao que existia de mais confortável e rico. Hanna torceu os lábios com o pensamento. Pois ela preferiria viver numa cabana, mas sendo feliz do que num palacete e tendo que se esgueirar pelos cantos, com medo.

Sua mãe apesar da origem aristocrática sempre fizera questão de lhe ensinar tudo que uma dona de casa deveria saber. Ela sempre lhe dizia: “Você nunca saberá corrigir seus criados se não souber o que deve ser feito direito.” Então, ela lhe ensinou como cozinhar, costurar e como cuidar de uma casa.

Hanna sabia que, se tivesse que morar sozinha, daria conta do recado. Apesar de rica, ela não foi criada como uma princesa. Ela até podia ser frágil, mas não era fraca.

Então seus pensamentos se dirigiram ao jovem que ela conhecera no dia de sua chegada à Paris. Otto viera antes porque viera com as tropas de ocupação. Depois, levara mais algum tempo preparando uma casa para eles morarem.

Hanna sabia que nesse tempo, seu digníssimo marido não ficara sozinho. No dia de sua chegada, ela encontrou uma lingerie sobre uma mesa do corredor. Ou seja, mulheres não faltaram. E ela até agradecia a Deus por isso. Entretido com prostitutas, Otto não haveria de lançar olhares para ela.

Quando o comboio em que viajava chegou próximo à Paris, eles foram atacados por um grupo de bandidos. Bandidos? Ela franziu a testa. Não. Aqueles homens não eram bandidos... Otto esbravejara e os chamara dessa forma. Aqueles homens eram contrários à ocupação da França e lutavam por liberdade.

E quando o soldado que conduzia o carro delas foi alvejado, ela e Nannau estavam amedrontadas e se agarraram tentando uma proteger a outra. O autor do tiro abriu a porta do carro e quando ela olhou para ele ainda com a arma fumegante na mão seu coração saltou dentro do peito. O medo evaporou-se por encanto. Se ele estendesse a mão para ela, Hanna a pegaria sem hesitar. Ela gritou quando ele levou um tiro, chorando por todo o trajeto para Paris, por que sabia que ele estava ferido em algum lugar.

Então eles se encontraram novamente. E ele lhe parecera tão mais bonito, sem toda aquela poeira e roupas velhas... Mas Lucille, a nova amiga, os apresentara. Seria sua esposa? Namorada?

Hanna saiu da janela e sentou-se na cama. O homem que a encantara e a mulher que salvara sua vida. Deus não seria tão injusto... Na primeira oportunidade, ela falaria com Lucille, se Julian fosse alguém na vida dela, Hanna sufocaria qualquer sentimento que poderia ter por ele. Lucille a salvara da perdição eterna. Nunca a trairia.

***

O dia passou e a noite chegou trazendo as luzes coloridas de Paris. Ela não era chamada de Cidade Luz à toa. Embora com o brilho um pouco esmaecido, mas nunca apagado.

Lucille olhava seu reflexo no espelho. Seu traje, inspirado na Grécia antiga, invocava o espírito de liberdade perdido pelos franceses. Ele era de um tom de azul semelhante ao do mar Mediterrâneo. A cabeleira vermelha estava enfeitada com uma tiara de rosas brancas. Era a bandeira da França personificada.

Claude ficara preocupado quando a vira vestida. Mas ela o tranquilizara dizendo:

“- Não se preocupe. Eles vão estar tão ocupados bebendo e com as acompanhantes que nem vão prestar atenção em minha apresentação.”

E agora ela ouvia os alaridos vindos do salão. Desde oito da noite quando começara o jantar ela escutara os gritos de Die Gesundheit! (Saúde!) ou de Es lebe der Kommandant Von Gorthel! (Viva o Comandante Von Gorthel!). Ou os gritinhos falsos de sustos das acompanhantes deles. Será que o capitão Vaan Sucher havia pegado uma para si também? O pensamento a incomodou.

Ela escutou passos apressados no corredor e abriu a porta para ver. As coristas passavam apressadas para se apresentar. Logo uma música alegre ecoava acompanhada de assovios e novos gritos.

Lucille voltou para o camarim e olhou o relógio. Eram dez e meia. Ela deu uma última olhada em seu traje, ajeitou a tiara sobre os cabelos e saiu do camarim.

Nos bastidores encontrou Serge ocupado dando as últimas instruções aos músicos. Ela fez alguns exercícios de voz e aguardou sua vez.

Quando a apresentação das coristas terminou, Claude se aproximou dela.

– E então ma belle? Pronta?

Ela sorriu para ele. Não tinha medo de nada.

– Sempre. Como está tudo lá fora?

– Ah. Eles estão bebendo e comendo com se não houvesse amanhã. Vou me considerar um homem de sorte se receber por tudo aquilo.

– Você acha que eles não pagarão a conta?

– Eles podem considerar que nós estamos tendo o privilégio de servi-los.

– É um absurdo que tenhamos que conviver com essa possibilidade.

Ele depositou um beijo na testa dela.

– Não se preocupe com isso, ma belle. Você tem que subir naquele palco e brilhar como sempre. Deixe os problemas para mim.

Ela pegou nas mãos dele.

– Claude, somos uma família aqui. Tudo que atinge um atinge os outros.

Claude se sentiu tocado com as palavras dela.

Ele deu uma sacudida afeminada para disfarçar o quanto as palavras dela o emocionaram.

– Ora, vamos! Não é hora de tristeza nem de preocupações. Vamos imaginar que aquele salão está cheio de franceses alegres e patrióticos e para eles que vamos cantar. – Ele tocou os cantos da boca dela imitando um sorriso. – Agora coloque um sorriso bonito nesses lábios e vamos lá.

Claude subiu ao palco para anunciá-la enquanto as luzes diminuíam.

Messieurs e mesdames. O Moulin tem a honra de apresentar o Rouxinol de Paris... Mademoiselle Angelique Fortuné.

Lucille levantou um pouco o vestido para subir os degraus do palco. Quando ela chegou ao microfone, Serge iniciou os acordes de Non, Je ne regrette rien.

As conversas ao redor da mesa cessaram no mesmo instante. Mesmo os que não conheciam a fama de Angelique Fortuné, pararam para ouvir a voz profunda da moça.

Von Gorthel parou de dar atenção à moça extremamente maquiada que estava à sua esquerda e fixou o olhar no palco. Nada o havia preparado para a visão à sua frente. Angelique Fortuné era de longe a mulher mais interessante daquele salão. Ela simplesmente se submeteria às suas vontades, ele decretou.

Hanna estava estoicamente sentada à direita de seu marido. Suportara a balburdia e a libertinagem dos convidados. Sendo uma das poucas esposas presentes tivera o azar de estar na mesa principal, onde os oficiais ou eram solteiros ou, como Otto, não se importavam com as esposas. Mas quando a jovem subira ao palco, ela sentiu que algo estava acontecendo. Já tinha ouvido aquela voz antes... E, ao levantar os olhos para o palco, viu Lucille sua nova amiga. Ela estava totalmente diferente! Maquiada e com uma cabeleira vermelha, totalmente diferente da jovem que conhecera mais cedo. Talvez fosse a personagem. Ela deixou-se levar pela voz de Lucille, mesmo sem entender a letra da música, pois seu francês ainda era muito precário. Mas parecia ser uma música tão bela...

A canção chegou ao fim e os aplausos irromperam no salão. Lucille curvou a cabeça em cumprimento tão rapidamente que, se os alemães não estivessem tão impressionados com a apresentação e com o champagne bebido, isso teria sido considerado insultante. Depois de Non, Je ne regrette rien, os acordes iniciais de La mer começaram a ser ouvidos.

[1]La mer

Qu'on voit danser le long des golfes clairs

A des reflets d'argent

La mer

Des reflets changeants

Sous la pluie”

No momento em que Lucille começou a cantar recordações inundaram a sua mente... E de outra pessoa naquele salão.

[1] O mar/Que vemos dançar ao longo dos golfos claros/Tem reflexos prateados/O mar

Dos reflexos mutantes/Sob a chuva.


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