Síndrome. escrita por Rodrigo Oliveira


Capítulo 3
Capítulo 3




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O dia estava extremamente chuvoso, de modo que o dr. Bogard não pôde apreciar o pôr do sol, como fazia todas as tardes em que as nuvens permitiam que o grande astro brilhasse. Há dois dias chovia ininterruptamente. Ora chuva forte, ora leve chuvisco, mas isso não o impediu de assentar-se em sua cadeira e acender o velho cachimbo. Costumava dizer que o sol é para todos, fazendo uma alusão a que dias bons e maus recaem sobre todos, mais cedo ou mais tarde. Não costumava reclamar, fosse sol escaldante ou chuva torrencial, tudo estava cumprindo o ciclo natural das coisas. Naquela tarde vestia-se todo de branco, inclusive o sobretudo que ajudava a abrigá-lo do frio. O chapéu de couro pousava sobre a cabeça, nunca sobre o banco. Só o tirava da cabeça para comer, como sinal de respeito à mesa posta, e ao dormir, por pura comodidade.

Ao longe ouviu o trote de um cavalo aproximando-se. Nem ao mesmo levantou-se, preferindo aguardar que o visitante se aproximasse de seu campo de visão. Eis que do lado direito da casa, montado numa grande égua preta, surgiu Jonah. Um grande e forte homem negro de cerca de trinta e cinco anos. Era escravo, é verdade, porém era tratado mais como um bom empregado e amigo do que como tal. Era fim dos tempos escravagistas e a relação dos senhores com seus escravos havia acompanhado a evolução dos tempos e se adaptado a este período de transição. Seu nome de batismo não era Jonah. Ele fora trazido da Nigéria ainda moço e comprado por Bogard há alguns anos. Seu nome era Akinsanya, porém o doutor resolveu adotar um nome mais americano para facilitar, como era de seu costume.

– Saia da chuva, Jonah! – venha para a varanda – disse o doutor.

– É uma boa idéia, doutor. O rebanho já está todo no curral e os escravos na senzala – disse o homem negro, enquanto prendia o cavalo na mureta da varanda.

– Sente-se homem. Pegue um copo e beba um pouco de whisky. Vai ajudar a esquentar.

Apesar de ainda serem senhor e escravo, eram como bons amigos e tinham liberdade para sentar-se e até mesmo beberem algo juntos. Jonah era seu encarregado, braço direito e homem de confiança. Se hoje toda a escravatura fosse abolida definitivamente, era provável que Jonah continuasse trabalhando para o dr. Bogard, tamanha era a ligação entre os dois. Além do mais, o negro já estava habituado a ser tratado como homem que era e não como um animal de tração. Depois de tantos percalços desde a sua captura no continente Africano, não é de se admirar que se contentasse com nada menos do que ser tratado como ser humano.

– Não vai haver aquela batucada hoje? – perguntou o doutor.

– Não, não, doutor – disse sorrindo – hoje ainda é quinta-feira, amanhã o faremos. Em tempos de paz reduzimos nossos cultos apenas às sextas.

– O banco tenta tomar nossas terras com juros abusivos dos empréstimos e você diz que estamos em tempos de paz, homem?

– Paz no mundo espiritual, senhor, é a paz a que me refiro. Mas há um ditado que diz que antes da tempestade sempre vem a bonança. Por isso costumo ficar inquieto em tempos de muita tranqüilidade. Fui um guerreiro na minha terra, como o senhor sabe, e não me acostumo muito com tranqüilidade – disse o homem enquanto olhava para as nuvens carregadas que estavam sobre a terra.

Após alguns instantes de conversa, Bogard despediu-se de Jonah e entrou para o jantar. Ao entrar na cozinha deparou-se com todos sentados à mesa, inclusive os gêmeos, seus dois filhos mais novos. Sentia muito por já estar em idade avançada quando os dois nasceram. Eles agora estavam com cinco anos e o homem se perguntava até que idade estaria aqui para cuidar dos meninos. Sua esposa, Connie, era uma mulher muito reservada, bem ao estilo antigo. O tipo de mulher que vivia para cozinhar e fazer suas obrigações de esposa e criar os filhos, enquanto o homem da casa trabalhava duro para que tivessem o que comer, mas não era uma mulher rancorosa, pelo contrário, era amorosa com o marido e com as crianças. Bogard recebeu seu prato feito com um belo cozido e agradeceu sua esposa. Gostava de elogiá-la, seja na cozinha ou na criação dos meninos. Sabia que uma mulher como Connie, que se dedicava exclusivamente ao lar, ficava orgulhosa quando recebia qualquer tipo de elogio, e ele não deixava por menos.

Comeram e não conversaram muito. Os meninos eram muito tranqüilos e comiam como se fossem adultos, comportadamente. A mulher os levou para que se lavassem, e os pôs para dormir. Ela mesma foi deitar-se em seguida e Bogard ainda sentou-se na sala, de frente para a lareira, com o intuito de ler um pouco. Cada um dos seus hábitos tinha o próprio horário de vir à tona. O fim da tarde era a hora do fumo no cachimbo e de uma, ou duas, doses de bebida no copo. A noite, após o jantar, era a vez da lareira, café e livros. Se a leitura o prendesse, ficava por horas a fio, até que o sono chegasse. O café ajudava a contrabalancear com o cansaço do fim do dia.

Depois de algum tempo, Bogard resolveu recolher-se à cama. Entrou no seu quarto e Connie já estava deitada, aparentemente dormindo. Tirou suas roupas, juntamente com o chapéu, foi ao lavabo limpar-se e retornou ao quarto. Sentou-se na beirada da cama, no lado esquerdo, e fechou os olhos. Em pensamento falou com Deus antes de pegar no sono: “Poderoso Pai. Graças te dou por mais este dia que, pela tua graça, se encerra. Renove minha alegria no dia bom e me sustente no dia mau. Amém.”

Três batidas fortes na porta da sala finalmente o fizeram despertar. O fez de um pulo. Sentou-se ainda atordoado na cama, e aguardou alguns instantes para certificar-se de que não sonhava. Mais três batidas fortes. Olhou no relógio de bolso que deixava no criado mudo, ao lado da cama: 3h da madrugada. Enquanto depositava o relógio no lugar de origem, mais três batidas. Dessa vez Connie também acordou e o doutor gritou que já estava indo. Saiu do quarto apressadamente em direção à sala de entrada. Connie não desceu, porém levantou-se e olhou pela janela, afastando um pouco a cortina. Uma carruagem escura, puxada por dois enormes cavalos negros estava parada em frente a sua casa. Não havia cocheiro em cima da mesma. A chuva caía torrencialmente.

No andar de baixo, antes de abrir a porta, Bogard pegou um revólver Smith & Wesson calibre 38 que guardava numa gaveta do corredor e colocou na parte de trás das calças, deixado-a ao alcance da mão, rente as suas costas. Olhou pela janela lateral e viu que um homem gordo aguardava de pé, em frente a porta. Reparou nas mãos e viu que não portava armas. Resolveu abrir e atendê-lo.

– Boa noite senhor – disse o visitante – Aqui é a residência do Sr. Bogard?

– Bom dia você quer dizer, não é mesmo? São três horas da manhã.

– Perdoe-me senhor, mas tivemos contratempos na estrada por causa das fortes chuvas. Já deveríamos ter chegado aqui há horas atrás.

– Deveríamos? Não está sozinho?

– Acho que o senhor ainda não se situou. Trabalho no serviço de carruagens do centro da cidade. Uma moça pagou-me para conduzi-la à fazenda do dr. Willian Bogard. O senhor é o Dr. Bogard?

– Sim, sim, mas quem...?

Enquanto o doutor ainda falava, o condutor deu-lhe as costas, ignorando a última pergunta, e dirigiu-se em direção à carruagem. Protegia-se sob um grande guarda-chuva enquanto abria a portinhola lateral da cabine. Uma linda moça desceu e esboçou um pequeno sorriso ao ver o doutor de pé na varanda. Após levá-la até a varanda, debaixo da proteção, o homem gordo voltou até a carruagem a fim de desembarcar as malas.

– Será que ainda se lembra de mim? – disse a moça estendendo-lhe a mão.

– Você me parece familiar, mas... Perdoe-me.

– Lia Jamenson, muito prazer, novamente.

– Lia, meu Deus! A última vez que a vi você ainda era uma menininha – disse abraçando a bela moça – Connie, por Deus, desça aqui, mulher! É Lia, a filha mais velha de Robert!

Connie desceu logo em seguida e abraçou a moça. Segurou-a pelos ombros e olhou em seus olhos, dizendo que estava linda. Connie sentiu-se incomodada com algo, mas não soube identificar de imediato a raiz do gélido sentimento. Sabia, porém que algo estava fora do normal. Ao olhar no fundo dos olhos da jovem sentiu que algo estava errado, porém tentou não deixar transparecer. Não foi tão bem sucedida. Lia notou, e também fingiu não perceber. Enquanto se dirigiam para dentro, a carruagem já saía da propriedade em alta velocidade, perdendo-se na escuridão.

– Mulher, arrume o quarto de hóspedes, sim? – disse o doutor, sentando-se em sua cadeira, próximo à lareira que ainda emitia calor através das brasas que restavam – Sente-se Lia, quer beber algo? Está com fome? A viagem deve ter sido cansativa.

– Não, doutor. Obrigada. Estou bem, acredite – disse enquanto sentava-se, ajeitando a barra do grande vestido de cor clara que usava.

– Como vai o seu velho pai? Ele andou me escrevendo, mas já faz algum tempo que não tenho notícias daquele bastardo – disse sorrindo.

– Ele está bem, doutor. Como todo bom pai, está preocupado com o meu...

– Problema?

– Não chamaria de problema... Prefiro síndrome. Problema soa a doença, e até que me provem o contrário prefiro chamar de síndrome – disse, fazendo parecer que estava constrangida.

– Oh, minha jovem, desculpe. Eu não quis ser rude. Amanhã conversaremos melhor sobre isso, se assim você concordar.

– Sim, doutor. Estou ansiosa para começarmos a tentar resolver o meu problema.

Já de volta ao quarto, com Lia devidamente acolhida no fim do corredor, Connie resolveu livrar-se do incômodo:

– Willian... Está tudo bem?

– Sim, por quê?

– Você não notou nada anormal na moça? Ela está tão diferente de quando a vimos pela última vez.

– Por cristo, mulher! Nós a vimos há quase dez anos atrás pela última vez e, além do mais, ela está com alguma enfermidade. O quê você queria?!

– Eu ainda não sei dizer. É algo no olhar... No brilho dos olhos, mas... Eu não sei.

– Melhor dormir, mulher. Amanhã começo a tratar da menina.

O doutor virou-se para o lado e logo estava entregue ao sono, porém Connie ficou deitada de lado, fitando a luz da lamparina a óleo por horas a fio, até ser vencida pelo sono.

Na manhã seguinte, todos se levantaram para o café. Exceto Lia. A criada subiu, seguindo ordens de sua patroa, levando uma grande bandeja com pães, leite e frutas. A pequena escrava bateu suavemente na porta do quarto e notou que a mesma estava entreaberta. Apesar de estar um dia nublado do lado de fora o quarto estava incrivelmente escuro, de modo que a pequena forçava a visão para enxergar lá dentro. Viu o volume de uma pessoa na cama, coberta. Outros pesados cobertores cobriam as janelas e não permitiam que luz alguma entrasse. A escrava sentiu algo no ar e de repente foi tomada por um irracional medo. Em silêncio, ou pelo menos tentando ser silenciosa em meio ao medo, depositou a bandeja rapidamente sobre uma mesa, saiu do aposento já fechando a porta novamente e desceu as escadas apressadamente para a cozinha. Enquanto descia, olhava por diversas vezes para trás, como conferindo se a porta não se abriria enquanto ela ainda estava no campo de visão. Saiu tão rápido que nem mesmo notou que apenas cobertores jaziam sobre a cama, imitando o formato de uma pessoa deitada de lado. Nem mesmo percebeu que enquanto estava lá dentro, havia alguém de pé no canto oposto do quarto, bem atrás de si, observando-a com olhos malignos.

Logo que terminaram o café da manhã, o doutor subiu as escadas e após bater na porta, foi adentrando lentamente, chamando a jovem pelo nome e sendo prontamente respondido. Após cumprimentarem-se, ela foi convidada para descerem até a biblioteca, onde teriam mais privacidade. Ele estranhou a escuridão do quarto, porém Lia conversou explicando sobre a intolerância à luz. Ele acenou que tudo estava bem e desceu na frente, avisando que a aguardaria.

Após cerca de quinze minutos, Lia adentrou a biblioteca. Um grande vestido branco cobria todo o seu corpo, inclusive braços e pés. Somente as pálidas mãos ficavam de fora. Usava um grande chapéu e por cima dele um lenço de seda, também de cor branca.

– Está se escondendo de quê, minha jovem? – falou o doutor, surpreso.

– Não é um esconderijo, é apenas proteção. É que ultimamente tenho desenvolvido uma estranha irritabilidade na pele quando me exponho à luz do dia. Alguma espécie de alergia que vai além da simples intolerância. Prefiro evitar.

– Bom, importa-se se eu acender meu cachimbo?

– De forma alguma. A casa é sua. Fique a vontade.

– Quando você começou a apresentar os sintomas de que seu pai falou na carta? Ingeriu algo a que não estava acostumada?

– Bem, eu não me lembro se...

A porta se abriu repentinamente, interrompendo a conversa. Era Jonah, o escravo.

– Doutor, doutor! – disse apavorado – o senhor precisa vir comigo, já!

– Mas o que está acontecendo homem? Parece que viu fantasma!

– Melhor não tratar de certas coisas na presença de damas – disse sinalizando respeito pela visitante – venha comigo, por favor – prosseguiu.

Seguiam os dois homens pelos corredores da casa em direção aos fundos. Quando saíram o doutor segurou Jonah firmemente pelo braço direito e disse:

– Ande logo, Jonah. Conte o que houve.

– Acho melhor o senhor ver com seus próprios olhos – disse apontando para o alto de um grande carvalho desfolhado que havia na área atrás da casa.

Doutor Bogard tirou o chapéu e olhou aturdido para o alto da árvore. Jesus Cristo, sussurrou.. Viu que a esposa e os filhos vinham logo atrás e gritou para que entrassem de novo, sendo atendido de imediato.

– Mas que diabos é isso? – perguntou o médico.

– Que diabos não, senhor. Quem diabos. É Adusa. Filho do mestre Sanuzi.

No alto do carvalho, em meio aos galhos mais altos, estava o corpo de um jovem escravo, com seu magro corpo violado. Via-se claramente que estava com os braços quebrados, pois não estavam na posição devida.

– Jesus cristo – repetia – como esse garoto foi parar lá? Nem se arremessássemos ele de catapulta conseguiríamos colocá-lo a essa altura... – olhava incrédulo, tentando imaginar o que acontecera.

Perto de onde estavam, Jonah notou uma pequena menina, de uns seis anos, filha de escravos, olhando para o alto da árvore. Gritou para que a menina retornasse à senzala, mas ela parecia não ouvi-lo. Deixou o doutor parado ali e apertou o passo em direção a criança, para conduzi-la de volta aos pais e não permitir que ficasse admirando aquele cenário. Ao aproximar-se da menina, ela levantou o braço direito, apontando para o jovem da árvore e balbuciou: “Ele foi arrastado enquanto dormia, eu vi”.

Jonah a pegou no colo, sem dar muita importância num primeiro momento, porém enquanto andava com a pequena no colo, resolveu perguntar:

– O que você disse, Corine? Repita o que você disse.

– Eu vi o Adusa ser arrastado enquanto dormia. Eu vi.

– Onde você estava nessa hora?

– Deitada, dormindo perto dele. Alguém o pegou pelo pé e o arrastou com força para fora.

– Isso é impossível, menina. Adusa gritaria se assim fosse – disse, desconversando e entregando a menina aos pais, que a essa altura já estavam além da senzala, no campo.

Algumas horas depois, Bogard, Jonah e mais cinco ou seis escravos conseguiram amarrar cordas no homem e descê-lo de cima da árvore. Quando ele finalmente chegou ao solo, seu pai, um respeitado shaman chamado Sanuzi, aproximou-se do corpo, acariciou seus cabelos e começou a dizer algumas palavras respeitosamente em alguma língua desconhecida pelo doutor. Ele acreditava ser algum costume dos africanos e resolveu não interferir. Voltando-se ao corpo viu que o estado do mesmo era deprimente. Realmente a primeira impressão a respeito dos membros estava certa, mas o que mais o chocou foram as lacerações por todo o corpo, em especial em seu pescoço. Havia profundos arranhões em toda a parte do corpo e cabeça. Um deles, tão profundo, que o globo ocular esquerdo estava quase solto no crânio, praticamente pendendo para fora.

– Vão agora, Jonah. Levem o seu morto e enterrem-no. Mais tarde conversaremos sobre isso – e assim os escravos fizeram.

Jonah permaneceu parado ao lado do seu senhor e disse-lhe:

– A menina disse que ele foi arrastado para fora da senzala, doutor.

– Arrastado pelo quê?

– Não sei. A menina não deve estar articulando bem as idéias. Ela é muito nova. Mas me disse que ele foi arrastado pelo pé. Talvez algum animal selvagem, quem sabe?

– Pobre menino. A propósito, o que significavam aquelas palavras que o seu “reverendo” pronunciava?

– Lembra de quando eu lhe disse que a calmaria precedia a tempestade? – Bogard acenou positivamente com a cabeça -A tempestade vem vindo.

Retornou para dentro de casa e contou à mulher o que se sucedera. Lia estava sentada na sala junto com eles ouvindo tudo. As janelas permaneciam trancadas devido à intolerância da jovem.

– Eu nunca havia visto um corpo deixado daquele jeito. Parece que algum grande animal o pegou. Seu pescoço estava destruído – disse Bogard – talvez ele tenha subido a árvore e algo o tenha atacado lá em cima.

– Porque ele subiria numa árvore dessa altura numa madrugada chuvosa? – Connie mais refletia do que necessariamente questionava.

– Se algum animal o atacou ainda na senzala – o doutor continuou seu raciocínio – não entendo porque ele não gritou pedindo ajuda.

– Porque é difícil gritar enquanto abocanham seu pescoço – disse Lia, mexendo nas unhas, totalmente indiferente a toda agitação em torno da morte do jovem.

– Como disse, minha jovem? – retrucou Bogard, surpreso com o que ouvira.

– O senhor havia dito que ele estava com a jugular destroçada. Como o senhor deve saber, a grande maioria dos animais selvagens ataca quase sempre suas vítimas pegando-as no pescoço – disse sem ao menos levantar os olhos.

Com tudo o que acontecera logo cedo, os preparativos para recomeçar as sessões com Lia ficaram em segundo plano e logo após o almoço, Jonah veio até Bogard. Estava preocupado.

– Os escravos estão com medo, senhor.

– O que posso fazer, Jonah? Mande que montem guarda a noite na entrada da senzala, mas não posso entregar-lhes armas, entenda. Que se revezem de hora em hora para que no dia seguinte possam trabalhar. Não quero ser um carrasco, mas dependo de que eles trabalhem para que eu possa vender o produto da terra. Os compradores não querem saber de atrasos, você compreende?

– Sim, doutor, claro. Mas gostaria de saber se o senhor confia em mim?

– Se confio em você, Jonah? Confio em você como se fosse meu irmão – disse colocando uma das mãos sobre o ombro do grande negro.

– Então lhe peço: Deixe-me ao menos com um rifle para o caso de alguma emergência.

– Sim, homem. Pegue o que desejar. Não precisa devolver o rifle. Fique com ele, mas não fique a noite toda acordado, preciso de você ao meu lado amanhã.

Ao fim daquele primeiro dia, os escravos combinaram que se revezariam na porta da senzala. Um de cada vez montaria guarda durante toda a noite. Jonah dormiria no primeiro cubículo, da porta para dentro, que ficava a cerca de seis metros da entrada. Os que ficassem de vigias usariam foices como arma, se necessário, e gritariam pelo seu encarregado se necessitassem de uma arma de fogo. Com todos de comum acordo, retiraram-se para dormir e um deles ficou de pé, tal qual um guerreiro africano a guardar a ‘tenda real’.

Na casa, após terminarem de servir o jantar e retirar o que restara na mesa, os serviçais deixaram a casa e seguiram para seus aposentos que ficavam no lugar para eles reservado, no interior da senzala. Uma pequena escrava ficara por último na cozinha, terminando de guardar os utensílios. Ao sair para seu descanso atravessou a grande casa vazia, pois todos já estavam retirados em seus aposentos. Ao passar pelo hall sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha dorsal. Instintivamente teve o olhar direcionado para a porta do quarto da estranha visitante e viu uma pequena fresta aberta revelando a escuridão em seu interior. Suas dúvidas quanto a estar sendo observada foram diluídas quando viu a porta fechando-se lentamente. Seguiu apressadamente porta da sala afora e ao passar pela frente da casa, quase correndo a essa altura, não resistiu a tentação de olhar para a janela do segundo andar que correspondia ao quarto de Lia. Correu demais e a distância entre a casa dos seus senhores e a dos seus irmãos escravos pareceu aumentada repentinamente. Lá em cima, do outro lado do vidro, uma figura pálida e esquálida a observava. Como um leão a espreita da gazela.

Jonah possuía um pequeno relógio de bolso que ganhara de seu senhor. Havia deixado com as sentinelas para que o acordassem na hora devida. Porém acordou após um pesadelo. Sentou-se e sua cama, suado, recuperando o fôlego do susto noturno, mas deitando-se novamente não conseguiu mais dormir. Levantou-se e seguiu em direção a entrada, com o rifle pendurado no ombro. A luz do luar ajudava a iluminar o lugar e ele viu seus irmãos escravos, às dezenas, dormindo o sono dos justos. Passou como em revista aos desprotegidos, caminhando sobre a palha que forrava o chão do lugar. Era uma forma antiga usada para aquecer o lugar nas noites frias. Ao chegar à entrada, contudo, não viu ninguém guardando o lugar, o que o deixou furioso. Lançou mão da lamparina do vigia, que estava no chão, ao lado do umbral e entrou procurando qualquer um dos que haviam se comprometido de guardar o local. Como eram seis, pegou o primeiro que encontrou e o despertou do sono com violência:

– Azaan! Azaan! – disse com veemência, tentando controlar o volume para não despertar os outros – quem está guardando a entrada?! Vamos, diga!

O homem despertou assustado, precisando de uns instantes para entender o que acontecia.

– Eu entrei para dormir a algum tempo atrás. Ibada ficou em meu lugar, Jonah.

– Não há ninguém guardando a entrada, homem!

Jonah dividiu o óleo de sua lamparina com Azaan e ambos seguiram pela senzala, tentando localizar os outros, com o cuidado de não acordarem todos os escravos que dormiam um pesado sono, após um dia difícil. Localizaram cinco deles mas ainda faltava um: Ibada.

Saíram da senzala e foram olhar as redondezas. Não demorou até acharem a foice do guarda, jogada a cerca de quinze metros da entrada, próximo a um matagal. Não localizaram manchas de sangue ou restos, o que ainda lhes dava esperança de encontrarem Ibada vivo. Jonah, a princípio achou que um guarda desleixado havia abandonado o posto e se recolhido para dormir, mas agora começava a ficar preocupado. Seguiram então em direção à grande casa, tomando cuidado para não acordarem o doutor e sua família. Rodearam a casa e nenhum sinal de Ibada. Resolveram então retornar ao local onde os outros dormiam e seguiram juntos como sentinelas pelo restante da noite.

A manhã seguinte era um domingo e, como era de costume, os escravos faziam apenas os serviços de manutenção da fazenda, como ordenhar as vacas e alimentar os animais, deixando o serviço pesado e de lavoura para a manhã de segunda-feira. Esse era um hábito na fazenda de Bogard, não sendo compartilhado pelos outros senhores escravagistas.

Jonah ainda estava de pé, e organizava uma equipe para fazerem buscas pela propriedade e arredores na tentativa de localizar o jovem Ibada. Após selecionar os homens, seguiu em direção a casa para informar o doutor sobre o ocorrido. Os escravos estavam aturdidos com o que acontecera e as mulheres ajudavam a consolar a mãe e a irmã do jovem desaparecido.

No caminho para a casa, Jonah percebeu que estava sendo seguido. Ao olhar para trás viu que uma figura idosa e magra seguia seus passos. Era Sanuzi, o velho shaman, líder espiritual dos escravos.

– Por que me segue mestre Sanuzi?

– Jonah, o que está acontecendo com você, meu jovem? Será que os ares deste continente conseguiram fazer morrer o espírito africano dentro de você?

– O que está dizendo, Sanuzi?

– Você não consegue sentir? Será mesmo que não consegue ou está vendando o seu espírito para não desagradar o doutor? – Jonah calou-se e o velho prosseguiu – Desde que a menina branca chegou a esta fazenda os espíritos andam inquietos. Ela trouxe morte na bagagem.

– Não diga besteiras, Shaman! O doutor Bogard tem sido um homem bom para todos nós, você não pode negar! Por favor, não o faça rever suas decisões de tratar a todos como homens – disse dando-lhe as costas e seguindo novamente seu rumo.

O velho Sanuzi ficou parado, olhando, sabendo que conseguiu tocar o interior de Jonah. Sabia que a fidelidade e gratidão do jovem ao seu senhor eram fortes, mas que ele havia entendido o recado. Devia agora dar tempo para que a semente germinasse. Só não sabia se haveria tempo hábil.

Quando se aproximava da casa, Jonah deparou-se com o doutor Bogard já chegando à varanda e explicou-lhe tudo o que havia ocorrido durante a noite, menos as palavras do Shaman Sanuzi. Organizaram equipes de buscas, mas enquanto preparavam os animais para montar algo chamou a atenção do doutor. Seus dois filhos mais novos brincavam correndo alegres pelo quintal, e algo lhe veio à mente. Se alguma coisa acontecesse aos meninos, ele nunca se perdoaria. Deixou os escravos fazendo os preparativos e retornou ao interior da casa. Procurou Connie e a encontrou na cozinha, juntos com os serviçais. Convidou-a para ir à biblioteca com ele, onde poderiam ter uma conversa reservada.

– Connie, você sabe que não sou um homem de tomar decisões precipitadas. Outro escravo sumiu essa noite. Ele estava de guarda na senzala e simplesmente desapareceu, como se tivesse sido arrebatado aos céus.

– Meu Deus...

– E temos dois meninos em casa. Me preocupo com vocês, pois não sei o que acontece aqui. Vou mandar que um dos escravos prepare uma carruagem e leve você e os meninos para a casa de sua irmã. Creio que será melhor que fiquem lá durante um tempo para não correrem qualquer risco que seja.

– Mas e quanto a Lia? – perguntou Connie.

– Por Deus, eu havia me esquecido completamente da menina. A propósito, onde ela está?

– Está com mais três serviçais, mudando seu quarto para o porão. Disse não estar mais suportando a luz do dia e como lá não há janelas... Enfim, Levarei os meninos e voltarei para ficar com você e Lia, tudo bem?

– Você é quem sabe.

Naquela manhã, Bogard abraçou fortemente os seus dois pequenos filhos e assistiu a carruagem levando-os. Em seguida chamou Jonah e os outros, e saíram a procurar algum indício do jovem desaparecido. Rodaram por toda a manhã, mas nenhum sinal foi encontrado. Nada de roupas, muito menos de sangue. Foi como se o jovem escravo tivesse se transformado em pó.

No porão, os escravos haviam acabado de levar os móveis de Lia e apenas a pequena serviçal permanecia no aposento, terminava de estender os lençóis sobre a cama.

– Você poderia voltar aqui amanhã para refazer a cama? – disse Lia.

– Claro, senhora. Voltarei assim que levantar-se.

– Trágico o que aconteceu hoje, não?

– Sim, Ibada é um bom homem. Espero que o encontrem – disse a menina, sem encarar Lia.

– Você o conhecia?

– Sim, nós somos... Bem senhora, melhor eu ir – disse a menina, desconversando.

– Namorados? Vocês eram namorados. Posso ver em seus olhos. Não precisa ter vergonha. Você o ama, e isso significa que você tem um coração que bate no peito e que litros de sangue correm por ele nesse momento. Isso é bom, não é? Significa que você está viva... Já Ibada... Bem, não podemos saber – mudou o tom para uma seriedade repentina de fazer arrepiar a alma.

A menina passou apressadamente por Lia, deixando o porão e subindo as escadas apressadamente.

Do lado de fora, os homens seguiam a procura pelo segundo desaparecido. Dividiram-se em dois grupos e seguiram por lados distintos da propriedade e redondezas. Vasculhavam cada canto, riacho, plantações e, não estranhamente, topo de árvores mais altas. Nada encontraram ao fim do dia. Nem um sinal sequer.

Naquela mesma noite os homens fizeram guarda da senzala em dupla. Outros escravos protegiam a casa principal. Os homens estavam assustados, e até mesmo os que estavam em horário de descanso permaneciam acordados, embora deitados em seus leitos. A noite transcorreu normalmente e naquele dia foi acordado que todas as mulheres e crianças permaneceriam na senzala no dia seguinte, enquanto os homens fariam uma nova varredura pela região. Connie só voltaria pela manhã, de forma que Lia recolheu-se ao porão onde dormia e Bogard dormiu em seu quarto.

O velho homem acordou com a claridade opaca da manhã adentrando o quarto. Conseguiu dormir bem e reaver o sono perdido com a situação. Acordou em paz e permaneceu deitado na cama, por mais alguns minutos, tirando proveito daqueles minutos de paz. Em seguida ouviu a movimentação dos escravos serviçais pela casa, aprontando o desjejum, de modo que resolveu levantar-se pois o cheiro do café quente o apeteceu.

Na cozinha não havia mais ninguém além dos serviçais. Sentiu certo desconforto sem a presença da sua esposa e filhos. Lembrou-se então de Lia.

– Karima, a senhorita Lia ainda dorme? – perguntou à pequena escrava, que obtivera permissão de manter seu nome africano pois não diferenciava muitos de nomes ocidentais, tal como Carina.

– Ela ainda não apareceu, senhor.

– Pois bem, leve o café ao seu quarto. Sirva-a e diga que assim que estiver pronta deve me encontrar na biblioteca. Preciso falar-lhe – e assim fez a menina.

Bogard ainda estava tomando seu café quando a pequena irrompe copa adentro gritando que a senhora Lia não estava no porão. Bogard levantou-se da mesa com o coração batendo como tambores africanos e mandou que vasculhassem a casa. Em vão. Nenhum sinal de Lia foi encontrado. Sua cama estava com os lençóis arrumados, como se ela nem ao menos tivesse dormido em casa, ou arrumado a mesma antes de sair. Os escravos de confiança foram reunidos novamente e receberam ordens de que aprontassem a montaria. Fariam rondas pelo local.

Ao longe surge uma carruagem. Bogard logo a reconheceu como uma das suas. O escravo que levou os meninos no dia anterior, retornava; e Connie estava no interior.

Assustada com a movimentação na frente de sua casa, Connie desceu apressada, sendo logo abordada pelo doutor.

– Lia desapareceu, Connie – disse abalado.

– Como assim desapareceu, homem?

– Ela estava em casa ontem a noite, e hoje pela manhã não foi encontrada. Vamos sair a sua procura. Por favor fique dentro de casa e não saia. Eu não sei o que está acontecendo aqui. Mandei que os escravos da cozinha saíssem também e ficassem na senzala. Tranque a porta e não saia.


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